Cadernos PROMUSPP, São Paulo, v.2 n.1, jan./mar. 2022    ISSN 2764-4510



Mimimi: por que a pesquisadora feminista aqui não quer calar a boca

 

Anna Carolina Longano1

 

Resumo: Este é um texto violento, com leitura indicada para pessoas maiores de idade e com estômago forte, que parte de uma provocação: ainda é relevante pesquisar Mulheres? Entendendo Mulheres como um campo de estudo, o texto embasado na teoria feminista apresenta a violência contra as mulheres através da memória, silenciamento e esquecimento histórico de nossos corpos. A partir de uma crítica artística ocorrida em 2018, estudos anatômicos de III a.C. e uma investigação jornalística de 2021, o texto analisa como diversas violências aconteceram e acontecem contra as mulheres. Vencendo o medo e rompendo o silêncio, o texto pretende esclarecer a importância e relevância da realização de produção, comunicação e ampla divulgação de conhecimento de Mulheres.

Palavras-chave: Mulheres. Feminismo. Corpo. Memória. Esquecimento.

 

Whining: why the feminist researcher here doesn't want to shut up

Abstract: This is a violent text, to be read for 18 + people and with a strong stomach, which is part of a provocation: is it still relevant to do Women’s Studies? Understanding Women as a field of study, the text based on feminist theory presents violence against women through memory, silencing and the historical forgetfulness of our bodies. Based on an artistic criticism that took place in 2018, anatomical studies from III B.C. and a journalistic investigation from 2021, the text analyzes how different types of violence happened and happen against women. Overcoming fear and breaking the silence, the text intends to clarify the importance and relevance of the production, communication and wide dissemination of knowledge of Women.

Key Words: Women. Feminism. Body. Memory. Forgetfulness.

 

Quejidos: por qué la investigadora feminista aquí no quiere callar

Resumen: Este es un texto violento, para ser leído por personas mayores y con estómago fuerte, que forma parte de una provocación: ¿sigue siendo relevante investigar Mujeres? Entendiendo Mujeres como campo de estudio, el texto basado en la teoría feminista presenta la violencia contra la mujer a través de la memoria, el silenciamiento y el olvido histórico de nuestros cuerpos. A partir de una crítica artística realizada en 2018, estudios anatómicos del III a.C. y una investigación periodística de 2021, el texto analiza cómo sucedieron y suceden diferentes tipos de violencia contra las mujeres. Superando el miedo y rompiendo el silencio, el texto pretende esclarecer la importancia y relevancia de la producción, comunicación y amplia difusión del conocimiento de Mujeres.

Palabras claves: Mujeres. Feminismo. Cuerpo. Memoria. Olvido.

 

Pleurnicher : pourquoi la chercheuse féministe ici ne veut pas se taire

Résumé: Il s'agit d'un texte violent, à lire pour les personnes âgées et au ventre fort, qui fait partie d'une provocation: est-il toujours pertinent pour la recherche sur les Femmes? Comprenant les Femmes comme un champ d'étude, le texte basé sur la théorie féministe présente la violence contre les femmes à travers la mémoire, le silence et l'oubli historique de nos corps. Sur la base d'une critique artistique qui a eu lieu en 2018, d'études anatomiques de III B.C. et d'une enquête journalistique de 2021, le texte analyse comment différents types de violence se sont produits et se produisent contre les femmes. Surmonter la peur et rompre le silence, le texte entend clarifier l'importance et la pertinence de la production, de la communication et de la large diffusion des connaissances des Femmes.

Mots clés: Femmesn, Féminisme, Corps, Mémoire, Oubli.

 

Fazendo pesquisa ou mimimi?

[...] enfrentamos resistência na forma de uma pergunta que nos foi feita repetidas vezes: por que apenas artistas mulheres? Essa pergunta frequentemente era seguida da observação questionável, e talvez descaradamente ofensiva, de que “artistas mulheres estão na moda”. Alguns diziam que as artistas mulheres já haviam conquistado o reconhecimento que lhes era devido e que, portanto, a mostra não só era desnecessária como não deveria ser feita, porque confirmava a ideia de que a América Latina é machista [...] Um célebre artista conceitual reconheceu que as mulheres haviam sido, sistematicamente, marginalizadas, mas explicou que ele não tinha a autoridade moral para remediar a situação. Ele professou sua falta de interesse e prosseguiu declarando que, dada a emergência de perspectivas contemporâneas relativas a, por exemplo, estudos sobre a arte queer, uma exposição dedicada a artistas mulheres, além de ser irrelevante, era ultrapassada. [grifos nossos] (Giunta & Fajardo-Hill, 2018, p. 18)

 

        Esse relato foi feito pelas duas curadoras, a venezuelana Cecilia Fajardo-Hill e a argentina Andrea Giunta, sobre o processo de pesquisa da exposição Mulheres Radicais: arte latino-americana, 1965-1980. Esta exposição ficou em cartaz na cidade de São Paulo em 2018, e foi apenas na leitura de um livro sobre a exposição que fiquei sabendo sobre seu processo de produção.

         Faz dois anos que li pela primeira vez esse relato, e essa história não sai da minha cabeça. Artistas mulheres estão na moda? Então devo ser bem incompetente, porque sou artista há anos e ainda não consegui meu lugar ao sol...

 Mas nem é isso o que fazia essa história sempre voltar à minha cabeça. Pesquisar, registrar, documentar e comunicar pesquisas dedicadas às mulheres são ações, além de irrelevantes, ultrapassadas? Sério? São mesmo? E o que estou fazendo aqui, em 2021, realizando uma investigação acadêmica de Mulheres? Uma pesquisa irrelevante e ultrapassada?

