Cadernos PROMUSPP, São Paulo, v.2 n.1, jan./mar.
2022 ISSN
2764-4510
As tensões internas do
conceito Politicamente Correto (PC): uma análise a partir de
aspectos contemporâneos brasileiros
Bettine, Marco; Gutierrez, Gustavo;
Gutierrez, Diego
Resumo
Este artigo objetiva apresentar uma
reflexão sobre aspectos constitutivos da ação politicamente
correta (PC). Apoia-se, basicamente, no trabalho de Norman
Fairclough, com destaque para a questão da descontextualizão
operada pela crítica PC ao interpretar uma expressão linguística
literalmente. Partindo desse referencial e apresentando
exemplos, o artigo busca apontar que a crítica do PC se
desenvolve em dois sentidos: (i) uma denúncia ao interpretar
literalmente a expressão linguística e (ii) uma tentativa de
esconder o sujeito agente da ação de crítica atrás da
universalidade do valor defendido. Nesse sentido, a força da
crítica PC estaria vinculada a um movimento de dupla
descontextualização.
Palavras-chave:
Politicamente Correto; Discurso; Linguagem.
The internal
tensions of the concept Political correctness (PC): an
analysis from Brazilian contemporary aspects
Abstract
This article aims to reflect on the constitutive aspects
of Political Correctness (PC) actions. It is mainly grounded on
Norman Fairclough, highlighting the issue of decontextualization
enacted by PC criticism when literally interpreting a linguistic
expression. Based on this reference and presenting some
examples, the article aims to point out that PC criticism
develops in two senses: (i) a denouncement when literally
interpreting the linguistic expression and (ii) an attempt to
hide the denouncer behind the universality of the value
defended. In this sense, the power of PC criticism would be
connected to a movement of double decontextualization.
Key words: Political Correctness;
Discourse; Language.
Las tensiones internas del concepto
Corrección política (PC): un análisis desde la contemporaneidad
brasileña
Resumen
Este artículo tiene como objetivo reflexionar sobre los
aspectos constitutivos de las acciones de Corrección Política
(PC). Se basa principalmente en Norman Fairclough, destacando la
cuestión de la descontextualización promulgada por la crítica de
PC al interpretar literalmente una expresión lingüística. A
partir de esta referencia y presentando algunos ejemplos, el
artículo pretende señalar que la crítica de la PC se desarrolla
en dos sentidos: (i) una denuncia al interpretar literalmente la
expresión lingüística y (ii) un intento de ocultar al
denunciante tras la universalidad del valor. defendido En este
sentido, el poder de la crítica de PC estaría conectado a un
movimiento de doble descontextualización.
Palabras clave: Corrección Política;
Discurso; Idioma.
Les tensions internes du concept de
politiquement correct (PC) : une analyse à partir des aspects
contemporains brésiliens
Abstrait
Cet article vise à réfléchir sur les aspects constitutifs
des actions du Politiquement Correct (PC). Il s'appuie
principalement sur Norman Fairclough, soulignant la question de
la décontextualisation opérée par la critique PC lors de
l'interprétation littérale d'une expression linguistique. À
partir de cette référence et en présentant quelques exemples,
l'article vise à souligner que la critique du PC se développe
dans deux sens : (i) une dénonciation en interprétant
littéralement l'expression linguistique et (ii) une tentative de
cacher le dénonciateur derrière l'universalité de la valeur
défendu. En ce sens, la puissance de la critique PC serait liée
à un mouvement de double décontextualisation.
Mots clés: politiquement correct ;
Discours; Langue.
Introdução
O objetivo deste texto é apresentar
uma reflexão sobre o conceito de Politicamente Correto (PC),
tendo como referência aspectos do debate no Brasil. A expressão,
embora antiga, generaliza-se nas últimas décadas do século XX,
no contexto de lutas e movimentos sociais que buscam denunciar
formas de preconceito e opressão contra grupos sociais
específicos manifestadas no uso da liCanguagem (Handke, 2001). O
conceito chega ao Brasil importado dos EUA e passa a ser
utilizado internamente de uma forma muito semelhante a sua
manifestação original (Feres, 2017).
Para construir a argumentação,
partimos de referenciais como Weinmann (2014), Borjes (1996) e
Neves (2012), principalmente no que diz respeito às discussões
sobre determinismos linguísticos, como a compreensão da
linguagem como unívoca, a construção de posicionamentos
políticos por meio da mudança de palavras e a restrição da
liberdade de expressão.
O artigo parte da observação do
debate a respeito do PC que acontece no meio acadêmico e também
junto à opinião pública brasileira, manifestado tanto pelos
meios de comunicação de massa como pelas mídias sociais. A ação
PC constitui, em termos bem rápidos, uma espécie de acusação que
obriga uma inevitável resposta de justificação por parte do
acusado, mesmo que a maioria das pessoas não esteja claramente
convencida da justiça de tal acusação. Neste texto, longe de
esgotar a questão, vamos destacar, de um lado, a análise
semântica intencional da filosofia da linguagem e, de outro, a
defesa de minorias e direitos humanos, como forma de aprendizado
social. Há um grande debate acadêmico no Brasil, inclusive a
Revista da Universidade de São Paulo (a mais conceituada
universidade brasileira) apresenta, em 2017, um Dossiê
denominado “Politicamente Correto”.
Buscamos contribuir com o debate a
partir de uma leitura do pensamento de Norman Fairclough (2017),
principalmente de seu artigo “Political correctness: the
politics of culture and language”, em que o autor coloca, de
forma recorrente, a questão da descontextualizão operada pela
crítica PC, ao interpretar uma expressão linguística
literalmente, assim como outros desdobramentos que serão
apontados a seguir.
