Cadernos
PROMUSPP, São Paulo, v.2
n.1, jan./mar.
2022 ISSN
2764-4510
Capacidades Estatais em Processos
de Monitoramento Participativo Mediados por TICs
Emilly Espildora e
Gisele S. Craveiro
RESUMO
O objetivo desta pesquisa é compreender em que
medida as capacidades técnicas empregadas em processos de
monitoramento participativos utilizando TICs se diferenciam
daquelas envolvidas em outras modalidades de participação social.
A metodologia aplicada foi estudo de caso, sendo o objeto de
investigação as iniciativas de auditoria cívica. A partir disso,
foi possível explorar pontos de divergência entre o modelo e o
caso específico, assim como identificar novas variáveis. A análise
do caso revelou aspectos inerentes aos processos participativos
mediados por tecnologias promovidas pelo Estado e a complexidade
do fluxo de interação entre sociedade e Estado.
Palavras-chave: Monitoramento Participativo; TICs; Capacidades
Estatais; Controle Social; Participação Social.
State Capacities in Participatory Monitoring
Processes Mediated by ICTs
ABSTRACT
This research aims to understand to what extent the
technical capacities involved in participatory monitoring
processes through ICTs differ from those involved in other social
participation modalities. The methodology applied was a case study
on the initiatives promoted by the Office of the Comptroller
General of the Federal District for civic auditing. From this, it
was possible to explore points of divergence between the model and
the specific case, as well as identify new variables. The analysis
of the case revealed aspects inherent to participatory processes
mediated by technologies promoted by the state and the complexity
of the interaction flow between society and the State.
Keywords:
Participatory Monitoring; ICTs; State Capacity; Social Control;
Social Participation.
Capacidades Estatales en Procesos de Monitoreo
Participativo Mediados por TIC
RESUMO
El objetivo de esta investigación es entender hasta
qué punto las capacidades técnicas empleadas en los procesos de
control participativo mediante el uso de las TIC difieren de las
implicadas en otras modalidades de participación social. La
metodología aplicada fue un estudio de caso, siendo el objeto de
investigación las iniciativas de auditoría cívica. A partir de
ahí, fue posible explorar los puntos de divergencia entre el
modelo y el caso concreto, así como identificar nuevas variables.
El análisis del caso reveló aspectos inherentes a los procesos
participativos mediados por tecnologías promovidas por el Estado y
la complejidad del flujo de interacción entre la sociedad y el
Estado.
Palabras-clave: Monitoreo Participativo;
TICs; Capacidades Estatales; Control Social;
Participación Social.
Capacités de l'État dans les processus de suivi
participatif médiatisés par les TIC
RÉSUMÉ
L'objectif de cette recherche est de comprendre dans
quelle mesure les capacités techniques employées dans les
processus de contrôle participatif utilisant les TIC diffèrent de
celles impliquées dans d'autres modalités de participation
sociale. La méthodologie appliquée a été une étude de cas, l'objet
de la recherche étant les initiatives pour l'audit civique. A
partir de là, il a été possible d'explorer les points de
divergence entre le modèle et le cas concret, ainsi que
d'identifier de nouvelles variables. L'analyse de ce cas a révélé
des aspects inhérents aux processus participatifs médiatisés par
des technologies promues par l'État et la complexité du flux
d'interaction entre la société et l'État.
Mots-clé:
Suivi Participatif; TIC; Capacités de l'État ; Contrôle social ;
Participation sociale
As funções
de controle estatal e social receberam maior ênfase a partir
da Reforma Gerencial por conta do objetivo de recuperar
a governança do Estado, dada as demandas por maior eficiência
e fortalecimento da accountability (Bresser-Pereira, 2000). O controle social, por
sua vez, pode ser visto como uma das estratégias de
participação social, ao passo que é um conceito com
divergências em diferentes campos do saber, ocorrendo em
diferentes processos com diferentes alcances e espectros
possíveis (Villi, 2018, p. 33). O monitoramento participativo,
enquanto forma de acompanhamento coletivo e contínuo de alguns
aspectos de interesse público (Villi, 2018, p. 59), é uma
ferramenta possível para o controle social por consistir na
observação da sociedade sobre as ações do Estado.
O monitoramento participativo
tem como característica a mobilização de membros da comunidade
local, que não necessariamente estejam acostumados com processos
técnicos de coleta, mas que possuem conhecimentos acumulados
sobre a sua realidade, promovendo uma pesquisa adaptada a
sua cultura (Villi, 2018, p 53). Sendo assim, esses processos
devem ser entendidos como um processo social por se tratar de
uma negociação que trabalha com poderes, conflitos e suas
resoluções. Além da constante busca por tornar participação uma
prática real (Estrella & Gaventa, 1998, p. 45; Villi, 2018,
p. 57), os processos de monitoramento participativo são
compostos por quatros aspectos fundamentais, sendo eles a
participação, a aprendizagem, a negociação e a flexibilidade
(Estrella & Gaventa, 1998, p. 17).