        Bem, algumas palavras grudam na nossa cabeça e a gente não consegue tirar. Eu sei que esse célebre artista está errado, mas ao mesmo tempo consigo duvidar de mim mesma, com base nesse comentário dele... Eu sinto, vejo, leio, estudo e vivo o suficiente para entender, saber, sentir que estudar Mulheres é fundamental e urgente.  Se você quiser enquadrar minhas referências científicas não hegemônicas a partir de métodos positivistas de se fazer Ciência, posso até provar como é importante e relevante isso aqui que estou fazendo. E, ainda assim, esse relato, essa história e esse cidadão voltam à minha cabeça, tão fortes como se tudo isso tivesse acontecido comigo, virado mais uma memória de violência contra meu corpo, dentre as tantas que já tenho.

        Se o célebre artista, ao fazer seu mansplaining, afirmou não ter a autoridade moral para remediar a marginalização das mulheres na arte, eu tenho. Tenho autoridade moral, falta de vergonha e/ou coragem. Porque uma das coisas que aprendi é que você pode ser uma vítima incontestável de uma violência extrema, mas se abrir a boca e apontar quem foram/são as pessoas, sistemas e organizações responsáveis por te oprimirem, você passa, em um piscar de olhos, de vítima a culpada.

        Ao investigar Mulheres não estamos totalmente sem referências de possibilidades de se construir uma investigação sem reproduzir os valores, ferramentas e processos que nos excluíram por tanto tempo da produção de conhecimento. No mesmo livro sobre a exposição, aprendi que algumas artistas mulheres, para produzir suas artes, usavam “termos vulgares para descrever” suas experiências, como “uma estratégia de liberação que começava com as mulheres usando e assumindo palavras que, essencialmente, lhes haviam sido negadas” (Melendi, 2018, p. 230).

 Parto dessa sacada genial dessas artistas como referência para a escrita deste texto a partir de agora. Estou falando, desde a primeira linha, sobre violência contra mulheres. Diversos tipos de violências que podem ser executadas contra os corpos daquelas que se identificam como mulher. E, como ressalta a artista mexicana Ileana Diéguez (2016), “a violência transforma a vida, os modos de representação, a linguagem, as imagens” (p. 34).

 A violência que vivemos diariamente, sistemicamente, há muitos, muitos anos, tinha que aparecer nesse texto, escorrer pelas linhas, descer pelos seus olhos arregaçando suas entranhas. Obviamente, eu não sei como fazer essa porra.

 Mas sei quando dizem que sou violenta: quando me aproprio das palavras, do linguajar, dos palavrões e do jeito de falar que definem, para mim, como masculinos.

        Caralho, eu falar/escrever assim é violento? Se foder, violento é essa língua excludente que me obrigam há anos a falar, escrever e ler. Mas, na verdade, talvez os palavrões não sejam a melhor estratégia. Mais violento do que qualquer termo é sabermos que a generalização é sempre feita no masculino, e que quando se trata de nós, “aqueles que têm importância, um lugar de fala, um status de sujeito político, de cidadania, de autoridade”, estamos falando de um nós masculino (Navarro-Swain, 2013, p. 51)!

        A generalização feita dessa forma já me exclui, já evidencia que eu não faço parte daquilo, deixando as outras vozes, os corpos que não são os hegemônicos, no espaço de exclusão, esquecimento, no subterrâneo das entrelinhas. Na verdade, escrever tudo isso colocando sempre um “o” no final é muito mais violento do que qualquer palavrão...

        Confesso que, junto com essa reflexão, caminha junto uma covardia em saber que um texto repleto de palavrões resultaria em uma avaliação negativa de uma banca avaliadora, fazendo o texto terminar em uma pasta qualquer do meu notebook. Bem, se você está me lendo, sabe que, pelo menos parcialmente, este texto foi aceito e que há espaços para realizarmos pesquisas acadêmicas partindo de referências não hegemônicas e de propostas diferentes de comunicação de conhecimento. E que, para mais alguém além de mim, esse mimimi irrelevante e ultrapassado que chamo de pesquisa produziu interesse.

        Diversas artistas latino-americanas presentes na exposição Mulheres Radicais: arte latino-americana, 1965-1980, mesmo sem se conversar, em diferentes tempos, países e línguas, acabavam usando estratégias em comum para produzir sua arte e criar outras representações do corpo de mulher. Entre essas estratégias estavam experimentações artísticas “para combater concepções patriarcais do corpo da mulher”, ações performáticas “com seus próprios corpos”; promoção de “novas narrativas e modos de experimentar o tempo e o corpo” e “estratégias multidisciplinares voltadas à desestabilização de expectativas culturais e ao convite à criação de novos imaginários” (Reiman, 2018, p. 271).

        É por isso que pego esse vocabulário que “age para solapar autoridade, a força e até o humor do que uma mulher tem a dizer” (Beard, 2018, p. 40) e o uso aqui. Pego as tentativas de trivializar nossos saberes, nossas lutas e nossos corpos, e as coloco aqui, no texto, através de expressões como mimimi ou histeria. E aí, continua sendo engraçado quando sai da minha boca? Ou estou exagerando o que era só uma brincadeira inocente?

        Bom, para terminar essa histeria introdutória, trago uma última coisa: não quero sua empatia. Não quero que você se coloque no meu lugar, ou no lugar de algumas mulheres, para imaginar ou “entender” nossa dor por uma analogia. Não quero que você calce um sapato de salto, ande com ele e, ao fim do dia, com o pé machucado e a coluna dolorida, venha dizer que sabe pelo que nós passamos.