A discussão sobre o PC é atual,
complexa e polêmica. O texto procura adotar um distanciamento em
relação às questões, embora os autores, é claro, possuam uma
posição definida neste debate. Um dos aspectos da complexidade
apontada é a tensão entre a crítica PC e os valores éticos
envolvidos. Em termos gerais, não há como discordar da defesa de
valores morais universais, no sentido kantiano do termo, em
qualquer contexto, e os autores concordam com essa defesa. A
própria definição do objeto PC, por sua vez, não é muito
claramente limitada na realidade social contemporânea. A fim de
evitar alongar um debate que, em última instância, poderia vir a
ser pouco produtivo, o texto atribui a percepção da crítica PC
ao próprio sujeito social agente da denúncia, o qual, ao
fazê-la, coloca-se alinhado com esta posição política, embora
sem aprofundar uma definição, inclusive etimológica, da sua
natureza. Em outros termos, tem-se a impressão de que os membros
do campo definem a si mesmos de uma forma bastante pragmática,
reconhecendo-se basicamente pelo desenvolvimento da prática
política comum.
Cabe também
apontar que existe uma reflexão sobre o potencial que as
palavras possuem de ferir, machucar e violentar quando usadas
num contexto social. É interessante separar aqui diferentes
formas teóricas de aproximação ao objeto estudado. A crítica
PC, como o próprio nome diz, é política no sentido de lidar
com grupos no âmbito das relações de poder. Vale notar,
inclusive, que o próprio denunciante não precisa
necessariamente pertencer ao grupo que está sendo defendido na
denúncia. Já a discussão sobre a violência verbal, presente
nas relações intersubjetivas, aparece com mais frequência no
campo das pesquisas sobre assédio moral e bullying, geralmente
dialogando com o estudo da psicologia, numa relação em que
geralmente fica bem claro o sujeito social individual que
sofre a violência da ação. Ambas as questões relacionam-se ao
campo institucional do direito, porém, ao nosso ver, a partir
de recortes epistemológicos distintos. A ideia de que estes
dois campos teóricos possam ser aproximados, a partir de um
paradigma comum, é interessante e promissora. Explorar esse
caminho, contudo, transcende as condições deste texto.
Por fim, procuramos concluir que a
crítica PC opera, na verdade, dois movimentos de
descontextualização: o primeiro, ao interpretar literalmente a
expressão linguística, e o segundo, ao ocultar o sujeito agente
da ação de crítica atrás da universalidade do valor defendido.
Algumas polêmicas atuais
O conceito PC surge, recentemente,
nos diferentes meios de comunicação de forma bastante polêmica.
Normalmente, parte de uma acusação que obriga a uma
justificação. Ao mesmo tempo, é um processo que rapidamente se
amplia e se reproduz nas redes sociais e sistemas eletrônicos de
informação.
Podemos citar como um exemplo desta
controvérsia o artigo de Maria Helena de Moura Neves (2014), em
que a autora comenta criticamente e de forma muito clara a
discussão sobre o verbete “cigano” presente no dicionário
Houaiss.
Com grande repercussão na imprensa,
o caso envolvendo os ciganos refere-se a um pedido feito, em
2012, pelo Ministério Público Federal de Uberlândia para que
fossem retirados de circulação exemplares do dicionário Houaiss,
sob alegação de que a obra continha ‘referências
preconceituosas’ e ‘racistas’ contra os ciganos. Registra o
documento que, entre os significados para a palavra cigano,
consta no Houaiss, como ‘uso pejorativo’ do termo, o seguinte:
‘que ou aquele que trapaceia; velhaco, burlador’ e ‘que é
apegado ao dinheiro; agiota, sovina’ (Neves, 2014, p. 139).
No Brasil existem duas grandes obras
de referência sobre a língua portuguesa (os dicionários),
indicadas normalmente pelo nome do autor. Antônio Houaiss
(1915-1999), um dos mais importantes pesquisadores brasileiros,
filólogo, crítico literário e tradutor, é autor do Dicionário
Houaiss da Língua Portuguesa, concluído após a sua morte. A
outra obra é o Novo Dicionário da Língua Portuguesa, publicado
em 1975 por Aurélio Buarque de Holanda (1910-1989), também
filólogo e crítico literário. Embora seja comum encontrar, entre
os intelectuais brasileiros, preferência por uma ou outra, ambas
as obras e os dois autores gozam de profundo respeito no meio
acadêmico. Convém lembrar que o Brasil foi, no passado, uma
colônia de Portugal, com quem compartilhou a língua e manteve um
diálogo permanente, nem sempre muito cordial, sobre sua evolução
e manifestações. A elaboração destas obras exigiu enorme
dedicação e disciplina dos autores, ainda mais se considerarmos
que o investimento em cultura no Brasil sempre foi precário.
Neste sentido, seus autores são vistos com muito carinho e
admiração.
Diante da surpresa, para não dizer
espanto, ao ver uma tentativa de censura a uma obra de
referência, ainda mais em se tratando do dicionário Houaiss,
Neves (2014) conclui:
A natureza dos enunciados do
dicionário é, indiscutivelmente, outra: o que essa obra faz é
uma meta-análise de usos linguísticos, e numa direção de mão
única, a do dicionarista para o usuário. Se um dicionário
registra acepções que correspondem a usos porventura
desabonadores a respeito de uma determinada classe de indivíduos
– como no recente episódio de que aqui se tratou – isso não abre
espaço e não cria cena para discussões que impliquem avaliação
sociopolítica do teor da obra lexicográfica. (p. 158)
Numa direção diferente da apontada
por Neves, há autores como Morato e Bentes (2017) que defendem
que o politicamente correto deve ser utilizado ideologicamente
como forma de pressão social. Para as autoras, mais do que uma
expressão, trata-se de “uma estratégia política fundamental das
sociedades pós-modernas” (p.14).