Nesse sentido, a expansão da
infraestrutura de comunicação junto à conectividade global por
meio da Internet e das Tecnologias de Informação e Comunicação
(TICs) também altera profundamente as dinâmicas sociais,
econômicas e políticas (Parra, 2016; Vaz, 2016), mostrando
grande potencial na conexão entre Estado e sociedade a partir da
participação eletrônica (Oliveira & Garcia, 2019, p. 3) e
novas possibilidades da participação dos cidadãos nos processos
públicos de tomada de decisão (Oliveira & Garcia, 2019, p.
2). A presença da tecnologia, contudo, não é fator suficiente
para a adoção dessas interpretações de uso da tecnologia na
administração pública. Apesar da abertura de espaços digitais
para participação, existem muitas barreiras que impedem a
apropriação desses aparatos pela população, principalmente
relacionadas a questões culturais e técnicas (Oliveira &
Garcia, 2019, p. 6).
A adoção das
tecnologias digitais no ciclo de políticas públicas, por outro
lado, é concentrada nas etapas de implementação e
monitoramento, sendo apenas 1,6% dessas ferramentas destinadas
para avaliação de políticas e serviços públicos (Sampaio et al, 2016, p. 707)
Apesar da atuação estratégica de órgãos de accountability,
principalmente relacionada ao uso de TICs em processos de
participação social, constatou-se poucas investigações
sobre iniciativas inovadoras de atuação desses órgãos de
controle no monitoramento e avaliação de políticas públicas,
especialmente sobre o uso de tecnologias na promoção da
avaliação de serviços públicos (Santos & Craveiro, 2020,
p. 2). mostrando a necessidade de explorar essas iniciativas,
especificamente sobre monitoramento participativo mediados por
TICs.
O protagonismo do Estado na
consolidação de espaços participativos digitais é defendido por
alguns autores, como Oliveira e Garcia (2019, p. 8) e Graeff
(2018, p. 27), revelando a importância de explorar iniciativas
governamentais que promovam processos participativos utilizando
tecnologias, dada a escassez de estudos nesta área (Santos &
Craveiro, 2020, p. 2). Diante das características específicas
dos processos de monitoramento participativo, mostra-se ainda
relevante explorar a atuação estatal em iniciativas promovidas
pelo Estado, tendo em vista as particularidades dessa modalidade
de participação e a escassez de estudos sobre esse tema na
literatura, uma vez que os estudos sobre a participação social
foram historicamente focados na perspectiva da sociedade civil.
Apesar dessa lacuna,
identificaram-se pesquisas que favorecem a perspectiva do Estado
na promoção da participação social mediadas por TICs a partir do
conceito de capacidades estatais, como Stefani (2015) e Parra
(2017) com o desenvolvimento do conceito de Capacidade de
Governo para Utilização de TICs em Processos de Participação
Social (CGTPS) e também Souza (2016) com a definição das
Capacidades Conversacionais.
O conceito de capacidades
estatais surge com a corrente do neoinstitucionalismo e possui o
objetivo de “abrir a caixa preta do Estado” para aprofundar as
pesquisas sobre implementação de políticas públicas (Cingolani,
2013; Gomide, Pereira & Machado, 2017). A CGTPS,
desenvolvida por Stefani (2015) e explorada por Parra (2017),
assim como as Capacidades Conversacionais por Souza (2016),
mostram-se como modelo analítico de grande relevância ao abordar
as capacidades estatais específicas de processos de
participação, especialmente aquelas relacionadas ao uso de TICs.
Contudo, os trabalhos encontrados não abordam os processos de
monitoramento participativo mediados por TICs, revelando
uma lacuna nesta corrente de estudo.
Esta pesquisa foca em
processos de monitoramento participativo mediados por TICs que
foram promovidos por órgãos de controle estatal sob a
perspectiva das capacidades estatais. Para tanto, o trabalho
analisa as ações promovidas no projeto “Controladoria na Escola”
em escolas públicas da região do Distrito Federal entre 2016 e
2018. É um projeto de prevenção primária à corrupção e surge
junto a missão do órgão em formar cidadãos para a participação e
controle social. Foram envolvidos mais de 4 mil alunos e 280
professores orientadores na metodologia de gamificação, na qual
cada atividade recebe uma pontuação e ao final é possível
definir escolas vencedoras, remetendo à ideia de uma grande
gincana entre as instituições (Controladoria Geral Distrito
Federal [CGDF], 2019).