        Em primeiro lugar, eu não uso sapato de salto, então pode tirá-lo do seu pé. Em segundo lugar, não quero que alguém tente compreender melhor nada, só peço que você me leia até o final e respeite o que estou trazendo, pelo ponto de vista que estou trazendo, embasada nos saberes que tenho.

        Você não precisa concordar. E, concordando ou não, não precisa se alterar dizendo que eu não estou incluindo tal coisa neste texto. Não, não estou, nem disse que o faria. Todo registro é parcial, pessoal, opinativo e limitado, como veremos logo mais.

        O que eu trago é: de salto alto ou não, ser mulher é muito, muito difícil!

 

 

Dá para pesquisar o que não existe?

 

         Antes de continuar, é bom esclarecermos umas coisinhas. Quando escrevo Mulheres, assim, com M, me refiro a um campo de estudo, e não a uma construção de um indivíduo com determinadas características físicas, anatômicas e comportamentais.

        Partindo das palavras de Tania Navarro-Swain (2013, p. 59), “para as feministas, o corpo das mulheres não é mais uma prisão identitária, mas uma superfície de transformações do pensamento e da apreensão do mundo, fora do esquema binário sexuado”.

        Lembro, então, de uma obra da artista plástica estadunidense Barbara Kruger (1989), feita em um momento no qual mulheres de Washington lutavam contra leis antiaborto:

 

Figura 01 – Seu corpo é um campo de batalha

 

Fonte: Kruger (1989).

 

        Esta obra traz à tona o corpo da mulher sendo usado pelas pessoas que estavam no poder como campo de batalhas políticas, morais, religiosas e sociais. O corpo de mulher ganha status de lugar, podendo ser invadido, dominado, disputado, conquistado. Para transformar esse campo de batalha em uma superfície de transformação, saímos do pensamento patriarcal e bélico, para falar de outro campo. Ao falar de Mulheres, falamos de um campo de estudos.

        A pesquisadora portuguesa Maria do Mar Pereira (2017), no livro Power, Knowledge and Feminist Scholarship: an ethnography of academia, foi responsável por introduzir este entendimento aos meus estudos. Ao usar o termo Women’s, Gender, Feminist Studies (WGFS), Maria apresenta o Estudo das Mulheres, Gênero e Feminismo não mais como temas, mas sim como um campo de estudo.

        A brasileira Marlise Matos (2008, p. 333), há mais de 10 anos já trazia Gênero e Feminismo como novo campo “nas ciências humanas e sociais e mesmo um novo campo epistêmico das ciências”. Parto das palavras de Marlise, acrescentando Mulheres a esse campo, entendo que Mulheres, Gênero e Feminismo não são entendidos como “conceitos, ferramentas ou construto analítico” (Marlise, 2008, p. 333), mas como campo de produção de conhecimento contra hegemônico, trazendo para o fazer científico e acadêmico outras referências, outras possibilidades de comunicação, outras perspectivas e questionamentos, estando as mulheres como sujeitas das pesquisas que realizam, e não mais objeto.

        Dentro desse campo de estudo não tão novo, mas ainda não reconhecido plenamente na Ciência e na Academia, estudo Mulheres a partir do corpo. Como corpos de mulheres vêm sendo entendidos, registrados, retratados, protegidos, violentados, lembrados e apagados na nossa história?

        Investigo corpos de mulheres entendendo e aceitando que não somos um grupo homogêneo, que não conseguirei abranger todas as possibilidades corporais de ser mulher e que meu olhar sempre será parcial e influenciado por quem sou.

          E é com essa consciência que afirmo que, se com meus privilégios, ser mulher é muito, muito difícil, imagino para outros corpos de mulheres. As minhas clivagens facilitam bastante a minha vida: sou branca, pós-graduanda, cis, hétero. As intersecções que formam uma mulher podem facilitar um pouco, ou dificultar muito, sua vida: raça, situação econômica, ser LGBTQI+, localização geográfica e segue uma longa lista...

        A questão é que quando você se identifica como mulher, você nunca estará em pé de igualdade com um padrão de homem, cis, hétero, branco, rico, estudado etc. Temendo que essa frase seja interpretada como genérica demais e minimizada, faço então um recorte para o campo jurídico.

        Segundo o relatório Meu corpo me pertence: reivindicando o direito à autonomia e à autodeterminação (2021), em todo o mundo, as mulheres têm apenas 75% dos direitos legais existentes para os homens, ou melhor, para os que são compreendidos como homens por quem faz essas leis.  Você pode estar próxima de ter os 100% de direitos garantidos aos homens, pode estar distante, ou ainda, pode parecer que para as mulheres os direitos legais não existem.

         Outra coisa importante a ser esclarecida é que sou feminista e estudo Feminismo. O termo feminista não define uma linda comunidade de mulheres chatas, feias, mal-amadas e com pelo no sovaco que só ficam de mimimi o dia inteiro. Parto da definição da feminista anarquista boliviana María Galindo (2013, p. 134, em tradução livre) para apresentar o feminismo como “o conjunto de lutas e rebeldias [...] tanto individuais como coletivas, para enfrentar e desobedecer” e acabar com o patriarcado.

        Misturo minhas palavras às de María Galindo por alguns motivos: ainda que minha principal base teórica sejam as feministas anarquistas, estudo diferentes feminismos, e esses diferentes saberes me atravessam e me transformam; María traz, nesse trecho, o feminismo como um conjunto de lutas e rebeldias das mulheres. Mas, concordando com outra mulher, a feminista negra estadunidense bell hooks (2019), o feminismo é uma luta de todas as pessoas, e não apenas das mulheres.