Sempre procurando
apontar polêmicas em torno do PC, podemos lembrar também da
discussão envolvendo a personagem negra Tia Nastácia, da obra
de Monteiro Lobato, e a acusação de racista endereçada ao
autor (Feres, 2013). Cabe aqui uma rápida apresentação. José
Monteiro Lobato (1882-1948) foi escritor e ativista político
engajado em causas nacionalistas; foi, ainda, um dos
precursores da indústria editorial no país e autor de uma obra
infantil, cujos personagens, muitas vezes inspirados no cotidiano de um passado
recente e componentes do folclore nacional, fizeram grande
sucesso em programas infantis, filmes e adaptações. Reinações
de Narizinho (1931), por exemplo, é considerado livro fundador
da literatura infantil brasileira.
A acusação de
racismo de que foi vítima o escritor gerou forte repercussão
na imprensa e na sociedade em geral, com reações exacerbadas e
nem sempre muito racionais, como ilustra o título de um artigo
da Revista Semanal Veja: “A estupidez politicamente correta – Atenção!
STF vai ‘julgar’ hoje Monteiro Lobato, tratado como criminoso.
Ou ainda: Ministro Fux censuraria Shakespeare?”. É provável
que parte da reação contrária à acusação de racismo, trazida
por defensores do PC, tenha sido exacerbada pela própria
natureza da obra “Histórias de Tia Nastácia”, cuja edição data
do início da década de 1920, fazendo parte das boas lembranças
da infância de muitos dos adultos de hoje. Outro elemento a
ser considerado é que, se de fato a personagem remete a uma
imagem das relações escravocratas do passado brasileiro, ela
também está associada à sabedoria popular, ou a uma sabedoria
inerente ao povo, e à sobrevivência da memória cultural do
folclore brasileiro a partir das histórias que ela conta e com
as quais encanta as crianças.
Mais recentemente, o sociólogo José
de Souza Martins (2019) reforça o incômodo com o tratamento que
a obra de Monteiro Lobato vem recebendo. Num artigo que começa
dizendo “nos últimos tempos, os zeladores do politicamente
correto ‘descobriram’ que Monteiro Lobato ‘seria racista’”
(p.1), o autor continua:
O sectarismo e a intolerância que se
difundem entre nós desde o início dos anos 1960 vêm alcançando
níveis que ultrapassam os limites da ignorância lícita. O
politicamente correto é incorreto quando despoja nossa
consciência social da poesia que é própria da vida e da
inteligência. A poesia das mediações e da totalidade que
desvenda os mistérios da aparência para nos revelar a essência
do que somos e não sabemos. Sem a perspectiva do todo, a obra de
Lobato se torna incompreensível, o que abre caminho pra o
descabido preconceito de leitor apressado e desatencioso”
(Martins, 2019, p. 3).
A falta de perspectiva histórica e a
descontextualização do assunto tratado são questões que
aparecem, de forma recorrente, na discussão sobre o PC.
Também foi objeto de comentários,
com certeza menos apaixonados, a mudança do título de um livro
de mistério da escritora inglesa Agatha Christie, chamado
originalmente “O Caso Dos Dez Negrinhos”. O título surge na nova
edição como “E Não Sobrou Nenhum”, seguindo a proposta da
publicação norte-americana. Soma-se aqui, além da mais ou menos
tradicional crítica à ingerência do PC na obra original, o fato
de que o novo título “entrega” o final do livro, o que numa obra
de mistério sempre pode vir a ser objeto de críticas.
Voltando às
discussões acadêmicas, o artigo de Neves (2014), com um título
bem sugestivo “Do ‘Politicamente Correto’ ao Incorretamente
Polido”, traz à tona aspectos que podem se tornar importantes,
como uma separação entre direita e esquerda, ou ainda
conservadores e progressistas. Essas disputas, como ilustram
os exemplos apontados, podem muitas vezes ser levadas a
extremos. É importante ressaltar que a discussão sobre o PC é atual e tem gerado
bastante polêmica. Uma reação contrária da imprensa, ou de
setores significativos da sociedade, não aponta
necessariamente para um juízo de valor negativo. Na verdade,
não é raro que novas posturas, avançadas e comprometidas,
portadoras de valores positivos e que se tornarão consenso num
futuro próximo, recebam uma acolhida inicial crítica por parte
tanto dos meios de comunicação como da própria população
envolvida.
Em vista dessa polêmica, nós nos
propomos a refletir sobre como acontece essa crítica e seus
principais elementos constitutivos, procurando preservar, na
medida do possível, um distanciamento, tanto em relação ao valor
da crítica PC como àquele da crítica à crítica PC.
O Politicamente Correto e as
críticas ao Politicamente Correto
Weinmann (2014, s.n.) apresenta um
bom resumo das principais linhas críticas ao PC. Escreve ele:
Ato contínuo, ocupamo-nos das três
principais críticas endereçadas ao PC por alguns dos trabalhos
revisados: 1) o PC é equivocado, em termos linguísticos, na
medida em que pressupõe uma relação unívoca entre a palavra e
seu referente; 2) o PC é politicamente ingênuo, pois pretende
resolver o problema das relações sociais discriminatórias por
meio da mudança de palavras; e 3) o PC possui uma vocação
autoritária, uma vez que acarreta a restrição da liberdade de
expressão. A análise dessas críticas mostra que a questão é
muito mais complexa do que as abordagens maniqueístas costumam
apontar.