A atividade principal era uma
auditoria cívica, na qual os estudantes observaram e registraram
a situação escolar a partir da metodologia de auditoria proposta
pela CG-DF. Com essas informações, um relatório foi produzido
pelo órgão apontando quais foram os problemas e desafios
encontrados pelos alunos. A ação, assim como outras iniciativas
promovidas por órgãos de controle governamental em escolas
públicas, utilizou a ferramenta “Promise Tracker” ou também
conhecida por “Monitorando a Cidade” para o monitoramento e
avaliação do serviço público de educação (Villi, 2018; Santos
& Craveiro, 2020). O Monitorando a Cidade é “uma plataforma
de monitoramento desenhada para ajudar comunidades, indivíduos e
organizações da sociedade civil a monitorar compromissos do
poder público e, desta forma, demandar uma maior
responsabilidade cívica dos gestores e políticos” (Monitorando a
Cidade, 2017). Na iniciativa estudada, a ferramenta possibilitou
a coleta de dados colaborativa e produção de informações sobre a
infraestrutura escolar da região.
O objetivo desta pesquisa é,
portanto, debruçar-se sobre a etapa “Auditoria Cívica” do
projeto Controladoria na Escola a luz dos modelos de análise
sobre capacidades estatais desenvolvidos por Stefani (2015) e
Souza (2016), buscando compreender em que medida as capacidades
estatais envolvidas no processo de monitoramento participativo
mediados por TICs se diferenciam das capacidades envolvidas em
outras modalidades de participação social. Pretende-se, também,
contribuir com os estudos sobre o uso do Monitorando a Cidade
para avaliação da política de educação pública, como os
trabalhos de Villi (2017) e Santos e Craveiro (2020).
Capacidades Estatais em
processos de Monitoramento Participativo mediados por TICs
O conceito de capacidades
estatais se mostra útil para explorar a perspectiva estatal na
implementação de processos de monitoramento participativo
utilizando TICs na medida que dialoga e contribui com a
literatura em construção sobre capacidades estatais para
participação social, além de explorar a ação estatal e possuir
grande potencial para explicar as condições que viabilizam a
agência do Estado e em como as organizações estatais mobilizam e
transformam recursos, instrumentos e informações em ação (Lima,
2019, p. 61).
As
capacidades estatais é um conceito polissêmico e disputado,
existindo diferentes formas de mensuração, como Gomide et al. (2017, p. 3)
expõe. Esse conceito aparece nos primeiros estudos sobre a
relação de Estados na performance e desenvolvimento econômico,
sendo o trabalho mais relevante deste período o de Skocpol
(1979 como citado em Cingolani, 2013; Gomide et al., 2017) que tratou
da relação entre a autonomia do Estado e o desenvolvimento
econômico, definindo assim os conceitos de autonomia estatal e
capacidades estatais. Em perspectiva similar, Evans (1995)
aprofunda as elaborações desses dois conceitos ao definir que
as capacidades estatais não seriam compostas somente pelas
características do aparelho estatal, mas também pelas relações
do Estado com as estruturas sociais, sendo a autonomia estatal
influenciada pelas capacidades que o Estado dispõe frente à
sociedade, gerando a “autonomia inserida” como chave
organizacional para a eficácia do desenvolvimento econômico.
No Brasil, os estudos sobre capacidades estatais se depararam
com um período ditatorial marcado pelas políticas de
desenvolvimento econômico promovidas pelo Estado autoritário.
Com a retomada dessas políticas desenvolvimentistas em
contextos democráticos, surgiu a necessidade em ampliar o
conceito para abarcar todas os aspectos que um governo com
grande participação social necessita para não produzir
ineficiências ou impasses. (Gomide & Pires, 2014, p. 16).
Como Grin (2012, p. 154)
aponta, por se tratar de um conceito multinível, pode-se adaptar
o conceito para traduzir a realidade empírica sem perder sua
validade explicativa. Tendo como alvo os objetivos previstos
nesta pesquisa, dois trabalhos encontrados na literatura
chamaram atenção por desenvolverem estudos relacionados às
capacidades estatais em processos de participação social,
servindo como referencial teórico os conceitos desenvolvidos por
Stefani (2015) sobre as Capacidades de Governo Relacionadas à
Utilização de TICs em Processos de Participação Social (CGTPS) e
de Souza (2016) na consolidação das Capacidades Conversacionais.
Stefani (2015) utiliza do
conceito de capacidades estatais para investigar a nova
abordagem de interação entre Estado e sociedade com o advento
das TICs. Sendo assim, foca na utilização dessas ferramentas
pelo governo para implementação de canais de participação social
a partir do que ela define como Capacidades de Governo
Relacionadas à Utilização de TICs em Processos de Participação
Social (CGTPS). O trabalho de Parra (2017) utiliza desse
conjunto definido por Stefani (2015) para explorar as
capacidades envolvidas nos processos de coprodução de tecnologia
entre Estado e sociedade, complementando o conceito desenvolvido
ao discutir os aspectos funcionais, tecnológicos e de desenhos
das TICs. No desenvolvimento do estudo de caso, Parra
(2017) identificou alguns pontos de alargamento do conceito
desenvolvido, principalmente no que diz respeito a capacidades
de recursos humanos e capacidades tecnológicas. Visto isso, o
autor afirma que existem possibilidades de ampliação do conceito
(Parra, 2018, p. 124) e alargamento do mesmo (Parra, 2018, p.
