Cadernos PROMUSPP, São Paulo, v.2 n.1, jan./mar. 2022 ISSN 2764-4510



Capacidades Estatais em Processos de Monitoramento Participativo Mediados por TICs

 

Emilly Espildora1 e Gisele S. Craveiro2

 

RESUMO

O objetivo desta pesquisa é compreender em que medida as capacidades técnicas empregadas em processos de monitoramento participativos utilizando TICs se diferenciam daquelas envolvidas em outras modalidades de participação social. A metodologia aplicada foi estudo de caso, sendo o objeto de investigação as iniciativas de auditoria cívica. A partir disso, foi possível explorar pontos de divergência entre o modelo e o caso específico, assim como identificar novas variáveis. A análise do caso revelou aspectos inerentes aos processos participativos mediados por tecnologias promovidas pelo Estado e a complexidade do fluxo de interação entre sociedade e Estado.

Palavras-chave: Monitoramento Participativo; TICs; Capacidades Estatais; Controle Social; Participação Social.

 

State Capacities in Participatory Monitoring Processes Mediated by ICTs

ABSTRACT

This research aims to understand to what extent the technical capacities involved in participatory monitoring processes through ICTs differ from those involved in other social participation modalities. The methodology applied was a case study on the initiatives promoted by the Office of the Comptroller General of the Federal District for civic auditing. From this, it was possible to explore points of divergence between the model and the specific case, as well as identify new variables. The analysis of the case revealed aspects inherent to participatory processes mediated by technologies promoted by the state and the complexity of the interaction flow between society and the State.

Keywords: Participatory Monitoring; ICTs; State Capacity; Social Control; Social Participation.

 

Capacidades Estatales en Procesos de Monitoreo Participativo Mediados por TIC

RESUMO

El objetivo de esta investigación es entender hasta qué punto las capacidades técnicas empleadas en los procesos de control participativo mediante el uso de las TIC difieren de las implicadas en otras modalidades de participación social. La metodología aplicada fue un estudio de caso, siendo el objeto de investigación las iniciativas de auditoría cívica. A partir de ahí, fue posible explorar los puntos de divergencia entre el modelo y el caso concreto, así como identificar nuevas variables. El análisis del caso reveló aspectos inherentes a los procesos participativos mediados por tecnologías promovidas por el Estado y la complejidad del flujo de interacción entre la sociedad y el Estado.

Palabras-clave:  Monitoreo Participativo;  TICs;  Capacidades Estatales;   Control Social; Participación Social.

 

Capacités de l'État dans les processus de suivi participatif médiatisés par les TIC

RÉSUMÉ

L'objectif de cette recherche est de comprendre dans quelle mesure les capacités techniques employées dans les processus de contrôle participatif utilisant les TIC diffèrent de celles impliquées dans d'autres modalités de participation sociale. La méthodologie appliquée a été une étude de cas, l'objet de la recherche étant les initiatives pour l'audit civique. A partir de là, il a été possible d'explorer les points de divergence entre le modèle et le cas concret, ainsi que d'identifier de nouvelles variables. L'analyse de ce cas a révélé des aspects inhérents aux processus participatifs médiatisés par des technologies promues par l'État et la complexité du flux d'interaction entre la société et l'État.

Mots-clé: Suivi Participatif; TIC; Capacités de l'État ; Contrôle social ; Participation sociale

Introdução

 

As funções de controle estatal e social receberam maior ênfase a partir da  Reforma Gerencial por conta do objetivo de recuperar a governança do Estado, dada as demandas por maior eficiência e fortalecimento da accountability (Bresser-Pereira, 2000). O controle social, por sua vez, pode ser visto como uma das estratégias de participação social, ao passo que é um conceito com divergências em diferentes campos do saber, ocorrendo em diferentes processos com diferentes alcances e espectros possíveis (Villi, 2018, p. 33). O monitoramento participativo, enquanto forma de acompanhamento coletivo e contínuo de alguns aspectos de interesse público (Villi, 2018, p. 59), é uma ferramenta possível para o controle social por consistir na observação da sociedade sobre as ações do Estado.

O monitoramento participativo tem como característica a mobilização de membros da comunidade local, que não necessariamente estejam acostumados com processos técnicos de coleta, mas que possuem conhecimentos acumulados sobre a sua realidade,  promovendo uma pesquisa adaptada a sua cultura (Villi, 2018, p 53). Sendo assim, esses processos devem ser entendidos como um processo social por se tratar de uma negociação que trabalha com poderes, conflitos e suas resoluções. Além da constante busca por tornar participação uma prática real (Estrella & Gaventa, 1998, p. 45; Villi, 2018, p. 57), os processos de monitoramento participativo são compostos por quatros aspectos fundamentais, sendo eles a participação, a aprendizagem, a negociação e a flexibilidade (Estrella & Gaventa, 1998, p. 17).

Nesse sentido, a expansão da infraestrutura de comunicação junto à conectividade global por meio da Internet e das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) também altera profundamente as dinâmicas sociais, econômicas e políticas (Parra, 2016; Vaz, 2016), mostrando grande potencial na conexão entre Estado e sociedade a partir da participação eletrônica (Oliveira & Garcia, 2019, p. 3) e novas possibilidades da participação dos cidadãos nos processos públicos de tomada de decisão (Oliveira & Garcia, 2019, p. 2). A presença da tecnologia, contudo, não é fator suficiente para a adoção dessas interpretações de uso da tecnologia na administração pública. Apesar da abertura de espaços digitais para participação, existem muitas barreiras que impedem a apropriação desses aparatos pela população, principalmente relacionadas a questões culturais e técnicas (Oliveira & Garcia, 2019, p. 6).

A adoção das tecnologias digitais no ciclo de políticas públicas, por outro lado, é concentrada nas etapas de implementação e monitoramento, sendo apenas 1,6% dessas ferramentas destinadas para avaliação de políticas e serviços públicos (Sampaio et al, 2016, p. 707) Apesar da atuação estratégica de órgãos de accountability, principalmente relacionada ao uso de TICs em processos de  participação social, constatou-se poucas investigações sobre iniciativas inovadoras de atuação desses órgãos de controle no monitoramento e avaliação de políticas públicas, especialmente sobre o uso de tecnologias na promoção da avaliação de serviços públicos (Santos & Craveiro, 2020, p. 2). mostrando a necessidade de explorar essas iniciativas, especificamente sobre monitoramento participativo mediados por TICs.