Este conjunto de críticas,
essencialmente correto, talvez não reflita bem a importância
relativa de cada um dos pontos. Da perspectiva das ciências
humanas, talvez uma questão anteceda as outras: a falta de
contextualização rigorosa do uso da expressão linguística. O
pesquisador em ciências humanas, muito mais que o leigo e até
mesmo que o pesquisador das outras áreas de conhecimento, é
fortemente treinado para sempre situar o objeto estudado no
interior das relações sociais que lhe dão sentido e coerência.
As acusações que partem dos grupos
defensores do PC quase sempre priorizam a denúncia da expressão
linguística em si mesma. Os casos antes citados ilustram, pelo
menos em parte, essa característica. Para um historiador, um
jornalista ou um cientista social, soa muito estranho julgar um
verbete de um dicionário, ou um trecho de uma obra escrita há
cem anos, sem levar em conta sua natureza específica no interior
do contexto original.
Numa linha de raciocínio similar,
podemos citar também Borges (1996):
São muitas as
maneiras pelas quais o politicamente correto pode ser
interpretado: a) reação política (ecológica) para proteger o
direito daqueles que historicamente vêm sendo discriminados
por segmentos de maior poder; b) modismo típico dos anos 80 –
90; c) prática censória que põe em evidência comportamentos
socialmente reprováveis; d) ética que se constitui a partir da
insistência quanto à reformulação da linguagem, coibindo
certas expressões de nomeação, literais ou metafóricas, dadas
como discriminatórias (o termo negro, por exemplo), e
prescrevendo piadas sexistas ou étnicas, etc. Ao se instituir,
entretanto, como vigilância ou patrulhamento, a militância
politicamente correta silencia, no não-dito da sua
fraseologia, acerca das origens sócio-históricas daquilo que
tão acerbamente deseja modificar. Estabelece uma prática
discursiva que condena atitudes e palavras discriminatórias,
sem, contudo, se pronunciar, via de regra, a respeito dos condicionantes históricos que se encontram na
‘posição inaugural do sócio-histórico e do imaginário social’
(Castoriadis), e que fornecem sustentação ideológica a essas
atitudes e palavras politicamente incorretas. (p. 110)
Encontramos novamente aqui a
descontextualização, ou, nos termos do autor, um descolamento em
relação aos condicionantes históricos. Essa é uma visão
recorrente, normalmente associada a dois movimentos distintos,
porém complementares. Por um lado, enfraquece a qualidade da
crítica original do PC, já que empobrece a exposição e, por
outro, abre espaço para as acusações de uma posição autoritária
ou persecutória assumida pelos defensores do PC.
Maria H. de Moura Neves (2012)
participa deste debate, mas de uma forma que parece mais
assertiva:
O ‘politicamente correto’ é,
atualmente, bandeira que se levanta para interpretar atos do dia
a dia, numa onda de patrulhamento que tem presença notável na
sociedade, com dupla influência e significação: bem-intencionada
que é, cria a impossibilidade de qualquer refutação, parecendo
intolerável que seja condenada, ou que seja sequer questionada;
por outro lado, mal inserida nas mais diversas atividades, como
indiscriminadamente vem sendo, é tão intolerável quanto as
próprias incorreções políticas. (p. 203)
Mesmo nesta linguagem mais direta, a
observação sobre o fato de as denúncias de natureza PC serem mal
e indiscriminadamente inseridas nos remete, mais uma vez, ao
problema de uma acusação de não contextualização da discussão de
forma mais rigorosa, como ilustram os exemplos apresentados no
início.
A contribuição de Norman Fairclough
Norman Fairclough
é um dos fundadores da análise crítica do discurso (ACD). Em
seu artigo “Political corretness: the politics of culture and
language” (2003), o autor coloca a questão da linguagem no
centro da reflexão. Segundo ele, a controvérsia do PC é apenas parcialmente uma controvérsia sobre a
linguagem.
O autor vê o PC
como uma tentativa de grupos específicos, feministas e
antiracistas, de mudar o comportamento e a linguagem utilizada
dentro de espaços específicos, como locais de trabalho ou
escolas.
A "correção
política" e ser "politicamente correta" são, na maior parte,
identificações impostas às pessoas por seus adversários
políticos. Mas isso por si só também é uma forma de política
cultural, uma intervenção para mudar representações, valores e
identidades como uma maneira de alcançar a mudança social
(Cameron, 1995). E se baseou principalmente na cumplicidade de
seções da mídia. (Fairclough, 2003,
p.21, tradução nossa)
Fairclough percebe
a questão do PC num contexto de conflitos e destaca a importância da percepção de uma
identidade direta entre o que é dito e seu significado,
voltando à questão da descontextualização do discurso. O autor
apresenta uma distinção entre as três maneiras principais
pelas quais o discurso figura nas práticas sociais: (a) o
discurso enquanto representações posicionadas, incluindo a
autorrepresentação reflexiva de práticas sociais, (b) o
discurso enquanto gênero (por exemplo, entrevista, palestra ou
conversa) e, em terceiro lugar, (c) como estilo, onde o autor
vai apontar a diferença discursiva, por exemplo, entre um
líder político e um gerente de uma empresa.