119).
Estes trabalhos estudam
situações em que a participação e interação entre sociedade e
governo se dá totalmente por meios digitais, entretanto o
monitoramento participativo, enquanto um processo social, possui
desenho específico que vincula a interação entre diferentes
atores e interessados, conflitos e disputas por poder, por meios
físicos e digitais. Nesse aspecto, houve necessidade de
dimensionar capacidades não previstas nestes dois trabalhos.
As Capacidades Conversacionais
por Souza (2016, p. 110) são categorias úteis para diferentes
contextos em que haja a necessidade de gerar a interação e
negociação de interesses entre diferentes atores. São
capacidades específicas ligadas às condições técnicas para a
promoção de processos participativos, uma vez que o conhecimento
sobre o desenho e desenvolvimento de processos participativos
influencia as capacidades estatais na promoção da participação
(Souza, 2016, p. 61).
Para
construção do conceito de capacidades estatais neste
trabalho, seguimos o proposto por Goertz (2006 como citado em
Grin, 2012; Gomide et al., 2017) ao aplicar três camadas analíticas: (i) o
nível básico ou ontológico; (ii) o nível secundário ou
constitutivo e (iii) o nível indicativo ou operacional (Gomide
et al., 2017,
p. 5; Grin, 2012, p. 153), além da definição entre dois fluxos
possíveis: o formativo e o reflexivo (Gomide et al., 2017, p. 7). A
Tabela 01 apresenta decomposição do conceito de CGTPS e das
Capacidades Conversacionais em suas partes constitutivas a
partir dos três níveis de construção do conceito, dando origem
a definição síntese do conceito empregado nesta
pesquisa.
Tabela 01: “Níveis conceituais
do conceito de capacidades estatais”
Níveis
|
Definição empregada na pesquisa
|
Nível Básico
|
Condições ou recursos para a ação estatal,
mobilizadas de forma relacional e sistêmica a partir da
necessidade do governo em políticas menos
institucionalizadas e com caráter temporário na composição
de processos governamentais de participação sociais
utilizando a tecnologia.
|
Nível Secundário
|
Capacidades Técnicas estão vinculadas ao
conhecimento, habilidades e recursos cognitivos do corpo
técnico para formulação e desempenho de funções que
envolvam o domínio de técnicas e tecnologias específicas
na interação socioestatal presencial e digital.
|
Nível Indicativo
|
Conceito de Arranjos Institucionais como
conjunto de regras, mecanismos e processos que definem a
forma particular como se coordenam atores e interesses na
implementação de uma política pública específica.
|
Elaboração própria a partir de Stefani (2015) e Souza (2016).
Para análise do caso deste
estudo, será empregado também o conceito de arranjos
institucionais, assim como Stefani (2015). O conceito se mostra
relevante em análises de implementação de políticas públicas por
oferecerem definições do que podem ser recursos e condições para
implementação de políticas públicas particulares a partir de uma
perspectiva global, sistêmica e relacional (Stefani, 2015, p.
68), além de possibilitar a diferenciação entre os arranjos
institucionais do ambiente institucional do governo (Gomide
& Pires, 2014, p. 19), trazendo à análise os elementos
específicos da política. Isso é útil pois as capacidades do
Estado variam entre políticas públicas, não sendo possível
afirmar políticas públicas comuns (Gomide & Pires, 2014, p.
373).
Metodologia e modelo teórico
Tendo em vista as quatro
dimensões de capacidades estatais levantadas por Grindle (1996)
e exploradas por Stefani (2015) e Souza (2016), são as
capacidades técnicas que possuem maior influência em processos
participativos. São elas, também, que influenciaram diretamente
a execução do monitoramento participativo mediado por
tecnologias nas escolas participantes do projeto
“Controladoria na Escola”. O Quadro 01 sintetiza o quadro
teórico e as respectivas categorias de análise que foram
aplicadas ao caso estudado:
Quadro 01 - Categorias de
Análise
Monitoramento Participativo
|
Estrella e Gaventa (1998)
|
Participação
|
Aprendizagem
|
Negociação
|
Flexibilidade
|
Capacidades Estatais
|
Capacidades Técnicas
|
Stefani (2015)
|
Recursos Humanos
|
Souza (2016)
|
Estabelecimento do Propósito
|
Recursos Financeiros e Físicos
|
Organização do Ambiente
|
Tecnologia
|
Desenho da Metodologia
|
Gestão do Processo Participativo
|
Mediação do Processo
|
Fonte:
Elaboração própria.
O objetivo do modelo teórico
desenvolvido é identificar se os trabalhos existentes sobre
capacidades estatais em processos de participação social são
adequados para explicar as capacidades estatais envolvidas em
uma modalidade específica de participação social, que é o
monitoramento participativo. Para isso, foi realizado
levantamento bibliográfico na literatura nacional e
internacional, assim como análise documental e uma entrevista
semi-estruturada, que foi transcrita e analisada, com o então
Subcontrolador de Transparência, Ouvidoria e Controle Social da
CG-DF.