       Assim como não existe A mulher, não existe O feminismo. Entendendo Feminismo como campo de estudos, nos deparamos com diferentes feminismos, que possuem muitos pontos convergentes e divergentes, sendo esse campo lugar de produção de conflitos e reflexões, e não de verdades estáticas. Eu posso ter em María Galindo uma das principais referências feministas, mas não devo segui-la cegamente. O nome disso é fanatismo, e não feminismo.

        Já o termo feminazi surgiu como tática patriarcal de desvalorização de nossas lutas, quando o termo feminismo é associado ao termo nazismo. Basicamente, quando abrimos a boca para lutar e desobedecer ao patriarcado, somos comparadas aos nazistas.

        Para terminar esse mimimi, ainda gostaria de dedicar poucas linhas ao patriarcado. Pode esquecer aquela imagem, essa sim ultrapassada, de que ao falar de patriarcado estou falando apenas do patriarca, o pai da família. Antes fosse...

 O patriarcado não é apenas “um sistema de opressões sem forma única e linear”, o patriarcado é O sistema de opressão e dominação, o eixo central no “qual se sustentam todas as opressões” (Galindo, 2013, p. 91, em tradução livre).

       A feminista italiana Silvia Federici (2017) apresentou no livro Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva como o sistema patriarcal foi a base na qual se ergueu o sistema capitalista. A pesquisadora estadunidense Gerda Lerner (2019), no livro A Criação do Patriarcado: história da opressão das mulheres pelos homens, esclarece como o patriarcado, muito antes do capitalismo, foi a base para as sociedades mesopotâmica, hebraica e judaica.

      Essas estudiosas do Feminismo esclarecem, através de extensas e complexas (e menosprezadas) pesquisas e interpretações, como a organização inicial do patriarcado, do pai dono dos corpos de suas esposas, escravos, filhos e idosos, saiu das casas e foi responsável pela organização do Estado, das leis, de religiões e da economia.

        O patriarcado saiu da casa, de um gênero, de uma figura, para se tornar um “conjunto complexo de hierarquias sociais expressas em relações econômicas, culturais, religiosas, militares, simbólicas cotidianas e históricas” (Galindo, 2013, p. 91).

 Foram essas as bases que me levaram a querer investigar Mulheres. Formei, com essas referências, uma lupa, e que susto eu levei ao apontar essa lupa para os corpos das mulheres. A palavra estava ali: mulheres. Mas o que me motivou a iniciar um doutorado foi a percepção que a lupa me trouxe: as mulheres não existem!

        Sim, as mulheres existiam, mas os corpos de mulheres? Não, esses não. Existiam os corpos-padrão de homens, branco, cis e os outros. Qualquer ser humano que não tivesse um pênis, uma pele branca, ou características consideradas “normais” por quem estava no poder, era o outro.

        Como Corpo passa a ser um campo de estudo na passagem do século XIX para o século XX (Courtine, 2011), o corpo só pode ser estudado, antes disso, através de diferentes disciplinas e campos. Exponho um pouco mais sobre essas representações corporais em diferentes áreas na dissertação de mestrado que produzi, intitulada Seu Corpo, sua arte: uma jornada artística-pedagógica-corporal, orientada pela Profa. Dra. Marilia Velardi (Longano, 2020). Mas vamos trazer um pequeno exemplo aqui.

        Através da Anatomia, desde o século III a. C. já existiam estudos do anatomista grego Herófilo descrevendo o corpo da mulher como um homem invertido: “a vagina um pênis interno, os lábios como o prepúcio, o útero como o escroto e os ovários como os testículos” (Laqueur, 2001, p. 16).

 Herófilo conseguia, mesmo naquela época, saber que um ovário é ridiculamente diferente de um testículo. E, anos depois, diversos erros/desconhecimentos de Herófilos foram sendo apontados, mas todos em relação ao corpo do homem. Sobre o corpo da mulher? Silêncio. Ou esquecimento? Continuemos...

        A partir do século XVIII, sob forte domínio da Igreja, a Ciência e a Medicina não conseguem mais ignorar o corpo da mulher (cis e branca, claro!), e daí ela passa a ser a outra não por inversão, mas por total diferenciação. Surgem então “inúmeras construções estigmatizadoras e misóginas do poder médico”, que tratam cada diferença entre os corpos como prova de que a “constituição física da mulher por si só inviabilizaria sua entrada no mundo dos negócios e da política” (Rago, 1998, p.13).

 As individualidades dos corpos começam a se firmar, na teoria, apenas na década de 1960, por influência do mimimi e histeria dos movimentos sociais como o feminismo e o movimento negro! Viva, pelo menos na teoria, os corpos de mulheres começam a ter espaço! Será?

        Quais corpos são registrados, retratados, respeitados, protegidos? Quem são as pessoas responsáveis por essas ações? E como elas pensam/agem? Não podemos esquecer, como bem lembra a pesquisadora Tania Navarro-Swain (2013, p. 55), que as “narrativas sobre o humano, chamadas ‘história’ e todos seus derivados, como a história da arte”, são feitas de acordo com os valores, as representações sociais e as referências de quem narra. Assim, narrativas marcadas por dominações e opressões recheiam nossas referências, produções artísticas, acadêmicas, científicas, sociais, econômicas...

        Por isso que já aconteceu, provavelmente muitas vezes, de você ler um livro com uma personagem definida como heroína e pensar: “Que mulher chata! Não tem nada a ver comigo!”. Ou ainda, olhar para uma propaganda que mostrava uma mulher branca, magra, sorridente e de cabelos lisos portando orgulhosa um eletrodoméstico, e não entender como aquela imagem era tão absurdamente diferente de sua mãe e sua avó. Ou ainda, folhear livros didáticos e pensar o que estavam fazendo as mulheres enquanto os homens brancos e europeus faziam todo o trabalho pesado!!!