O protagonismo do Estado na consolidação de espaços participativos digitais é defendido por alguns autores, como Oliveira e Garcia (2019, p. 8) e Graeff (2018, p. 27), revelando a importância de explorar iniciativas governamentais que promovam processos participativos utilizando tecnologias, dada a escassez de estudos nesta área (Santos & Craveiro, 2020, p. 2). Diante das características específicas dos processos de monitoramento participativo, mostra-se ainda relevante explorar a atuação estatal em iniciativas promovidas pelo Estado, tendo em vista as particularidades dessa modalidade de participação e a escassez de estudos sobre esse tema na literatura, uma vez que os estudos sobre a participação social foram historicamente focados na perspectiva da sociedade civil.

Apesar dessa lacuna, identificaram-se pesquisas que favorecem a perspectiva do Estado na promoção da participação social mediadas por TICs a partir do conceito de capacidades estatais, como Stefani (2015) e Parra (2017) com o desenvolvimento do conceito de Capacidade de Governo para Utilização de TICs em Processos de Participação Social (CGTPS) e também Souza (2016) com a definição das  Capacidades Conversacionais.

O conceito de capacidades estatais surge com a corrente do neoinstitucionalismo e possui o objetivo de “abrir a caixa preta do Estado” para aprofundar as pesquisas sobre implementação de políticas públicas (Cingolani, 2013; Gomide, Pereira & Machado, 2017). A CGTPS, desenvolvida por Stefani (2015) e explorada por Parra (2017), assim como as Capacidades Conversacionais por Souza (2016), mostram-se como modelo analítico de grande relevância ao abordar as capacidades estatais específicas de processos de participação, especialmente aquelas relacionadas ao uso de TICs. Contudo, os trabalhos encontrados não abordam os processos de  monitoramento participativo mediados por TICs, revelando uma lacuna nesta corrente de estudo.

Esta pesquisa foca em processos de monitoramento participativo mediados por TICs que foram promovidos por órgãos de controle estatal sob a perspectiva das capacidades estatais. Para tanto, o trabalho analisa as ações promovidas no projeto “Controladoria na Escola” em escolas públicas da região do Distrito Federal entre 2016 e 2018. É um projeto de prevenção primária à corrupção e surge junto a missão do órgão em formar cidadãos para a participação e controle social. Foram envolvidos mais de 4 mil alunos e 280 professores orientadores na metodologia de gamificação, na qual cada atividade recebe uma pontuação e ao final é possível definir escolas vencedoras, remetendo à ideia de uma grande gincana entre as instituições (Controladoria Geral Distrito Federal [CGDF], 2019).

A atividade principal era uma auditoria cívica, na qual os estudantes observaram e registraram a situação escolar a partir da metodologia de auditoria proposta pela CG-DF. Com essas informações, um relatório foi produzido pelo órgão apontando quais foram os problemas e desafios encontrados pelos alunos. A ação, assim como outras iniciativas promovidas por órgãos de controle governamental em escolas públicas, utilizou a ferramenta “Promise Tracker” ou também conhecida por “Monitorando a Cidade” para o monitoramento e avaliação do serviço público de educação (Villi, 2018; Santos & Craveiro, 2020). O Monitorando a Cidade é “uma plataforma de monitoramento desenhada para ajudar comunidades, indivíduos e organizações da sociedade civil a monitorar compromissos do poder público e, desta forma, demandar uma maior responsabilidade cívica dos gestores e políticos” (Monitorando a Cidade, 2017). Na iniciativa estudada, a ferramenta possibilitou a coleta de dados colaborativa e produção de informações sobre a infraestrutura escolar da região.

O objetivo desta pesquisa é, portanto, debruçar-se sobre a etapa “Auditoria Cívica” do projeto Controladoria na Escola a luz dos modelos de análise sobre capacidades estatais desenvolvidos por Stefani (2015) e Souza (2016), buscando compreender em que medida as capacidades estatais envolvidas no processo de monitoramento participativo mediados por TICs se diferenciam das capacidades envolvidas em outras modalidades de participação social. Pretende-se, também, contribuir com os estudos sobre o uso do Monitorando a Cidade para avaliação da política de educação pública, como os trabalhos de Villi (2017) e Santos e Craveiro (2020).

 

Capacidades Estatais em processos de Monitoramento Participativo mediados por TICs

 

O conceito de capacidades estatais se mostra útil para explorar a perspectiva estatal na implementação de processos de  monitoramento participativo utilizando TICs na medida que dialoga e contribui com a literatura em construção sobre capacidades estatais para participação social, além de explorar a ação estatal e possuir grande potencial para explicar as condições que viabilizam a agência do Estado e em como as organizações estatais mobilizam e transformam recursos, instrumentos e informações em ação (Lima, 2019, p. 61).

As capacidades estatais é um conceito polissêmico e disputado, existindo diferentes formas de mensuração, como Gomide et al. (2017, p. 3) expõe. Esse conceito aparece nos primeiros estudos sobre a relação de Estados na performance e desenvolvimento econômico, sendo o trabalho mais relevante deste período o de Skocpol (1979 como citado em Cingolani, 2013; Gomide et al., 2017) que tratou da relação entre a autonomia do Estado e o desenvolvimento econômico, definindo assim os conceitos de autonomia estatal e capacidades estatais. Em perspectiva similar, Evans (1995) aprofunda as elaborações desses dois conceitos ao definir que as capacidades estatais não seriam compostas somente pelas características do aparelho estatal, mas também pelas relações do Estado com as estruturas sociais, sendo a autonomia estatal influenciada pelas capacidades que o Estado dispõe frente à sociedade, gerando a “autonomia inserida” como chave organizacional para a eficácia do desenvolvimento econômico. No Brasil, os estudos sobre capacidades estatais se depararam com um período ditatorial marcado pelas políticas de desenvolvimento econômico promovidas pelo Estado autoritário. Com a retomada dessas políticas desenvolvimentistas em contextos democráticos, surgiu a necessidade em ampliar o conceito para abarcar todas os aspectos que um governo com grande participação social necessita para não produzir ineficiências ou impasses. (Gomide & Pires, 2014, p. 16).