Descrição do
caso “Controladoria
na Escola”
O projeto Controladoria na
Escola ocorreu no Distrito Federal de 2016 a 2018 a partir de
iniciativa da Controladoria Geral do Distrito Federal (CG-DF)
pela Subcontroladoria de Transparência e Controle Social
(SUTCS), da Secretaria de Estado de Educação e Secretaria de
Estado de Fazenda e em parceria com outros órgãos como o
Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) e o
Serviço Social da Indústria Departamento Regional do Distrito
Federal (SESI).
A iniciativa
recebeu certificado de reconhecimento do Fórum Nacional de
Combate à Corrupção como um dos 22 projetos educacionais e de
conscientização mapeados pela campanha #TodosJuntosContraCorrupcao, assim como o selo Ação Íntegra, durante o
Seminário de Segurança Institucional promovido pelo Banco do
Brasil, no Instituto Serzedello Corrêa. Também foi premiada no 22º Concurso Inova promovido pela Escola
Nacional de Administração Pública (ENAP) durante a 4ª Semana
de Inovação – Serviço Público para o Futuro.
Entre os casos de uso do
Monitorando a Cidade em processos de monitoramento participativo
em escolas, a iniciativa conduzida pela CG-DF demonstra grande
relevância, principalmente pela mobilização de uma parcela
significativa de atores estatais e não-estatais durante os
quatro anos de aplicação do projeto em todo território do
Distrito Federal (Santos & Craveiro, 2020, p. 11). A
iniciativa também envolveu um número significativo de alunos e
professores, atingindo mais de 4 mil alunos em 2017. Essa edição
identificou mais de 15 mil problemas através da auditoria
realizada pelos alunos, resultando ainda em 80 miniprojetos e
1350 problemas solucionados (Santos & Craveiro, 2020, p.
15). Essa iniciativa piloto também serviu como base para a
replicação em outros casos em outros Estados do território
nacional (CGDF, 2019).
Desta forma, é um projeto de
prevenção primária à corrupção que surge junto a missão do
órgão em formar cidadãos para a participação e controle social.
Ou seja, são ações que visam “promover a formação de cidadãos
conscientes e participativos no enfrentamento à corrupção,
tornando-os mais imunes à sua prática e mais participativos no
seu combate, dispostos ao exercício do controle social e
capacitados para usar as ferramentas de transparência
disponíveis” (CGDF, 2018, p. 9). Em 2016, ocorreu o projeto
piloto do Controladoria na Escola em 10 escolas públicas de
ensino fundamental e médio do Distrito Federal, ampliando para
mais de 100 escolas a partir de 2017 com a adoção da ferramenta
tecnológica Monitorando a Cidade. O projeto é desenvolvido em
formato de gamificação e a atividade principal era uma auditoria
cívica, na qual os estudantes observaram e registraram a
situação da escola a partir da metodologia proposta pela CG-DF.
O aplicativo Monitorando a Cidade foi instalado nos smartphones
dos alunos ou professores e serviu como instrumento de registro
das observações realizadas pelos alunos. Desta forma, foi gerada
uma base de dados sobre os registros levantados pelos alunos de
todas as escolas, tornando possível a análise e confecção de
relatórios pela CG-DF, traduzindo essas informações para a
comunidade escolar. Cada relatório foi entregue aos professores
de cada escola e deveria ser apresentado a, no mínimo, todos os
alunos participantes do projeto. Na sequência, o time de alunos
deveria buscar as causas dos problemas que foram identificados e
suas possíveis soluções para elaboração do Desafio, que é o
desenho de um projeto que pretende enfrentar e solucionar essas
questões a partir de ações organizadas pela própria comunidade
escolar.
A etapa
“coleta de dados” é realizada exclusivamente pelo telefone
celular. Para isso, é gerado um código de campanha que deve
ser inserido no aplicativo do smartphone para preenchimento do formulário. A metodologia
utilizada no projeto, segundo o Subcontrolador da época, foi
construída com base nos processos de auditoria do Tribunal de
Contas da União (TCU) e na matriz de auditoria do Programa
Saúde da Família. As informações coletadas correspondem a
avaliação pelos alunos e professores das condições estruturais
e da merenda da escola, não avaliando a qualidade das aulas,
professores ou equipe gestora.
Os relatórios produzidos pela
CG-DF deveriam ser apresentados a todos os alunos inscritos no
projeto e poderiam ser apresentados a toda comunidade. Essas
apresentações eram organizadas pelos professores e era
necessário confirmar essa apresentação com envio de fotos à
CG-DF. Este momento tem o objetivo de promover uma
discussão e análise dos dados para planejar e produzir os
projetos da etapa de Desafio. Após a implementação desses
projetos, o ciclo é iniciado novamente com a reaplicação dos
questionários de auditoria nos espaços para comparação das
informações após a ação escolar. Desta forma, a informação
produzida pela Auditoria possui como usuário final os alunos e a
comunidade escolar, sendo o órgão de controle um usuário
secundário deste produto. Os relatórios produzidos pela CG-DF,
portanto, possuem caráter informativo, não sendo auditorias de
controle ou punitivas.