Deixe-me
distinguir entre três maneiras principais nas quais o discurso
figura nas práticas sociais. Ele figura primeiro como
discursos (note a distinção entre "discurso" como substantivo
abstrato e como substantivo de contagem - o último é apenas um
aspecto do primeiro). Os discursos são representações
posicionadas (incluindo autorrepresentações reflexivas de
práticas sociais) - posicionadas no sentido de que diferentes
posições nas relações sociais de uma prática social tendem a
dar origem a diferentes representações. Em segundo lugar,
figura como gêneros - modos de agir e interagir em seu aspecto
discursivo (mais amplamente: semiótico). Por exemplo,
entrevistas, palestras e conversas são gêneros. Em terceiro
lugar, figura como estilos - modos de ser, identidades, em seu
aspecto discursivo (semiótico). Por exemplo, existem várias
maneiras de ser um líder político ou um gerente, que são
parcialmente corporais e parcialmente discursivas.
(Fairclough, 2003, p.23, tradução
nossa)
Fairclough parece avançar na
percepção da descontextualização do discurso operada pela
crítica PC. Ao perceber o conceito falado de forma literal,
ignora-se, por um lado, toda a carga histórica e social que
envolve sua manifestação e, por outro lado, os aspectos internos
constitutivos do discurso apontados pelo autor: (a) quem fala e
qual o conjunto de valores que ele carrega, (b) as
circunstâncias da articulação da fala, seu lugar de origem e (c)
a forma da expressão e o seu efeito no meio mais amplo.
Esta tipificação ilustra, pelo
menos parcialmente, os problemas conceituais que a discussão
sobre o PC incorpora ao definir uma linguagem como correta em
contraposição a outras “incorretas”. O PC estaria, assim,
incorrendo numa generalização dos diferentes tipos de discursos
possíveis. Ou seja, Fairclough nos permite perceber com mais
profundidade e complexidade o processo de descontextualizão da
crítica PC, em comparação ao que foi apontado pelas colocações
citadas anteriormente. Não se trata simplesmente de abordar a
fala fora de seu contexto, mas também de empobrecer a
complexidade semiótica expressa na fala.
Fairclough (2003)
alerta para uma questão interessante: apontar uma forma de
falar não leva, necessariamente, à
transformação de hábitos.
Além disso, a
promulgação relativamente bem-sucedida não garante a
inculcação relativamente bem-sucedida: há um estágio de
inculcar em que as pessoas podem aceitar novos discursos sem
aceitá-las - podem expressá-las retoricamente, para fins
estratégicos e instrumentais, como acontece, por exemplo, com
o mercado,
discurso em serviços públicos, como a educação. (Fairclough, 2003, p.25-26, tradução nossa).
As pessoas, os
sujeitos sociais, podem se expressar retoricamente com fins
estratégicos e instrumentais, apresentado um comportamento
teatralizado, como acontece, por exemplo, no discurso em
serviços públicos, na educação formal ou na empresa. Mesmo os
defensores do PC, ao construírem estratégias como, por
exemplo, a cartilha de 2004 da Secretaria Especial de Direitos
Humanos “Politicamente Correto e Direitos Humanos”, acabam
utilizando o sistema político como forma de controle da
linguagem. Existem avanços, o principal seria alertar para uma
serie de expressões que promovem estigmas e estereótipos. Mas
a análise de Fairclough aponta para a descontextualização do
processo discursivo e reitera que a transformação da sociedade
pode se dar por outros meios, como, por exemplo, a educação
informal ou o espaço do exercício da sociabilidade espontânea.
Na perspectiva
apontada neste artigo, Fairclough vai levar o debate a um nível de complexidade
maior do que as posições até aqui observadas. Por um lado, a
crítica do PC não apenas descontextualiza o discurso como
também empobrece a própria reflexão sobre o discurso, ao
relacionar diretamente o que é literalmente expressado com o
que isso quer dizer no contexto em que é usado. Além disso,
ignora as diferentes acepções que o discurso pode assumir
(representação posicionada, gênero e estilo).
A dupla descontextualização
Fairclough traz contribuições
importantes para avançar na reflexão a respeito da natureza do
PC. Para além do que o autor aponta, mas seguindo uma
linha de reflexão articulada com ele, é importante destacar a
relação entre a acusação do uso incorreto da linguagem e os
sujeitos sociais envolvidos no processo de confronto.
Aparentemente, toda discussão sobre o PC parte da transgressão a
um valor universal comumente aceito pelo ambiente em que todos
atuam e que todos compartilham.
A primeira questão que se coloca é a
definição de valores universais. No sentido de evitar polêmicas
e para não aprofundar um debate com o campo da ética na
filosofia, podemos tomar como referência mais ou menos
consensual a carta das Nações Unidas sobre os Direitos Humanos,
na qual encontramos como valores universais o respeito à
dignidade humana, à liberdade, igualdade e solidariedade.
O respeito a estes valores está
relacionado, portanto, ao respeito a valores gerais fruto de um
consenso mais amplo na sociedade. Esta “generalidade” do valor,
contudo, não pode e não deve ser transferida mecanicamente ao
sujeito social que apregoa a sua defesa, num contexto histórico
e político específico. A sua correta interpretação passa pela
necessidade de contextualizar de onde parte e como se dá,
concretamente, a sua manifestação. Vamos usar um exemplo bem
apelativo para tentar ilustrar a ideia aqui apresentada. Quando
Hitler aparece numa foto segurando uma criancinha sorridente,
ele está se baseando num valor universal, o de que as crianças
devem ser protegidas e acalentadas no seio da sociedade, dadas a
sua inerente fragilidade e incapacidade de se defenderem por si
mesmas. A foto, contudo, tem uma função política, em que o
ditador alemão tenta usar um valor universal e verdadeiro
politicamente para legitimar e fortalecer um grupo específico e
seu projeto de conquista e manutenção do poder. Ou seja,
independentemente do valor universal que se depreende de
imediato da foto, ela precisa ser contextualizada para poder ser
interpretada corretamente.