        Também tem aquelas vezes em que você ouve uma história, narrada pelas pessoas que não fazem a chamada História, e percebe como está diferente de tudo o que você aprendeu como verdade. Por exemplo, mulheres não podiam fazer aborto.             Mas tem aquela tia que perdeu um bebê com uma história tão mal contada... Ou você ouviu que as mulheres não podiam trabalhar, mas sabe que desde sua bisavó as mulheres trabalhavam (seja como escravas, seja como trabalhadoras livres, seja como algo entre escrava e trabalhadora livre).

        Percebeu o que vi quando olhei para o corpo das mulheres? Tinham ali uns registros, umas referências, uns exemplos...         Mas aquilo ali não parecia em nada com qualquer mulher que eu conheci! Por isso que afirmei, há algumas linhas, que as mulheres não existiam!

        O corpo da minha mãe, por exemplo, não existia registrado em nenhum lugar. Mas eu sabia que ela estava ali e sabia, inclusive, que ela era diferente do que tentavam me ensinar como A mulher. Ela não existia por um lado, mas existia por outro...

      Foi então que, através da disciplina de pós-graduação do Programa de Mudança Social e Participação Política (ProMuSPP) da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH), intitulada Memória Coletiva, Memória de Lugares e Políticas de Memória, ministrada pelos professores Martin Jayo e Soraia Ansara, comecei a olhar para a existência dos corpos das mulheres sob a perspectiva da memória.

 

Difícil de lembrar ou fazendo força para esquecer?

 

        Michael Pollak, sociólogo e historiador, no texto intitulado Memória, Esquecimento, Silêncio, fala sobre história oral das pessoas que foram prisioneiras de campos de concentração durante o regime nazista. Sim, novamente o nazi, mas não mais aquele usado para menosprezar as feministas, mas aquele mesmo, o regime que matou milhares de pessoas que não tinham os corpos considerados certos por quem estava no poder.

        Ao dizer sobre as histórias que aquelas pessoas viveram nos campos de concentração, Pollak apresentou como muita coisa foi silenciada, porém não esquecida:  

O longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais. Ao mesmo tempo, ela transmite cuidadosamente as lembranças dissidentes nas redes familiares e de amizades, esperando a hora da verdade e da redistribuição das cartas políticas e ideológicas. (Pollak, 1989, p. 6)

 

        Era isso! Certamente, muitas histórias das mulheres são esquecidas e, pode deixar que já voltarei a esse ponto. Mas aquele pontinho que me inquietava, das mulheres existirem e não existirem, poderia ser interpretado por esse viés da memória.

        Usando o termo do Pollak, algumas lembranças dissidentes das mulheres estão sendo cuidadosamente transmitidas. Ainda que cheia de furos e lacunas, algumas lembranças chegaram até mim. Algumas lembranças chegam até nós e é por isso que sabemos que, apesar do que possam afirmar os registros, os desenhos, a Arte, a Igreja, o Estado e a economia, outras possibilidades de ser, existir e viver são possíveis!

        Segundo Pollak (1989), teríamos então duas memórias correndo em paralelo: aquela passada e imposta por uma sociedade majoritária ou Estado, e a outra memória de grupos específicos, que ele chama de memória subterrânea. Parto, então, de Pollak para entender melhor a existência e inexistência das mulheres: existe O corpo da mulher, aquele apresentado por cartilhas, livros, pela Medicina, as leis e a Ciência, e existem os corpos de mulheres, aqueles que nós vamos descobrindo em nós mesmas, no almoço de domingo após uma dose a mais de cerveja de nossa tia, naquela tarde chuvosa em que comemos bolo e conversamos com nossa mãe...

        Talvez você esteja se perguntando, como eu me perguntei: mas por que essas memórias ficaram subterrâneas? Por que a mulherada não saiu colocando a boca no trombone?  

          Continuando a emprestar as palavras de Pollak (1989) para o meu mimimi, ele diz que essas memórias podem ter se tornado subterrâneas por três diferentes motivos: por serem proibidas, indizíveis e/ou vergonhosas.

         Quantas vezes nossas histórias não foram/são proibidas de circularem por quem estava no mais alto poder? Seja o Estado, o dono da empresa, o patriarca da família, quantas pessoas apenas tiveram/têm que calar a boca e ponto?

        Quantas vezes deixamos uma memória indizível para o nosso próprio bem? Será que é fácil falar de uma memória violenta? Será que trazer à tona uma situação não vai nos prejudicar ainda mais?

        E quantas vezes a nossa história não é vergonhosa para nós mesmas? Por mais que a gente saiba o porquê de termos agido de tal forma, é confortável assumir isso?

        Através da memória, ficou mais evidente para mim, como pesquisadora e artista, que eu devia parar de ficar questionando por que as mulheres não saíam/saem por aí gritando suas histórias. Se queremos que outras mulheres existam, devemos propiciar que essas memórias, esses corpos, saiam do subterrâneo, implodam o solo, esguichando por todo o lado, borrando, manchando e inutilizando O corpo patriarcal da mulher.

        E isso é urgente e necessário, porque como alerta o próprio Pollak (1989, p. 10), há uma fronteira entre o que é silenciado, o que está no subterrâneo e o que será esquecido. Se uma memória subterrânea não “invadir o espaço público” passando a ser entendida como “contestação e reivindicação”, ela poderá ser esquecida (Pollak, 1989, p. 10).

 Antes de continuarmos, é importante ressaltar, como escrevi lá no começo do texto e é óbvio que você não vai lembrar depois de tantas páginas, não é possível abarcar tudo. Nunca. Nenhum texto, nenhuma memória, nenhuma representação de corpo, nenhuma luta, nenhum mimimi vai abarcar tudo. E com a memória e o esquecimento isso também acontece.