Um panorama das 3 edições do
programa é apresentado na Tabela 02. É possível verificar o
crescimento da iniciativa, com o aumento do número de escolas
participantes e do valor da premiação. Mas, apesar de haver
aumento do número de vagas em 2018 para 200 escolas, somente 109
participaram do projeto, e embora o aumento de alunos inscritos
no projeto, passando de 39 para 43 a média de alunos por escola,
o número de professores diminuiu de 2018 para 2017, mesmo
havendo acréscimos nos incentivos para participação como
premiação em dinheiro e viagem.
Tabela 02: Dados Controladoria
na Escola 2016 a 2018
Ano
|
Escolas
|
Alunos
|
Profs.
|
Prêmio
|
2016
|
10
|
200
|
-
|
-
|
2017
|
104
|
4.000
|
280
|
R$ 140 mil + 30 bolsas de pós
|
2018
|
109
|
4.716
|
277
|
R$ 265 mil + viagem + prêmio professores +
bolsas de pós
|
Fonte: Elaboração própria a partir da entrevista.
Das 109 escolas
inscritas no ano de 2018, 88 realizaram a etapa de
Auditoria Cívica e destas 67 escolas chegaram à etapa final do
projeto. Ainda que tenha havido uma porcentagem relevante de
engajamento, quase 40% das escolas inscritas não conseguiram
concluir o projeto, sendo que 20% não chegaram nem à metade.
Ao fim, somente 61% das escolas inscritas conseguiram
finalizar, sendo que isso representa somente 33,5% do total de
200 vagas abertas inicialmente. É possível identificar, assim,
que existem questões envolvidas na implementação e nas
capacidades estatais da iniciativa que podem influenciar a
conclusão do projeto ou não pela escola.
Tendo em vista o objetivo da
pesquisa, buscou-se vincular os arranjos institucionais
encontrados no estudo de caso ao conceito de monitoramento
participativo. Abaixo, mostra-se os indicadores de capacidades
técnicas definidos por Stefani (2015) e Souza (2016) envolvidas
em cada uma das etapas do ciclo de monitoramento participativo
desenvolvido por Villi (2018):
Figura 01 - Capacidades
Estatais no Ciclo de Monitoramento Participativo
Fonte: Elaboração própria a partir de Villi
(2018), Stefani (2015) e Souza (2016).
O modelo construído foi
aplicado na análise do caso “Controladoria na Escola” por conta
de seu ciclo de monitoramento participativo e na investigação
das capacidades técnicas envolvidas na etapa de Auditoria
Cívica. Foi identificado que as capacidades envolvidas na etapa
de Planejamento são determinantes para definição das outras
etapas do ciclo e podem estar relacionadas diretamente com mais
de uma etapa. As capacidades envolvidas em Definição da
Metodologia e no Estabelecimento do Propósito estão presentes em
todo o processo, pois definem como cada uma das etapas serão
executadas.
O Estabelecimento do Propósito
define qual o papel de cada um dos agentes envolvidos e como se
dá a participação do público alvo. Também determina para quem se
destina o uso das informações produzidas pela coleta de dados,
induzindo a Definição da Metodologia para atingir o propósito
definido. A atuação e participação do público alvo, portanto,
depende diretamente dos arranjos envolvidos no Estabelecimento
do Propósito e na Definição da Metodologia, pois são elas que
determinam as diretrizes a serem seguidas por todo o
monitoramento, principalmente na etapa de uso e visualização das
informações, principal produto do processo de pesquisa coletiva.
Na etapa de
Análise de Dados é necessário levar em consideração os
conhecimentos técnicos dos Recursos Humanos em processamento
de dados. Esses dados serão tratados a partir do propósito da
iniciativa, levando em consideração qual será o uso principal
das informações geradas e qual a metodologia adotada para
atingir os objetivos da campanha, sendo o conhecimento técnico
sobre processamento de dados uma capacidade técnica necessária
para implementação de processos de monitoramento
participativo.
O Estabelecimento
do Propósito e a Definição da Metodologia também influenciam
como será feito o uso e divulgação das informações produzidas
pela etapa de Análise dos Dados. O uso dessas informações pode
ser destinado ao próprio público alvo da ação, assim como a
outros atores interessados. Tendo em vista os objetivos de uso
e divulgação das informações, o processo de criação das
visualizações das informações é direcionado para o usuário
final da informação. No caso da CG-DF, as informações
produzidas pela Análise de Dados eram direcionadas para os
alunos e professores, estando presente nesse processo a
capacidade de tradução de informações técnicas, adequando
esses dados para o público alvo. Essa tradução determina como
as informações produzidas pela coleta de dados podem levar ao
propósito estabelecido pela campanha de monitoramento
participativo ou não.