No caso da crítica PC o que
encontramos é uma dupla descontextualização. Pensemos nas
manifestações apontadas no início do artigo. Tomemos como
exemplo a acusação do racismo que estaria presente na obra
Monteiro Lobato. Como já foi colocado por outros pesquisadores,
as relações sociais que o autor descreve são retiradas de seu
contexto original (histórico, social, político, cultural),
tornando-se passíveis de uma crítica a partir de uma visão
contemporânea, à qual o autor, inclusive por estar morto, não
pode responder. Esta é a primeira descontextualização presente.
Mas o processo incorpora uma segunda descontextualização: quem,
onde e por que se faz a denúncia da incorreção? Qual sua origem
e função política? Uma denúncia desta natureza não acontece no
vazio, mesmo que o autor se esconda atrás da generalidade e
legitimidade de um valor universal, aceito sem maiores
resistências pela maioria da sociedade. A aceitação do valor, a
exemplo do caso da foto de Hitler, não isenta a denúncia da sua
dimensão política.
No outro exemplo citado, o caso do
verbete “cigano” no dicionário Houaiss, a fonte de origem é o
Ministério Público de Uberlândia, município do interior do
estado de Minas Gerais, mas não fica especificado se atende a
uma denúncia de alguma autoridade, organização social, ou se age
por iniciativa própria. Na discussão sobre o escritor Monteiro
Lobato a fonte original da crítica não é explicitada.
É importante deixar claro que os
autores de uma denúncia de incorreção política podem ser
bem-intencionados e buscar de forma desinteressada incentivar
relações sociais éticas e justas. Contudo, isto não é um dado de
realidade imediato, que deva ser aceito sem alguma pesquisa que
contextualize a ação do sujeito social.
Os próprios atos de fala, que Austin
(1990) debate na sua obra maior “How to do Things With Words”,
são referências importantes para pensar este processo. O
filósofo Danilo Marcondes de Souza Filho faz a tradução da obra
para o português e escreve a apresentação da edição brasileira,
em que comenta:
Tanto do ponto de vista do uso da
linguagem ordinária, quanto do ponto de vista de uma teoria da
linguagem, a visão de Austin é sempre orientada pela
consideração da linguagem a partir de seu uso, ou seja, da
linguagem como forma de ação. Uma das principais consequências
desta nova concepção de linguagem consiste no fato da análise da
sentença dar lugar à análise do ato de fala, do uso da linguagem
em um determinado contexto, com uma determinada finalidade e de
acordo com certas normas e convenções. O que se analisa agora
não é mais a estrutura da sentença com seus elementos
constitutivos, isto é, o nome e o predicado, ou o sentido e a
referência, mas as condições sob as quais o uso de determinadas
expressões linguísticas produzem certos efeitos e consequências
em uma dada situação. (Austin, 1990, p. 11)
Não se trata aqui
de pretender aprofundar uma discussão sobre a filosofia da
linguagem ou da virada linguística (linguistic
turn), mas parece interessante
destacar como Austin, no fim da década de quarenta, vai
apontar a importância das condições concretas em que uma
expressão linguística é usada para
sua correta compreensão. Neste sentido, convém ter presente
que a legitimidade de um valor universal não se transfere
mecanicamente ao porta-voz da sua defesa, num contexto
histórico e temporal específico.
O conflito entre
valores
Outro problema da crítica PC é que
ela sempre coloca em concorrência dois valores de naturezas
diferentes. De um lado, está o valor defendido pela crítica PC,
que pode ser uma posição justa com relação a questões de gênero
ou etnia, por exemplo. E, do outro lado, está o valor referente
ao direito inalienável de livre expressão das ideias. A questão
fundamental da crítica PC não está na justiça da sua denúncia,
mas em convencer as pessoas a que se dirige de que a defesa
deste valor justifica uma agressão a outro valor socialmente
constituído: a liberdade de expressão.
Esse aspecto é bem
elaborado por Kholberg (1973, 1992) quando
ele se refere ao sexto e último nível de desenvolvimento
moral. Neste nível, as decisões são tomadas através da
comparação da diferença de importância relativa entre dois
valores envolvidos. Numa situação de conflito de valores, por
exemplo, respeito à vida é mais importante que o respeito à
propriedade (porque um dano à propriedade pode vir a ser
posteriormente ressarcido enquanto o dano à vida é
irreversível). Habermas (1989) vai
dialogar com Kholberg estruturando as ideas em duas frentes:
Moral e Direito. Estes têm um papel regulador no agir pelo
entedimento, seja como forma de relacionamento social
(respeito à moral), ou como forma de defender-se de uma ação
ofensiva (recurso jurídico). A sociedade construiu o direito
com base em seus imperativos morais. Isto significa dizer que,
para Habermas, moral e direito asseguram o consenso, mesmo
quando o entendimento não é alçançado. Habermas vai citar a
obra Lawrence Kohlberg e destacar a teoria dos níveis de
desenvolvimento moral para mostrar que as falhas em obter um
consenso coletivo são mais ligadas à formação das pessoas do
que efeito da complexidade da questão em discussão.