        Trago como referência a socióloga Elizabeth Jelin (2001, p. 29), em seus estudos sobre a ditadura na América do Sul, quando ela afirma: “toda narrativa do passado implica uma seleção”. Assim como Pollak afirma que existem diferentes memórias subterrâneas, Elizabeth afirma que existem diversos tipos de esquecimento, com diversos usos e sentidos. Porém, a própria autora alerta para o perigo de um esquecimento seletivo, instrumentalizado e manipulado.

         E é para esse esquecimento que estou olhando neste texto. Cada mulher vai saber por que silenciou/silencia suas histórias. Mas quando Herófilo falava que o corpo da mulher era o corpo do homem invertido e piorado, por que outras pessoas, ao perceberem que isso não era verdade, “esqueceram” de falar sobre isso? Por que tantas pesquisadoras são ignoradas e “esquecidas” em seus meios? Por que um célebre artista insinua que já está na hora de “esquecer” essas coisas de mulheres e focar em outra coisa? Por que a grande imprensa “esquece” de falar sobre acusações de abuso de meninas e adolescentes?

         Ao pensar nos corpos das mulheres, existe uma dificuldade inerente ao fato de termos nascido em uma sociedade que tem o patriarcado como seu eixo. Nossas memórias são subterrâneas e convivemos com pequenas erupções que trazem à tona outras histórias e corpos e que, periodicamente, colocam em xeque a versão “oficial” dos documentos.

       Mas, como alerta a historiadora britânica Mary Beard (2018), não basta perceber um padrão que funciona para descapacitar as mulheres, mas é fundamental questionarmos do que se trata exatamente esse padrão e onde o adquirimos.

        Podemos, então, utilizando um termo do filósofo e cientista social Johann Michel (2010), pensar que existe uma política de esquecimento para as mulheres? Uma política que não só se esforça para nos deixar bem embaixo da terra, como cobre a terra com um lindo e funcional asfalto?  

        Pois enquanto há um trabalho diário para que algumas histórias sejam totalmente esquecidas, parece existir o mesmo esforço para que algumas histórias e corpos sejam não somente lembrados para todo o sempre, como se tornem exemplos, referências, heróis e mitos. E, finalmente, chegamos no ponto que me fez escrever todo este texto: quantas mulheres são violentadas, silenciadas, esquecidas e apagadas até hoje?

 

E por esse corpo: quer pagar quanto?

 

        No dia 15 de abril de 2021, no site da Pública, uma agência independente de jornalismo investigativo, foi postada uma matéria intitulada As acusações não reveladas de crimes sexuais de Samuel Klein, fundador da Casas Bahia (Barros et al., 2021).

        Preste atenção, não estou falando das acusações contra Saul Klein, filho de Samuel. Sobre Saul, provavelmente, você ouviu alguma coisa. Veiculadas em sites, jornais e até no Fantástico, famoso programa dominical, muitas foram as notícias sobre as investigações de aliciamento e estupro de mais de 30 mulheres por Saul Klein.

        Enquanto já tinha visto muita coisa sobre Saul, só descobri a matéria da Pública no dia 16 de abril de 2021, após indicação do meu marido, que tinha lido uma coluna num famoso portal de notícias, intitulada Caso Samuel Klein: “o rei do varejo” está morto, mas também está nu (Dip, 2021).

 Esclarecendo, então, estou falando de Samuel Klein, o pai, o fundador das Casas Bahia. A investigação feita pela Pública:

[...] ouviu mais de 35 fontes, entre mulheres que o acusam de crimes sexuais, advogados e ex-funcionários da Casas Bahia e da família, consultou processos judiciais e inquéritos policiais, teve acesso a documentos, fotos, vídeos de festas com conotação sexual e declarações de próprio punho das denunciantes, além de gravações em áudio que indicam que, ao menos entre o início de 1989 e 2010, Samuel Klein teria sustentado uma rotina de exploração sexual de meninas entre 9 e 17 anos dentro da própria sede da Casas Bahia, a icônica loja no centro de São Caetano do Sul, e em imóveis de sua propriedade situados na Baixada Santista e no município de Angra dos Reis, no Rio de Janeiro. (Barros et al., 2021)

 

        Trago apenas esse resumo e te convido a ler na íntegra a matéria da Pública. Porém, verdade seja dita, uma parte de mim até preferia que você não lesse o texto. Dói. Dói de um jeito que eu não sei descrever, porque ainda estamos buscando alguma palavra ou expressão que consiga pelo menos se aproximar da atrocidade de algumas violências que sofremos... Fica então, por sua conta e risco, ir atrás da matéria na íntegra.

        Gostaria de lembrar que não sou juíza, não estou por dentro dos processos e seria no mínimo leviano, se não criminoso, dar o veredito de inocente ou culpado ao acusado. O que faço, neste texto, é partir das informações e consequências dos casos presentes na matéria como campo de análise, relacionando as informações com memórias subterrâneas, a violência contra os corpos das mulheres e as estratégias de esquecimento.        Antes que você rasgue seus boletos e diga que não paga mais uma prestação de seu fogão, esclareço que as Casas Bahia atualmente pertencem ao conglomerado Via Varejo, que lançou uma pequena nota dizendo que não sabia dessas ações e que a família Klein não tem mais envolvimento direto com as lojas. Antes que esse caso possa ganhar repercussão maior que o caso do Saul, o grupo já está remodelando suas ações de marketing, tirando as Casas Bahia como principal patrocinadora de jogos de futebol (Vaquer, 2021).