Ao retomar as definições Estrella e
Gaventa (1998), é possível identificar como os aspectos
do monitoramento participativo se relacionam em cada uma das
capacidades analisadas. A participação
é o principal aspecto de processos de pesquisa que envolvem um
grupo de pessoas ou partes interessadas. No caso estudado, as
etapas que apresentam momentos concretos de participação dos
estudantes é a coleta de dados utilizando o aplicativo
Monitorando a Cidade e a etapa de visualização dos relatórios
produzidos pela CG-DF, mas outras capacidades determinaram
como essa organização foi realizada.
O Propósito da Ação é a
subcategoria que traz os aspectos sobre como a participação
acontece, quem são os participantes em cada etapa e quais
perspectivas são enfatizadas. É a partir dessas definições
iniciais que outros elementos são mobilizados para consolidar a
participação. Como exposto por Estrella e Gaventa (1998, p. 29),
práticas de monitoramento participativo podem ser mais ou
menos participativas, por isso o Estabelecimento do Propósito
determinará como os outros arranjos serão organizados e quais
recursos serão mobilizados para atingir o propósito definido
para a participação. No caso estudado, a participação foi
restrita às etapas de coleta e visualização de dados, mas ainda
é possível existir outros casos em que ocorra a participação na
etapa de planejamento e de análise dos dados.
A Mediação do
Processo no Controladoria na Escola é realizada pelos
professores, sendo esses atores detentores de recursos
técnicos e cognitivos para mobilizar e influenciar a
participação dos alunos. Também são responsáveis por fornecer
as informações necessárias aos estudantes para participação na
ação, assim como também são organizadores da iniciativa.
Portanto, a atuação desses mediadores pode influenciar como o
processo de participação acontece, seja na consolidação da
participação como na organização da iniciativa.
Outro aspecto dos
processos de monitoramento participativos diz respeito ao
processo de aprendizagem na formação e fortalecimento de
competências dos envolvidos na ação. Esse processo de
aprendizagem está relacionado com a ideia de “aprender na
prática” e, dependendo do público alvo e de como é
desempenhada sua participação, processos de capacitação podem
ser necessários (Estrella & Gaventa, 1998, p. 43). O
Estabelecimento do Propósito é, novamente, determinante para
como o processo de aprendizagem é estabelecido no
monitoramento participativo. No caso Controladoria na Escola,
o propósito do projeto era educativo, sendo esse o principal
objetivo que baseou outras escolhas metodológicas desta
iniciativa. O contexto escolar também influenciou os aspectos
de aprendizagem do projeto. Em outras iniciativas, a
aprendizagem pode não ser o foco principal, restringindo o
aprendizado ao processo de implementação somente.
Na
subcategoria Recursos Humanos é importante levar em
consideração quais são as pessoas envolvidas em cada uma
das etapas do monitoramento, quais seus conhecimentos técnicos
sobre os assuntos envolvidos na
iniciativa e qual a necessidade de capacitação desses atores
para execução da metodologia proposta. Ainda sobre os
conhecimentos dos envolvidos, na subcategoria Tecnologia é
necessário identificar quais são as habilidades dos
participantes em utilizar TICs em processos de monitoramento
participativo.
Apesar de ser possível
observar aspectos desse processo de aprendizagem, o modelo
construído não considera essa perspectiva nos indicadores de
análise ou então não deixa explícita essa relação. Desta forma,
a partir dessa consideração, foi possível observar em outras
subcategorias a existência de elementos envolvidos no processo
de aprendizagem e que deveriam ser considerados. No caso
estudado, apesar da participação dos estudantes se restringir às
etapas de coleta e visualização dos dados, outras iniciativas
podem contar com a participação da população em todas as etapas
do monitoramento, podendo ser necessárias iniciativas de
capacitação em Metodologia e em Gestão do Processo
Participativo.
A aprendizagem
está presente em toda a iniciativa e não somente nos processos
de capacitação, pois a prática e a ação acarretam em processos
de aprendizagem (Villi, 2018, p. 54). Desta forma, é
necessário identificar se os atores responsáveis pela mediação
da iniciativa possuem habilidades e competências para promover
processos de aprendizagem e como eles promovem e organizam
esses espaços de aprendizado. No caso estudado, o professor,
enquanto educador, já assume esse processo como recurso humano
com alta capacidade de interação com os alunos, influenciando
na qualidade da participação e aprendizagem destes no processo
de monitoramento.
Por fim, é
necessário levar em consideração na análise de iniciativas de
monitoramento participativo como a Organização do Ambiente
pode influenciar o processo de aprendizagem dos participantes,
uma vez que esse ambiente precisa não só criar a atmosfera
para os alunos participarem, mas também para aprender.