Como Grin (2012, p. 154) aponta, por se tratar de um conceito multinível, pode-se adaptar o conceito para traduzir a realidade empírica sem perder sua validade explicativa. Tendo como alvo os objetivos previstos nesta pesquisa, dois trabalhos encontrados na literatura chamaram atenção por desenvolverem estudos relacionados às capacidades estatais em processos de participação social, servindo como referencial teórico os conceitos desenvolvidos por Stefani (2015) sobre as Capacidades de Governo Relacionadas à Utilização de TICs em Processos de Participação Social (CGTPS) e de Souza (2016) na consolidação das Capacidades Conversacionais.

Stefani (2015) utiliza do conceito de capacidades estatais para investigar a nova abordagem de interação entre Estado e sociedade com o advento das TICs. Sendo assim, foca na utilização dessas ferramentas pelo governo para implementação de canais de participação social a partir do que ela define como Capacidades de Governo Relacionadas à Utilização de TICs em Processos de Participação Social (CGTPS). O trabalho de Parra (2017) utiliza desse conjunto definido por Stefani (2015) para explorar as capacidades envolvidas nos processos de coprodução de tecnologia entre Estado e sociedade, complementando o conceito desenvolvido ao discutir os aspectos funcionais, tecnológicos e de desenhos das TICs. No desenvolvimento do estudo de caso,  Parra (2017) identificou alguns pontos de alargamento do conceito desenvolvido, principalmente no que diz respeito a capacidades de recursos humanos e capacidades tecnológicas. Visto isso, o autor afirma que existem possibilidades de ampliação do conceito (Parra, 2018, p. 124) e alargamento do mesmo (Parra, 2018, p. 119).

Estes trabalhos estudam situações em que a participação e interação entre sociedade e governo se dá totalmente por meios digitais, entretanto o monitoramento participativo, enquanto um processo social, possui desenho específico que vincula a interação entre diferentes atores e interessados, conflitos e disputas por poder, por meios físicos e digitais. Nesse aspecto, houve necessidade de dimensionar capacidades não previstas nestes dois trabalhos.

As Capacidades Conversacionais por Souza (2016, p. 110) são categorias úteis para diferentes contextos em que haja a necessidade de gerar a interação e negociação de interesses entre diferentes atores. São capacidades específicas ligadas às condições técnicas para a promoção de processos participativos, uma vez que o conhecimento sobre o desenho e desenvolvimento de processos participativos influencia as capacidades estatais na promoção da participação (Souza, 2016, p. 61).

Para construção do conceito de capacidades estatais  neste trabalho, seguimos o proposto por Goertz (2006 como citado em Grin, 2012; Gomide et al., 2017) ao aplicar três camadas analíticas: (i) o nível básico ou ontológico; (ii) o nível secundário ou constitutivo e (iii) o nível indicativo ou operacional (Gomide et al., 2017, p. 5; Grin, 2012, p. 153), além da definição entre dois fluxos possíveis: o formativo e o reflexivo (Gomide et al., 2017, p. 7). A Tabela 01 apresenta decomposição do conceito de CGTPS e das Capacidades Conversacionais em suas partes constitutivas a partir dos três níveis de construção do conceito, dando origem a definição síntese do conceito empregado  nesta pesquisa.

Tabela 01: “Níveis conceituais do conceito de capacidades estatais”

Níveis

Definição empregada na pesquisa

Nível Básico

Condições ou recursos para a ação estatal, mobilizadas de forma relacional e sistêmica a partir da necessidade do governo em políticas menos institucionalizadas e com caráter temporário na composição de processos governamentais de participação sociais utilizando a tecnologia.

Nível Secundário

Capacidades Técnicas estão vinculadas ao conhecimento, habilidades e recursos cognitivos do corpo técnico para formulação e desempenho de funções que envolvam o domínio de técnicas e tecnologias específicas na interação socioestatal presencial e digital.

Nível Indicativo

Conceito de Arranjos Institucionais como conjunto de regras, mecanismos e processos que definem a forma particular como se coordenam atores e interesses na implementação de uma política pública específica.

                Elaboração própria a partir de Stefani (2015) e Souza (2016).

 

 

Para análise do caso deste estudo, será empregado também o conceito de arranjos institucionais, assim como Stefani (2015). O conceito se mostra relevante em análises de implementação de políticas públicas por oferecerem definições do que podem ser recursos e condições para implementação de políticas públicas particulares a partir de uma perspectiva global, sistêmica e relacional (Stefani, 2015, p. 68), além de possibilitar a diferenciação entre os arranjos institucionais do ambiente institucional do governo (Gomide & Pires, 2014, p. 19), trazendo à análise os elementos específicos da política. Isso é útil pois as capacidades do Estado variam entre políticas públicas, não sendo possível afirmar políticas públicas comuns (Gomide & Pires, 2014, p. 373).

 

Metodologia e modelo teórico

 

Tendo em vista as quatro dimensões de capacidades estatais levantadas por Grindle (1996) e exploradas por Stefani (2015) e Souza (2016), são as capacidades técnicas que possuem maior influência em processos participativos. São elas, também, que influenciaram diretamente a execução do monitoramento participativo mediado por tecnologias  nas escolas participantes do projeto “Controladoria na Escola”. O Quadro 01 sintetiza o quadro teórico e as respectivas categorias de análise que foram aplicadas ao caso estudado:

 

 

Quadro 01 - Categorias de Análise

Monitoramento Participativo

Estrella e Gaventa (1998)

Participação

Aprendizagem

Negociação

Flexibilidade

Capacidades Estatais

Capacidades Técnicas

Stefani (2015)

Recursos Humanos

Souza (2016)

Estabelecimento do Propósito

Recursos Financeiros e Físicos

Organização do Ambiente

Tecnologia

Desenho da Metodologia

Gestão do Processo Participativo

Mediação do Processo

                            Fonte: Elaboração própria.

 

 

O objetivo do modelo teórico desenvolvido é identificar se os trabalhos existentes sobre capacidades estatais em processos de participação social são adequados para explicar as capacidades estatais envolvidas em uma modalidade específica de participação social, que é o monitoramento participativo. Para isso, foi realizado levantamento bibliográfico na literatura nacional e internacional, assim como análise documental e uma entrevista semi-estruturada, que foi transcrita e analisada, com o então Subcontrolador de Transparência, Ouvidoria e Controle Social da CG-DF.