      Vamos, então, por partes. Antes de existirem as memórias subterrâneas que, ao implodirem o asfalto, geraram as acusações de exploração sexual, houve uma história não tão subterrânea assim. Segundo a Pública, foram ouvidas, além das mulheres que fazem a acusação, “seguranças, ex-funcionários, motoristas de táxi, assistentes pessoais de Samuel, [...] vizinhos de prédio e lojistas” (Barros et al., 2021).

        Na matéria, diferentes fontes apresentam recortes dessas memórias subterrâneas. Uma das mulheres acusadoras diz que conheceu o empresário por indicação de uma vizinha. Outra diz que foi levada ao encontro do empresário por sua irmã mais velha. Um taxista afirma que levava meninas de comunidades carentes à loja localizada em São Caetano do Sul. Uma ex-funcionária da loja afirmou que dava dinheiros e produtos para adolescentes, por mando de seus superiores.

        Nas diversas fontes apresentadas pela matéria, uma constância são os corpos de meninas e adolescentes em situação de vulnerabilidade econômica. A independência financeira negada às mulheres, assim como “tradições de herança patrilinear e sistemas de educação que deixam de transmitir conhecimento às meninas sobre seus corpos e direitos”, são fatores fundamentais para minar mulheres e meninas de “tomar decisões autônomas na vida” (Meu corpo me..., 2021). Ou seja, a pobreza é um prato cheio para a violência contra os corpos.

        Assim como já escrevi anteriormente, a questão não é apontar o dedo para cada pessoa e questionar por que algumas pessoas mantiveram o silêncio. Os motivos são vários. Segundo a matéria, uma ex-funcionária afirmou que a situação era constrangedora, mas tinha que seguir ordens. Algumas meninas afirmaram ter medo e vergonha do que aconteceu. Outras demoraram a entender que aquilo que sofriam era crime.  E assim, por serem proibidas, indizíveis ou vergonhosas, memórias subterrâneas foram se formando.

        Mas, como já exposto anteriormente, algumas memórias não são apenas deslocadas para o subterrâneo, mas colocam o asfalto por cima da terra, deixando quase impossível que elas perfurem a superfície e façam um estrago tão grande que não possam mais ser silenciadas, esquecidas, ignoradas.

         A mãe da uma das meninas que afirma ter sido vítima dessa exploração relatou que estranhou o comportamento da filha e entrou em contato com o Samuel Klein. Porém, após ser atendida pelo empresário, que afirmou gostar da menina como uma neta, receber um livro com a biografia do empresário e um DVD com uma reportagem sobre sua história como empreendedor, pensou “que ele era um homem bom, admirei ele ter superado a guerra. Nunca iria imaginar a verdade” (Barros et al., 2021).

        Como uma empregada doméstica com três empregos, que deveria dar graças aos céus por sua filha ter um homem bom gostando dela como uma neta, pode duvidar do que está registrado nos livros, na imprensa?
        Aqui entramos na existência das duas memórias, conforme apresentado por Pollak (1989): a memória oficial e a memória de pequenos grupos. Quando todos os registros oficiais afirmam que é heroico e generoso o homem que gentilmente te atende pelo telefone, é simples sustentar a crença de que aquilo pode não ser verdade?

        Atento que, ao falar de pequenos grupos, neste caso, podemos pensar em uma escala individual, de cada mulher que acusa o empresário, mas também podemos pensar em coletivo, em pequenos grupos, não apenas aquele formado pelas acusadoras.

        Na investigação apresentada pela Pública, um atual morador de um prédio de São Vicente, local onde Klein possuía um apartamento, declarou que “os moradores se sentiam incomodados com as filas que se formavam na rua e a quantidade de pessoas que circulavam pelo prédio a caminho do apartamento do empresário” (Barros et al., 2021). Sim, exatamente isso que você leu: filas! Filas de meninas e adolescentes sabidamente direcionadas para o apartamento do empresário. Os moradores fizeram um abaixo-assinado e tiraram o ilustre morador do prédio.

        Essa situação me levou a pensar o quanto de omissão social, coletiva, existe nas histórias das mulheres. Não é problema meu, não vou me meter, não é da minha conta, não tenho “autoridade moral para remediar a situação” (Giunta & Fajardo-Hill, 2018, p. 18). Será que não?

        Ao mesmo tempo, sei muito bem como a violência diária nos deixa com medo. Com qual grau de poder alguém que acuse uma figura poderosa de algum crime tem que lidar? Será que se um prédio inteiro falasse sobre o que acontecia ali, alguém daria atenção?

        A Pública relata que diversos acordos judiciais foram firmados entre Samuel Klein e denunciantes de abusos, que buscaram indenizações depois de adultas (Barros et al., 2021). Segundo um advogado de algumas dessas denunciantes, existia material, fotos e vídeos que mostravam abusos sexuais explícitos do empresário, porém o material usado como prova foi destruído após acordo da defesa de Klein com as vítimas.

        Johann Michel, ao trazer as categorias de esquecimento que existem, aponta para a mais violenta de todas, o esquecimento destruição. Segundo Michel (2010, p. 23), essa forma é utilizada “no sentido de construir uma memória oficial hegemônica em detrimento de memórias coletivas concorrentes”. Não temos acesso a esse material, mas uma coisa é fato: pela sua história de imigrante que sobreviveu à guerra e empreendedor, Samuel Klein tornou-se nome de rua. Pelo menos por enquanto.

        O coletivo Mulheres por Mais Direitos, do PSOL, da Câmara de Vereadores de São Caetano do Sul, está pressionando a prefeitura para que a rua chamada Samuel Klein mude de nome (Rocha, 2021). Na rua está localizada uma das lojas das Casas Bahia.