Em 1963, Kohlberg
publica “The development of children’s orientations toward a
moral order: sequence in the development of moral thought”. Neste trabalho, o autor esclarece que uma pessoa
no nível mais elevado de desenvolvimento moral, denominado
pós-convencional, agiria por princípios, e sua ética estaria
voltada à ética da consciência e da responsabilidade. O
direito, por sua vez, seria uma formalidade que deve ser
seguida desde que não atente contra os outros dois pilares: princípios e ética. Habermas também participa
deste debate, principalmente em seu texto “Consciência Moral e
Agir Comunicativo”, de 1989.
O importante aqui
é sublinhar que a crítica PC sempre (e a expressão ‘sempre’
tem aqui um forte sentido literal) se
contrapõe ao valor moral presente no
direito individual à livre expressão. Esta questão se torna
mais tensa porque a crítica PC tende a transitar sempre
(novamente em seu sentido forte) numa zona cinzenta, ou
nebulosa, já que quando a relação relativa entre os valores
(crítica PC e o direito à expressão) está muito clara, a ação
que está sendo criticada estará tipificada em lei como crime.
Injúrias, difamação e violência verbal, humilhação púbica,
discriminação por questões de gênero ou etnia não são
necessariamente objetos da crítica PC, mas objetos de
processos jurídicos passíveis de punição na forma prevista em
lei.
Comentário sobre o politicamente
incorreto e a internet na sociedade contemporânea
O PC acaba gerando uma reação,
denominada de pensamento politicamente incorreto, que procura
resgatar, ou priorizar, valores conservadores e tradicionais. A
discussão teve um forte impacto social no Brasil e inspirou
livros que se tornaram, durante um tempo, grandes sucessos de
vendas. Podemos citar, como exemplo, O Guia Politicamente
Incorreto da História de Brasil, de Leandro Narloch (2009), que
figurou entre os livros de não ficção mais vendidos no Brasil,
entre 2010 e 2012.
O politicamente incorreto
se diferencia do PC, pois, ao invés de focar no uso da linguagem
e na busca de sua transformação, prioriza uma reconstrução da
história e dos sujeitos sociais, numa linha que destaca valores
tradicionais e conservadores. O que parece importante apontar é
que, embora realmente haja uma diferença no objeto e na
apropriação formal que exercem tanto o PC como o politicamente
incorreto, parece existir uma forte coincidência na lógica de
tratamento das ideias, ou ainda na concepção epistemológica, que
ambos adotam. O politicamente incorreto também parece efetuar um
movimento de dupla descontextualização para acabar comprovando a
correção da sua posição.
Vamos tomar dois
exemplos extraídos do livro citado. O primeiro faz referência
às origens da feijoada, um prato típico da culinária
brasileira, associado em geral à comida dos africanos, que
chegaram ao país na condição de escravos. O Brasil é um país
de dimensões continentais e constituído de várias regiões
distintas, cada uma com uma forte tradição cultural e
culinária. Neste contexto, a
feijoada, um guiso de feijão preto com carne seca e partes de
porco, surge como um prato comum a várias regiões, o que lhe
dá uma característica nacional. O autor do Guia Politicamente
Incorreto vai sustentar que a feijoada não seria um prato
tipicamente brasileiro, uma vez que não havia entre negros e
índios o costume de misturar grãos com carne na comida e
também porque há exemplos desse tipo de mistura na culinária
internacional.
O autor vai fazer
referência também aos quilombos e a sua estrutura interna. O
Brasil é um dos últimos países do mundo a abolir a escravidão,
em 1888. Durante a vigência do sistema, surgem agrupamentos de
escravos fugidos (embora existam outras origens) que se
organizam, geralmente em regiões distantes, em uma estrutura
social chamada de quilombos. Apesar de existirem diversas formas
organizacionais de quilombos, eles são normalmente associados,
tanto na perspectiva política como no imaginário social, à luta
pela liberdade e à resistência contra formas violentas e
injustas de opressão e exploração. O autor vai questionar
as teóricas características igualitárias dos quilombos,
argumentando que em Palmares, provavelmente o mais conhecido dos
quilombos, havia uma hierarquia e que o próprio líder, Zumbi,
teria escravos de sua propriedade.
Há, em ambos os casos,
aspectos da dupla descontextualização, nos termos que procuramos
apontar anteriormente. A feijoada surge e se expande numa
determinada região e momento específicos, onde se cruzam
diferentes influências, desde uma herança cultural africana até
as condições próprias da experiência colonial portuguesa no
Brasil. Da mesma forma, a organização quilombola se constrói,
dialogando e sofrendo as diferentes influências do seu meio e do
momento em que ocorre. Não podem, portanto, serem explicados por
uma única característica, ainda mais se esta característica é
retirada de seu contexto mais amplo.
E também aqui
podemos perceber, a exemplo do que ocorre com a crítica PC,
uma segunda descontextualização. O sujeito agente da ação da
crítica não se apresenta politicamente. Não fica explicitado a
que grupo ou a que corrente ideológica ou cultural serve
descaracterizar a brasilidade da feijoada ou o progressismo
organizacional de Palmares. Há um evidente pano de fundo
político que permanece oculto, ou pelo menos não claramente
referenciado. No primeiro caso, há uma aparente intenção de
deslegitimar a brasilidade de uma comida de origem popular ou,
mais especificamente, dos escravos africanos trazidos ao
Brasil. No segundo caso, ao destacar que organizações que se
originam em formas de resistência popular reproduzem as mesmas
formas de opressão contra as quais teriam se revoltado, o
autor se coloca de um ponto de vista conservador no campo das
ideias políticas.