 

Descrição do casoControladoria na Escola”

 

O projeto Controladoria na Escola ocorreu no Distrito Federal de 2016 a 2018 a partir de iniciativa da Controladoria Geral do Distrito Federal (CG-DF) pela Subcontroladoria de Transparência e Controle Social (SUTCS), da Secretaria de Estado de Educação e Secretaria de Estado de Fazenda e em parceria com outros órgãos como o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) e o Serviço Social da Indústria Departamento Regional do Distrito Federal (SESI).

A iniciativa recebeu certificado de reconhecimento do Fórum Nacional de Combate à Corrupção como um dos 22 projetos educacionais e de conscientização mapeados pela campanha #TodosJuntosContraCorrupcao, assim como o selo Ação Íntegra, durante o Seminário de Segurança Institucional promovido pelo Banco do Brasil, no Instituto Serzedello Corrêa. Também foi premiada no 22º Concurso Inova promovido pela Escola Nacional de Administração Pública (ENAP) durante a 4ª Semana de Inovação – Serviço Público para o Futuro.

Entre os casos de uso do Monitorando a Cidade em processos de monitoramento participativo em escolas, a iniciativa conduzida pela CG-DF demonstra grande relevância, principalmente pela mobilização de uma parcela significativa de atores estatais e não-estatais durante os quatro anos de aplicação do projeto em todo território do Distrito Federal (Santos & Craveiro, 2020, p. 11). A iniciativa também envolveu um número significativo de alunos e professores, atingindo mais de 4 mil alunos em 2017. Essa edição identificou mais de 15 mil problemas através da auditoria realizada pelos alunos, resultando ainda em 80 miniprojetos e 1350 problemas solucionados (Santos & Craveiro, 2020, p. 15). Essa iniciativa piloto também serviu como base para a replicação em outros casos em outros Estados do território nacional (CGDF, 2019).

Desta forma, é um projeto de prevenção primária à corrupção  que surge junto a missão do órgão em formar cidadãos para a participação e controle social. Ou seja, são ações que visam “promover a formação de cidadãos conscientes e participativos no enfrentamento à corrupção, tornando-os mais imunes à sua prática e mais participativos no seu combate, dispostos ao exercício do controle social e capacitados para usar as ferramentas de transparência disponíveis” (CGDF, 2018, p. 9). Em 2016, ocorreu o projeto piloto do Controladoria na Escola em 10 escolas públicas de ensino fundamental e médio do Distrito Federal, ampliando para mais de 100 escolas a partir de 2017 com a adoção da ferramenta tecnológica Monitorando a Cidade. O projeto é desenvolvido em formato de gamificação e a atividade principal era uma auditoria cívica, na qual os estudantes observaram e registraram a situação da escola a partir da metodologia proposta pela CG-DF. O aplicativo Monitorando a Cidade foi instalado nos smartphones dos alunos ou professores e serviu como instrumento de registro das observações realizadas pelos alunos. Desta forma, foi gerada uma base de dados sobre os registros levantados pelos alunos de todas as escolas, tornando possível a análise e confecção de relatórios pela CG-DF, traduzindo essas informações para a comunidade escolar. Cada relatório foi entregue aos professores de cada escola e deveria ser apresentado a, no mínimo, todos os alunos participantes do projeto. Na sequência, o time de alunos deveria buscar as causas dos problemas que foram identificados e suas possíveis soluções para elaboração do Desafio, que é o desenho de um projeto que pretende enfrentar e solucionar essas questões a partir de ações organizadas pela própria comunidade escolar.

A etapa “coleta de dados” é realizada exclusivamente pelo telefone celular. Para isso, é gerado um código de campanha que deve ser inserido no aplicativo do smartphone para preenchimento do formulário. A metodologia utilizada no projeto, segundo o Subcontrolador da época, foi construída com base nos processos de auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) e na matriz de auditoria do Programa Saúde da Família. As informações coletadas correspondem a avaliação pelos alunos e professores das condições estruturais e da merenda da escola, não avaliando a qualidade das aulas, professores ou equipe gestora.

Os relatórios produzidos pela CG-DF deveriam ser apresentados a todos os alunos inscritos no projeto e poderiam ser apresentados a toda comunidade. Essas apresentações eram organizadas pelos professores e era necessário confirmar essa apresentação com envio de fotos à CG-DF. Este  momento tem o objetivo de promover uma  discussão e análise dos dados para planejar e produzir os projetos da etapa de Desafio. Após a implementação desses projetos, o ciclo é iniciado novamente com a reaplicação dos questionários de auditoria nos espaços para comparação das informações após a ação escolar. Desta forma, a informação produzida pela Auditoria possui como usuário final os alunos e a comunidade escolar, sendo o órgão de controle um usuário secundário deste produto. Os relatórios produzidos pela CG-DF, portanto, possuem caráter informativo, não sendo auditorias de controle ou punitivas.

Um panorama das 3 edições do programa é apresentado na Tabela 02. É possível verificar o crescimento da iniciativa, com o aumento do número de escolas participantes e do valor da premiação. Mas, apesar de haver aumento do número de vagas em 2018 para 200 escolas, somente 109 participaram do projeto, e embora o aumento de alunos inscritos no projeto, passando de 39 para 43 a média de alunos por escola, o número de professores diminuiu de 2018 para 2017, mesmo havendo acréscimos nos incentivos para participação como premiação em dinheiro e viagem.

 

Tabela 02: Dados Controladoria na Escola 2016 a 2018

Ano

Escolas

Alunos

Profs.

Prêmio

2016

10

200

-

-

2017

104

4.000

280

R$ 140 mil + 30 bolsas de pós

2018

109

4.716

277

R$ 265 mil + viagem + prêmio professores + bolsas de pós

                    Fonte: Elaboração própria a partir da entrevista.


        Das 109 escolas inscritas no ano de 2018,  88 realizaram a etapa de Auditoria Cívica e destas 67 escolas chegaram à etapa final do projeto. Ainda que tenha havido uma porcentagem relevante de engajamento, quase 40% das escolas inscritas não conseguiram concluir o projeto, sendo que 20% não chegaram nem à metade.  Ao fim, somente 61% das escolas inscritas conseguiram finalizar, sendo que isso representa somente 33,5% do total de 200 vagas abertas inicialmente. É possível identificar, assim, que existem questões envolvidas na implementação e nas capacidades estatais da iniciativa que podem influenciar a conclusão do projeto ou não pela escola.