        Trago essa ação como um exemplo de mobilidade, um exemplo de como quando a memória subterrânea fura o asfalto, as coisas podem mudar. Mas sério mesmo que você ainda acha que as coisas são tão simples assim? Temos que tomar muito cuidado pois, trazendo novamente Elizabeth Jelin (2001) como referência, existem diversos tipos de esquecimento, com diversos usos e sentidos. Os esquecimentos seletivos podem representar o início de uma grande mudança, ou podem tapar o buraco que algumas memórias conseguiram fazer e, novamente, deixar muita coisa no subterrâneo.

        A ação do coletivo, a repercussão na impressa, as denúncias, as ações individuais e coletivas são atitudes fundamentais para evidenciar, questionar e combater a violência contra nossos corpos. Assim como não existe apenas um corpo, não há somente uma forma de violentar os corpos, e não há uma fórmula mágica e uma única ação para mudar essa situação.

 

A gente existiu, existe e existirá!

 

Os nossos corpos não são suficientemente nossos, estão sempre expostos ao contato, às incidências do outro e, em particular, às atribuições dos poderes que procuram decidir como devemos viver e quem e como deve morrer. O reconhecimento dessa vulnerabilidade é essencial para entender que é possível nos desligarmos do medo e da dor que às vezes acreditamos ser estranhos, e que os atos de luto que nos envolvem além do que pensamos não são simplesmente dos outros, mas também fazemos parte deles. (Diéguez, 2016, p. 225, em tradução livre)

 

        As violências executadas contra um corpo reverberam, afetam também outros corpos, atingem um coletivo. Uma dor individual que explode para o coletivo, violentando a todas e a cada uma de nós.

        Quando falei que apontei minha lupa para os corpos das mulheres e tomei um susto, não foi por ignorar que a violência atinge nossos corpos, mas foi por me defrontar com a proporção e pluralidade dessas violências. Violências que não estão no passado, estão super vivas e fortes no nosso presente, e que parecem não ter retrocedido em nada, mesmo diante de anos de lutas feministas, de mudanças de leis, de memórias subterrâneas expostas. O que dá um medo muito grande!

        Pois, emprestando as palavras da feminista negra Audre Lorde, falando ou não sobre as violências que sofremos:

a máquina vai tratar de nos triturar de qualquer maneira. [...] Podemos nos sentar num canto e emudecer para sempre enquanto nossas irmãs e nossas iguais são desprezadas [...] podemos ficar quietas em nossos cantos seguros, caladas como se engarrafadas, e ainda assim seguiremos tendo medo (Lorde, 1977)

 

        Audre afirma que o silêncio dela não a protegeu e que, ao ficarmos quieta, estamos apenas sozinhas, e não protegidas. É pelas palavras de outras pessoas, de outras mulheres, de outras feministas, que eu escrevo este texto. São aquelas que saem dos seus cantos seguros, que rompem a terra e o asfalto com suas memórias que me inspiram a, mesmo com medo, seguir. São aquelas curadoras que, mesmo ouvindo um comentário desmerecendo seu trabalho, continuaram a fazer uma exposição sobre nós.

        É por isso que a pesquisadora feminista aqui não quer calar a boca. Ao produzir este texto, uma pesquisa de doutorado, ao trazer visibilidade para nós, estou indo além de ocupar espaços, mas tento romper uma lógica opressora (Davis, 2016). Ou pelo menos questioná-la. Ou, na pior das hipóteses, expor essa lógica.

        E fazer isso é muito, muito difícil, porque romper uma lógica exige a coerência de agir e pensar de outra forma. Exige testar, como as artistas feministas vêm há anos fazendo. Exige a calma de errar, de causar furor ou, principalmente, de passar despercebida, ser ignorada e, logo mais, esquecida.

       Ao trazermos nossos corpos para a cena, apresentarmos nossas histórias, deixarmos nossas memórias explodirem o asfalto e borrarem todos os documentos oficiais, temos que ter o cuidado de não transformar a dor na nossa identidade, como alerta María Galindo (2013). E é exatamente por isso que estou falando da dor e da violência contra nós!

 Não queremos isso, não queremos mais nossas histórias ligadas somente a isso. Não queremos mais sermos violentadas, pois isso NÃO É INERENTE aos corpos das mulheres. A violência nos foi e nos é imposta.

        Sendo a Academia lugar de produção e compartilhamento de conhecimento, como pesquisadora acadêmica posso não só trazer esse assunto para a pauta, mas, principalmente, posso produzir e compartilhar um conhecimento não violento para nós. Posso produzir uma narrativa feminista que questione os eixos patriarcais de nossa sociedade, de nossa produção de conhecimento, de nossa língua. Posso tentar chamar atenção, trazer a reflexão, a indigestão. E posso fazer o registro do que foi e é silenciado, evitando que nossos corpos continuem sendo sistematicamente violentados pelo esquecimento.

        Digamos, então, que este texto é a minha resposta a quem afirma que pesquisar, registrar, documentar, investigar Mulheres são ações, além de irrelevantes, ultrapassadas. Mas não se engane. Após anos e anos de estudo, esta é a minha forma acadêmica de responder e reagir a tudo isso. Mas, se ao sermos violentadas com essas perguntas/conselhos/falas/avaliações, simplesmente respondermos com um palavrão e continuarmos nossa produção... bem, é apenas uma outra forma de lutar.

 

 

Referências

 

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1 Doutoranda no ProMuSPP, é mestra em Ciências pela EACH-USP, Bacharela em Artes Cênicas pela USP. Atriz, escritora, pedagoga e pesquisadora, faz parte do grupo de pesquisa ECOAR (EACH-USP). Cocriadora da Cia. Ruído Rosa. Investiga feminismo, corpo, arte e pedagogia. https://orcid.org/0000-0003-4099-6781