Com relação à
questão mais ampla do PC, outra questão que parece importante
apontar é a forma como a informação se dissemina por meios
eletrônicos na sociedade contemporânea. Há uma discussão
importante e acalorada sobre a internet, se, de fato, ela
democratizou o acesso à informação ou, pelo contrário,
rebaixou o debate e permitiu que uma enorme legião de pessoas
despreparadas e desinformadas opinasse sobre tudo. O
importante filósofo italiano Umberto Eco, em 2015, numa
cerimônia em que recebeu o título honoris-causa em comunicação e cultura na Universidade de
Turim, fez uma análise que ficou famosa. Diz ele: “As mídias
sociais deram o direito à fala a legiões de imbecis que,
anteriormente, falavam só no bar depois de uma taça de vinho,
sem causar dano à coletividade. Diziam imediatamente a eles
para calar a boca, enquanto agora eles têm o mesmo direito à
fala que um ganhador do Prêmio Nobel. O drama da internet é
que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade”.
Não se trata aqui de
desenvolver uma discussão sobre as características das
interações comunicativas na sociedade contemporânea e, muito
menos, de discutir com Umberto Eco. A intenção é, apenas,
apontar para o fato de que a expansão da crítica PC parece
favorecer-se com as características da internet, como a
velocidade da divulgação e o anonimato do autor.
Outro aspecto que provavelmente tem
relação com a crítica PC e a sociedade contemporânea é a
fragmentação política, o descolamento da ação política de grupos
politicamente fortes e coerentes, seja de direita ou de
esquerda, para setores mais pulverizados da opinião pública.
Embora num segundo momento haja uma evidente utilização
das acusações PC (e incorretas) por grupos políticos com
ideologias mais claras, num primeiro momento, as críticas
parecem surgir de sujeitos individuais, ou de pequenos grupos,
identificados com alguma causa específica e delimitada, como
questões de gênero, por exemplo, que não possuem necessariamente
um alinhamento mais claro e orgânico em termos da política
tradicional. Podemos pensar aqui algumas posições de teóricos
pós-modernos, como Lyotard por exemplo, e ainda as discussões
sobre identidade apontadas por Stuart Hall.
Observações finais (uma forte
fragilidade)
A crítica PC é feita, de uma forma
geral, a partir da defesa de um valor universal compartilhado
pelo meio social em que ela acontece e, muitas vezes,
compartilhado inclusive pelo próprio sujeito a quem a crítica se
dirige. Isto provoca, na maioria dos casos, uma resposta
tentando justificar que a verdadeira intenção não era a de se
afastar do valor em questão. Muitas vezes a crítica PC vai fazer
uso de uma expressão linguística ou artística fora do contexto
original em que fora criada, ou seja, descontextualizada, como
apontam os exemplos iniciais de Monteiro Lobato e do Dicionário
Houaiss.
Fairclough avança a discussão
trazendo não só o aspecto de empobrecimento da reflexão sobre o
discurso ao se fazer uma interpretação literal do termo da fala
como também o fato da crítica ignorar as diferentes acepções que
o discurso pode assumir.
Procuramos também destacar aqui,
seguindo a mesma linha de raciocínio, a importância de conhecer
o sujeito agente da ação da crítica PC (e incorreta) e o
contexto em que ela se dá. A crítica não se origina num espaço
neutro ou num vácuo social. Ela só vai poder ser corretamente
compreendida a partir do momento em que são conhecidas as
características do meio social de onde provém e a lógica
política que move a ação dos seus autores. Habermas e Kholberg
ajudam a perceber a existência de um conflito entre um valor
específico que a denúncia PC (e incorreta) defende e o direito à
liberdade de expressão.
Pensamos, portanto, que o conceito
de PC deve ser percebido sempre como uma manifestação
constituída por tensões internas, levando em conta a sua
natureza de dupla descontextualização, entendida aqui como (a)
uma descontextualização do termo da fala com relação à sua
posição histórica e social original e (b) uma
descontextualização do autor da crítica PC com relação à sua
identidade, ambiente e interesses políticos.
No caso brasileiro, esta discussão
parece ocorrer de uma forma pouco original, procurando
essencialmente reproduzir movimentos similares aos que ocorreram
no exterior, principalmente nos EUA, gerando inclusive
resistências e críticas muito parecidas às que podem ser
observadas ali. Talvez o movimento mais original seja a ideia de
reescrever a própria história num sentido de certa forma
inverso.
Por fim, apontamos para a
importância de, em outro momento, aprofundarmos uma reflexão
sobre estes temas e sua articulação com o impacto da internet
nas comunicações e a fragmentação da ação individual e de grupos
políticos na sociedade contemporânea.
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Revisão do
Português, formatação, e preparação: Maria Thereza Sampaio
Lucinio – thesampaio@uol.com.br . English version: Viviane Ramos-vivianeramos@gmail.com
Universidade de São Paulo – USP, EACH, São
Paulo, SP, Brasil. https://orcid.org/0000-0003-0632-2943, marcobettine@usp.br
Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP,
Campinas, SP, Brasil. https://orcid.org/
0000-0002-2383-8696, gustavoluigutierrez@gmail.com
Universidade Estadual de Campinas –
UNICAMP, Campinas, SP, Brasil. https://orcid.org/
0000-0002-5584-8338 diegomonteiroguterrez@gmail.com