 

Análise

 

Tendo em vista o objetivo da pesquisa, buscou-se vincular os arranjos institucionais encontrados no estudo de caso ao conceito de monitoramento participativo. Abaixo, mostra-se os indicadores de capacidades técnicas definidos por Stefani (2015) e Souza (2016) envolvidas em cada uma das etapas do ciclo de monitoramento participativo desenvolvido por Villi (2018):

 

 

Figura 01 - Capacidades Estatais no Ciclo de Monitoramento Participativo

 

                    Fonte: Elaboração própria a partir de Villi (2018), Stefani (2015) e Souza (2016).

 

O modelo construído foi aplicado na análise do caso “Controladoria na Escola” por conta de seu ciclo de monitoramento participativo e na investigação das capacidades técnicas envolvidas na etapa de Auditoria Cívica. Foi identificado que as capacidades envolvidas na etapa de Planejamento são determinantes para definição das outras etapas do ciclo e podem estar relacionadas diretamente com mais de uma etapa. As capacidades envolvidas em Definição da Metodologia e no Estabelecimento do Propósito estão presentes em todo o processo, pois definem como cada uma das etapas serão executadas.

O Estabelecimento do Propósito define qual o papel de cada um dos agentes envolvidos e como se dá a participação do público alvo. Também determina para quem se destina o uso das informações produzidas pela coleta de dados, induzindo a Definição da Metodologia para atingir o propósito definido. A atuação e participação do público alvo, portanto, depende diretamente dos arranjos envolvidos no Estabelecimento do Propósito e na Definição da Metodologia, pois são elas que determinam as diretrizes a serem seguidas por todo o monitoramento, principalmente na etapa de uso e visualização das informações, principal produto do processo de pesquisa coletiva.

 Na etapa de Análise de Dados é necessário levar em consideração os conhecimentos técnicos dos Recursos Humanos em processamento de dados. Esses dados serão tratados a partir do propósito da iniciativa, levando em consideração qual será o uso principal das informações geradas e qual a metodologia adotada para atingir os objetivos da campanha, sendo o conhecimento técnico sobre processamento de dados uma capacidade técnica necessária para implementação de processos de monitoramento participativo.

 O Estabelecimento do Propósito e a Definição da Metodologia também influenciam como será feito o uso e divulgação das informações produzidas pela etapa de Análise dos Dados. O uso dessas informações pode ser destinado ao próprio público alvo da ação, assim como a outros atores interessados. Tendo em vista os objetivos de uso e divulgação das informações, o processo de criação das visualizações das informações é direcionado para o usuário final da informação. No caso da CG-DF, as informações produzidas pela Análise de Dados eram direcionadas para os alunos e professores, estando presente nesse processo a capacidade de tradução de informações técnicas, adequando esses dados para o público alvo. Essa tradução determina como as informações produzidas pela coleta de dados podem levar ao propósito estabelecido pela campanha de monitoramento participativo ou não.

        Ao retomar as definições Estrella e Gaventa (1998), é possível identificar como os  aspectos do monitoramento participativo se relacionam em cada uma das capacidades analisadas. A participação é o principal aspecto de processos de pesquisa que envolvem um grupo de pessoas ou partes interessadas. No caso estudado, as etapas que apresentam momentos concretos de participação dos estudantes é a coleta de dados utilizando o aplicativo Monitorando a Cidade e a etapa de visualização dos relatórios produzidos pela CG-DF, mas outras capacidades determinaram como essa organização foi realizada.

O Propósito da Ação é a subcategoria que traz os aspectos sobre como a participação acontece, quem são os participantes em cada etapa e quais perspectivas são enfatizadas. É a partir dessas definições iniciais que outros elementos são mobilizados para consolidar a participação. Como exposto por Estrella e Gaventa (1998, p. 29), práticas de monitoramento participativo podem ser  mais ou menos participativas, por isso o Estabelecimento do Propósito determinará como os outros arranjos serão organizados e quais recursos serão mobilizados para atingir o propósito definido para a participação. No caso estudado, a participação foi restrita às etapas de coleta e visualização de dados, mas ainda é possível existir outros casos em que ocorra a participação na etapa de planejamento e de análise dos dados.

 A Mediação do Processo no Controladoria na Escola é realizada pelos professores, sendo esses atores detentores de recursos técnicos e cognitivos para mobilizar e influenciar a participação dos alunos. Também são responsáveis por fornecer as informações necessárias aos estudantes para participação na ação, assim como também são organizadores da iniciativa. Portanto, a atuação desses mediadores pode influenciar como o processo de participação acontece, seja na consolidação da participação como na organização da iniciativa.

 Outro aspecto dos processos de monitoramento participativos diz respeito ao processo de aprendizagem na formação e fortalecimento de competências dos envolvidos na ação. Esse processo de aprendizagem está relacionado com a ideia de “aprender na prática” e, dependendo do público alvo e de como é desempenhada sua participação, processos de capacitação podem ser necessários (Estrella & Gaventa, 1998, p. 43). O Estabelecimento do Propósito é, novamente, determinante para como o processo de aprendizagem é estabelecido no monitoramento participativo. No caso Controladoria na Escola, o propósito do projeto era educativo, sendo esse o principal objetivo que baseou outras escolhas metodológicas desta iniciativa. O contexto escolar também influenciou os aspectos de aprendizagem do projeto. Em outras iniciativas, a aprendizagem pode não ser o foco principal, restringindo o aprendizado ao processo de implementação somente.

Na subcategoria Recursos Humanos é importante levar em consideração quais são as  pessoas envolvidas em cada uma das etapas do monitoramento, quais seus conhecimentos técnicos sobre os assuntos envolvidos na iniciativa e qual a necessidade de capacitação desses atores para execução da metodologia proposta. Ainda sobre os conhecimentos dos envolvidos, na subcategoria Tecnologia é necessário identificar quais são as habilidades dos participantes em utilizar TICs em processos de monitoramento participativo.

Apesar  de ser possível observar aspectos desse processo de aprendizagem, o modelo construído não considera essa perspectiva nos indicadores de análise ou então não deixa explícita essa relação. Desta forma, a partir dessa consideração, foi possível observar em outras subcategorias a existência de elementos envolvidos no processo de aprendizagem e que deveriam ser considerados. No caso estudado, apesar da participação dos estudantes se restringir às etapas de coleta e visualização dos dados, outras iniciativas podem contar com a participação da população em todas as etapas do monitoramento, podendo ser necessárias iniciativas de capacitação em Metodologia e em Gestão do Processo Participativo.

 A aprendizagem está presente em toda a iniciativa e não somente nos processos de capacitação, pois a prática e a ação acarretam em processos de aprendizagem (Villi, 2018, p. 54). Desta forma, é necessário identificar se os atores responsáveis pela mediação da iniciativa possuem habilidades e competências para promover processos de aprendizagem e como eles promovem e organizam esses espaços de aprendizado. No caso estudado, o professor, enquanto educador, já assume esse processo como recurso humano com alta capacidade de interação com os alunos, influenciando na qualidade da participação e aprendizagem destes no processo de monitoramento.

 Por fim, é necessário levar em consideração na análise de iniciativas de monitoramento participativo como a Organização do Ambiente pode influenciar o processo de aprendizagem dos participantes, uma vez que esse ambiente precisa não só criar a atmosfera para os alunos participarem, mas também para aprender.

O princípio de negociação mede as diferentes necessidades e opiniões a partir da compreensão e mediação de diferentes perspectivas das partes interessadas (Estrella & Gaventa, 1998, p. 45). É uma competência altamente política em que aspectos administrativos e institucionais podem influenciar diretamente, não sendo, assim, restrito às capacidades técnicas. Os Recursos Humanos envolvidos  na gestão da iniciativa precisam ser dotados de recursos políticos e cognitivos, assim como capacidades técnicas de conhecimentos sobre o monitoramento participativo, para influenciar esses processos de negociação. Não foi objetivo da pesquisa explorar os fluxos de negociação dentro do governo, mas entre a CG-DF e as escolas participantes da iniciativa.

 No caso analisado, a Mediação do Processo realizada pelos professores precisa oferecer o apoio metodológico para orientar o fluxo da conversa entre os participantes, assim como mediar as interações e negociações entre os estudantes, disponibilizando as informações necessárias para o debate e participação. As tecnologias envolvidas também influenciam esse processo de negociação ao viabilizar a coleta de informações. Com essa coleta é possível que as informações geradas pela pesquisa coletiva sirvam para embasar esses processos de negociação. Desta forma, o uso da Tecnologia e o Desenho da Metodologia são instrumentos para embasar o processo de negociação com os participantes e a CG-DF.

 O propósito da ação, que dará origem a metodologia e outras escolhas operacionais, precisa estar de acordo com as expectativas do público alvo da iniciativa. Esse propósito pode ser negociado entre as partes envolvidas ou então estabelecido entre os idealizadores da iniciativa, mas em todos os casos é necessário que esteja alinhado com os interesses dos participantes. No caso estudado, o propósito passou por processo de adaptação para se adequar ao contexto escolar e oferecer projeto condizente com as perspectivas das escolas. Outro ponto importante foi a inscrição das escolas no edital, processo que certifica que as escolas participantes estão, em certa medida, alinhadas com os objetivos e expectativas da iniciativa desenhada pela CG-DF.

Por fim, a flexibilidade é o processo contínuo de adaptação dos processos às diferentes experiências e circunstâncias pois não existe conjunto de ações padronizadas para execução de monitoramentos participativos (Estrella & Gaventa, 1998, p. 48). No caso analisado, a metodologia desenhada pela CG-DF coloca os professores e a equipe escolar como organizadoras da ação dentro da escola. Sendo assim, a função dos mediadores foi adaptar a iniciativa de coleta de dados ao contexto escolar. As escolas também foram responsáveis por mobilizar os recursos humanos, físicos e tecnológicos utilizados na execução da iniciativa.

A  organização do ambiente em que a participação dos alunos aconteciam também era determinada pela escola tendo em vista suas condições físicas e suas expectativas para o projeto. Houveram escolas que a etapa de coleta e visualização dos relatórios envolvia somente o time de  alunos inscrito, outras ainda contaram com a participação de outros alunos da escola, ou ainda da comunidade e dos pais dos alunos. A apresentação dos relatórios poderiam contar com a utilização de recursos tecnológicos como retro projetor ou caixa de som, assim como a distribuição dos participantes poderia ser organizada por fileiras ou em roda, a depender da proposta da escola ou ainda de sua infraestrutura disponível.

 

Discussão

  O uso do conceito de Capacidades de Governo Relacionadas à Utilização de TICs em Processo de Participação Social (CGTPS) desenvolvido por Stefani (2015), assim como as Capacidades Conversacionais definidas por Souza (2016), para análise do caso Controladoria na Escola na etapa de Auditoria Cívica mostrou-se relevante na medida que revelou aspectos inerentes aos processos participativos mediados por TICs, mas foi possível observar a necessidade de alargamento do conceito para abranger todo o processo de monitoramento participativo.
        Assim como observado por Souza (2016), as capacidades técnicas foram determinantes para o processo de monitoramento participativo. Os conhecimentos dos atores envolvidos sobre o processo implementado influencia diretamente a participação do público alvo e a forma em que a interação entre Estado e sociedade acontece. Apesar disso, foi possível identificar também que as capacidades envolvidas no processo são diversas e integradas entre os quatro âmbitos definidos por Grindle (1996). Considera-se, portanto, importante explorar também as outras capacidades para que seja possível criar modelos capazes de descrever processos de monitoramento participativo utilizando tecnologias

O modelo proposto por Stefani (2015) para as Capacidades Técnicas de Utilização de TICs em Processos Participativos foi satisfatório para abarcar aspectos tecnológicos existentes na iniciativa Controladoria na Escola, contudo não foi suficiente para explorar os aspectos de interação e conversa das atividades presenciais da iniciativa. É importante também ressaltar que o momento de uso das tecnologias para o monitoramento participativo não depende somente da disponibilidade de estrutura física e tecnológica, orçamento e de recursos humanos qualificados, mas principalmente de aspectos de gestão da iniciativa e mediação do processo. Como já foi exposto neste estudo, o modelo leva em consideração a interação entre os participantes por meios digitais, não considerando aspectos importantes para a interação e conversação realizada de forma presencial. Diante disto, o modelo desenhado por Souza (2016) agregou o aspecto das interações presenciais à análise empregada nesta pesquisa, pois seu foco é nas capacidades inerentes à conversa entre os participantes.

Foi possível verificar na análise que alguns dos aspectos levantados por Souza (2016) estavam presentes na categoria Gestão do Processo Participativo de Stefani (2015). Contudo, o modelo de Stefani (2015) engloba esses aspectos em somente uma categoria, o que dificulta a análise detalhada de cada um deles, e não leva em consideração os fluxos de interação entre os participantes. Desta forma, as Capacidades Conversacionais descritas por Souza (2016) são capacidades que estão relacionadas às capacidades técnicas de Gestão do Processo Participativo, como definido por Stefani (2015).

O Estabelecimento do Propósito se mostrou como indicador importante para determinar os rumos da iniciativa, pois a partir dele é possível determinar outros aspectos da política, tendo em vista que processos de monitoramento participativo mediados por tecnologia podem receber propósitos distintos. No caso observado, apesar de ser idealizado por um órgão de accountability governamental, a ação não possui propósitos para aplicar sanções ou punições. A iniciativa, por outro lado, possui intenção educativa, não possuindo como objetivo a coleta de dados para uso da CG-DF.

As ferramentas tecnológicas envolvidas se mostraram como recurso mobilizado para aumento da capilaridade pelo território do Distrito Federal e também possibilitou a geração de um banco de dados sobre a auditoria, viabilizando informações e conhecimento sobre as condições estruturais das escolas públicas da região. A CG-DF, enquanto órgão governamental detentor de capacidades técnicas para tratamento e formatação dos dados, produziu relatórios com visualização das informações produzidas pela coleta.

Esse processo de transformação e tradução dos dados foi essencial para a participação dos estudantes no projeto, pois esses alunos não possuíam os conhecimentos técnicos necessários para trabalhar com o volume de dados gerados. Além disso, essas informações foram necessárias para embasar as próximas etapas do game. Desta forma, o tratamento de dados e geração de informações, assim como organização e tradução dessas informações, é um aspecto técnico importante para processos de monitoramento participativos que envolvem participantes que não possuem esses conhecimentos, sendo uma capacidade estatal importante para implementação pelo governo desse tipo de iniciativa.

          No caso da CG-DF, o órgão governamental possuía a metodologia que foi adaptada ao contexto escolar. Uma campanha que não condiz com a realidade do contexto aplicado é ineficiente e pode levar o processo de monitoramento ao fracasso. Uma campanha condizente com esse contexto e que engaja o público alvo leva o governo a ter capacidades para implementar a política. O conhecimento sobre contexto local, portanto, também pode ser inserido como um critério de análise na subcategoria Desenho da Metodologia.

No caso analisado, surgiu um ator com papel fundamental na implementação de iniciativas utilizando TICs no contexto escolar. O professor possui conhecimentos inerentes ao contexto monitorado e do público alvo da ação, adquirindo responsabilidades vinculadas à Mediação do Processo. Dentro da gama de possibilidades de mediadores, é importante observar a qual contexto esse mediador pertence, assim como seu nível de conhecimento sobre o contexto e sobre o processo de monitoramento participativo. Também é interessante observar se esse mediador adquiriu o conhecimento do processo específico do monitoramento a partir de capacitações oferecidas pelo órgão governamental idealizador do projeto. No caso da CG-DF, os professores que exercem papel de mediação foram capacitados para execução do projeto, oferecendo as informações necessárias sobre o processo, uso da ferramenta tecnológica e os conceitos que o órgão desejava trabalhar com os alunos como Controle Social e Combate à Corrupção.

           Além disso, dado o foco no processo de aprendizagem, o recurso concentrado na mediação realizada pelos professores é a atuação desses atores no processo de aprendizagem e formação dos alunos. Eles também assumem papel como ponte entre a CG-DF e os alunos em muitas situações, seja no processo de formação dos alunos, de execução do monitoramento, na comunicação do projeto ao órgão de controle e na transmissão e tradução das informações produzidas pela etapa de monitoramento, assim como atuar como mediador do processo participativo e conduzir a reflexão crítica dessas informações pelos estudantes. Esses professores também possuem papel importante na coordenação do projeto e na tradução das informações técnicas do projeto aos alunos. Apesar desse achados, mostra-se necessário explorar mais a atuação dos professores na coordenação e adaptação da ação e da metodologia a partir dos aspectos de Negociação e Flexibilidade do monitoramento participativo para identificar as capacidades estatais envolvidas nesse processo, pois esses professores não são só mediadores da participação dos alunos, mas também são responsáveis pela implementação da iniciativa no contexto local.

           A subcategoria Liderança e Condução Política de Stefani (2015, p. 149) está alocada em Capacidades Políticas e aborda as capacidades concentradas no líder e sua equipe na condução de projetos e políticas públicas. Em casos de monitoramento participativo utilizando TICs essa subcategoria poderia ser explorada enquanto capacidade técnica, tendo em vista algumas necessidades e particularidades do processo. Em primeiro lugar, o papel de liderança se focaliza no órgão de controle, e não somente a um líder do projeto, especificamente. A equipe que precisa ser liderada são os professores na execução do projeto em cada uma das escolas, envolvendo ainda aspectos de governança. Essa governança é realizada, principalmente, por meios digitais. Esse aspecto é complementar a subcategoria Mediação do Processo, mas amplo ao abarcar aspectos de gestão da iniciativa.

            Outro aspecto inerente ao monitoramento participativo são os processos de aprendizagem. Como trazido na análise, o modelo não foi suficiente para explorar esse aspecto do monitoramento e ainda pode se revelar como variante complexa para análise das capacidades estatais nesse tipo de iniciativa por envolver conceitos sobre o processo  de aprendizado e relações socioestatais. Nessas relações também é possível observar a troca de experiências, recursos e informações entre Estado e sociedade, influenciando o processo de implementação do monitoramento.

Ainda sobre as relações entre Estado e sociedade, a troca de informação também se revela como tópico importante para análise das capacidades estatais nesses processos uma vez que esse é o principal recurso para a participação. Villi (2018), em estudo sobre as interações socioestatais em iniciativas de monitoramento participativo, constatou que os processos de troca de informação são complexos, existindo processos de troca de informações em diferentes fluxos de interação entre Estado e sociedade. Isso se revela como tópico importante para se considerar na construção de modelos sobre as capacidades estatais em processos de monitoramento participativo.

 

 

Considerações finais

 

A presente pesquisa dedicou-se a analisar as capacidades técnicas envolvidas em processos de monitoramento participativo utilizando TICs. O objetivo era identificar em que medida as capacidades estatais se diferem nessa modalidade de participação entre outras modalidades que foram estudadas por Souza (2016) e Stefani (2015). Para isso, foi empregado estudo de caso com foco na etapa de Auditoria Cívica do projeto Controladoria na Escola, promovido pela Controladoria-geral do Distrito Federal nos anos de 2016 a 2018, que propõe-se a  monitorar a estrutura física das escolas  e oferecer essas informações  à comunidade escolar para o desenho de projetos atacando os problemas identificados nesse processo de coleta.
            A partir do modelo de análise construído com base no levantamento bibliográfico,  a ótica das capacidades estatais foi aplicada no caso a partir dos critérios de Souza (2016) e Stefani (2015). As subcategorias foram organizadas pelo ciclo de monitoramento participativo de Villi (2018) a partir das características dessas em cada uma das etapas envolvidas. Após, as subcategorias foram distribuídas pelos quatro princípios do monitoramento participativo definidos por Estrella e Gaventa (1998). A partir dessa análise, foi possível identificar alguns aspectos que as capacidades estatais para implementação de monitoramento participativo se diferenciam de outras iniciativas de participação mediadas por TICs.

O primeiro resultado é o estudo de caso de uma iniciativa governamental de utilização de TICs para processos de monitoramento participativos, contribuindo para o campo de estudos sobre controle e avaliação de políticas públicas utilizando o Monitorando a Cidade na área de educação, assim como Villi (2018) e Santos e Craveiro (2020). Também contribui para o campo de estudos sobre capacidades estatais em processos participativos, dando continuidade às discussões iniciadas por Stefani (2015), Parra (2017) e Souza (2016).

O segundo resultado é a análise de uma iniciativa governamental de participação social mediadas por TICs, privilegiando a visão do Estado na condução da iniciativa. Além disso, o modelo de análise que trabalha com os aspectos digitais e presenciais das capacidades estatais necessárias para promoção de processos de  participação mediados por TICs. O modelo híbrido entre os estudos de Stefani (2015) e Souza (2015) possibilitou análise detalhada e satisfatória da iniciativa, sendo suficiente para revelar aspectos inerentes aos processos participativos mediados por tecnologias promovidas pelo Estado. O modelo também foi importante para identificar as limitações da pesquisa ao mostrar que as capacidades técnicas não estão isoladas das outras dimensões de capacidades, sendo diretamente relacionadas e influenciadas por essas.

Sendo assim, apesar do foco nas capacidades técnicas, foi possível identificar nesta pesquisa que as capacidades estatais envolvidas no processo são diversas e integradas entre os quatro âmbitos definidos por Grindle (1996). Considera-se, assim, importante explorar também as outras dimensões de capacidades para que seja possível investigar e criar modelos sobre os processos de monitoramento participativo utilizando TICs. Os aspectos de monitoramento participativo definidos por Estrella e Gaventa (1998) não foram inteiramente contemplados, deixando lacunas na definição de um modelo apropriado para explorar as capacidades estatais envolvidas em processos de monitoramento participativo mediados por TICs, principalmente no que diz respeito às capacidades mobilizadas dentro das escolas.

As diferenças encontradas em iniciativas de monitoramento participativo mediados por TICs são voltadas para os aspectos de aprendizagem envolvidos na iniciativa, uma vez que os processos de aprendizagem do público alvo são imprescindíveis para a execução desse tipo de participação. Também verificou-se que os mediadores do processo participativo possuem papel relevante na condução dessa aprendizagem assim como de disponibilização e tradução das informações necessárias para o processo participativo. Os processos de mediação, tradução e aprendizagem dependem diretamente dos recursos humanos envolvidos, público alvo da iniciativa e do propósito da iniciativa. Os aspectos de aprendizagem poderiam ainda gerar novos indicadores e subcategorias no modelo de análise, dada a sua importância e complexidade para o processo.

Outra diferença revelada foi a importância dos conhecimentos técnicos e metodológicos sobre os processos de monitoramento participativos, mas também o conhecimento sobre o público alvo a quem se destina. Conhecer o contexto local dos participantes garante que a metodologia seja adequada às condições desse público. Os mediadores da iniciativa podem, além de conduzir as conversas, gerenciar o processo de monitoramento, organizar os participantes, mobilizar recursos, adaptar a metodologia ao contexto local e traduzir as informações para a linguagem dos participantes. No caso estudado, a mediação era realizada pelos professores e mostrou-se a necessidade de explorar com maior foco os aspectos de flexibilidade e negociação que foram concentradas nessa figura.

 Desta forma, mostra-se a necessidade de dar continuidade na pesquisa com foco no contexto escolar, explorando como a iniciativa foi executada nesses espaços, assim como ampliar a pesquisa às quatro dimensões de capacidades estatais para, assim, construir um modelo prático de análise de capacidades estatais em processos de monitoramento participativos utilizando TICs. O estudo apresentado aponta para a necessidade de investigar com amplitude as capacidades estatais envolvidas em processos descentralizados de participação mediada por TICs, particularmente nos casos de monitoramento participativo que dependem do público local e dos processos de aprendizagem, flexibilidade, negociação e participação para acontecer.

 

 

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1 Bacharel em Gestão de Políticas Públicas pela Universidade de São Paulo e integrante do COLAB-USP, atualmente pesquisadora da Rede Conhecimento Social. Tem experiência com processos participativos e governo aberto. https://orcid.org/0000-0002-4314-8051

2 Docente da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH), credenciada no Programa de Pós Graduação em Mudança Social e Participação Política da USP e coordenadora do grupo de pesquisa COLAB-USP. http://orcid.org/0000-0002-1053-4132