O princípio de negociação mede
as diferentes necessidades e opiniões a partir da compreensão e
mediação de diferentes perspectivas das partes interessadas
(Estrella & Gaventa, 1998, p. 45). É uma competência
altamente política em que aspectos administrativos e
institucionais podem influenciar diretamente, não sendo, assim,
restrito às capacidades técnicas. Os Recursos Humanos envolvidos
na gestão da iniciativa precisam ser dotados de recursos
políticos e cognitivos, assim como capacidades técnicas de
conhecimentos sobre o monitoramento participativo, para
influenciar esses processos de negociação. Não foi objetivo da
pesquisa explorar os fluxos de negociação dentro do governo, mas
entre a CG-DF e as escolas participantes da iniciativa.
No caso analisado,
a Mediação do Processo realizada pelos professores precisa
oferecer o apoio metodológico para orientar o fluxo da
conversa entre os participantes, assim como mediar as
interações e negociações entre os estudantes, disponibilizando
as informações necessárias para o debate e participação. As
tecnologias envolvidas também influenciam esse processo de
negociação ao viabilizar a coleta de informações. Com essa
coleta é possível que as informações geradas pela pesquisa
coletiva sirvam para embasar esses processos de negociação.
Desta forma, o uso da Tecnologia e o Desenho da Metodologia
são instrumentos para embasar o processo de negociação com os
participantes e a CG-DF.
O propósito da
ação, que dará origem a metodologia e outras escolhas
operacionais, precisa estar de acordo com as expectativas do
público alvo da iniciativa. Esse propósito pode ser negociado
entre as partes envolvidas ou então estabelecido entre os
idealizadores da iniciativa, mas em todos os casos é
necessário que esteja alinhado com os interesses dos
participantes. No caso estudado, o propósito passou por
processo de adaptação para se adequar ao contexto escolar e
oferecer projeto condizente com as perspectivas das escolas.
Outro ponto importante foi a inscrição das escolas no edital,
processo que certifica que as escolas participantes estão, em
certa medida, alinhadas com os objetivos e expectativas da
iniciativa desenhada pela CG-DF.
Por fim, a flexibilidade é o
processo contínuo de adaptação dos processos às diferentes
experiências e circunstâncias pois não existe conjunto de ações
padronizadas para execução de monitoramentos participativos
(Estrella & Gaventa, 1998, p. 48). No caso analisado, a
metodologia desenhada pela CG-DF coloca os professores e a
equipe escolar como organizadoras da ação dentro da escola.
Sendo assim, a função dos mediadores foi adaptar a iniciativa de
coleta de dados ao contexto escolar. As escolas também foram
responsáveis por mobilizar os recursos humanos, físicos e
tecnológicos utilizados na execução da iniciativa.
A organização do
ambiente em que a participação dos alunos aconteciam também era
determinada pela escola tendo em vista suas condições físicas e
suas expectativas para o projeto. Houveram escolas que a etapa
de coleta e visualização dos relatórios envolvia somente o time
de alunos inscrito, outras ainda contaram com a
participação de outros alunos da escola, ou ainda da comunidade
e dos pais dos alunos. A apresentação dos relatórios poderiam
contar com a utilização de recursos tecnológicos como retro
projetor ou caixa de som, assim como a distribuição dos
participantes poderia ser organizada por fileiras ou em roda, a
depender da proposta da escola ou ainda de sua infraestrutura
disponível.
O uso do conceito de
Capacidades de Governo Relacionadas à Utilização de TICs em
Processo de Participação Social (CGTPS) desenvolvido por Stefani
(2015), assim como as Capacidades Conversacionais definidas por
Souza (2016), para análise do caso Controladoria na Escola na
etapa de Auditoria Cívica mostrou-se relevante na medida que
revelou aspectos inerentes aos processos participativos mediados
por TICs, mas foi possível observar a necessidade de alargamento
do conceito para abranger todo o processo de monitoramento
participativo.
Assim como observado por Souza
(2016), as capacidades técnicas foram determinantes para o
processo de monitoramento participativo. Os conhecimentos dos
atores envolvidos sobre o processo implementado influencia
diretamente a participação do público alvo e a forma em que a
interação entre Estado e sociedade acontece. Apesar disso, foi
possível identificar também que as capacidades envolvidas no
processo são diversas e integradas entre os quatro âmbitos
definidos por Grindle (1996). Considera-se, portanto, importante
explorar também as outras capacidades para que seja possível
criar modelos capazes de descrever processos de monitoramento
participativo utilizando tecnologias
O modelo proposto por Stefani
(2015) para as Capacidades Técnicas de Utilização de TICs em
Processos Participativos foi satisfatório para abarcar aspectos
tecnológicos existentes na iniciativa Controladoria na Escola,
contudo não foi suficiente para explorar os aspectos de
interação e conversa das atividades presenciais da iniciativa. É
importante também ressaltar que o momento de uso das tecnologias
para o monitoramento participativo não depende somente da
disponibilidade de estrutura física e tecnológica, orçamento e
de recursos humanos qualificados, mas principalmente de aspectos
de gestão da iniciativa e mediação do processo. Como já foi
exposto neste estudo, o modelo leva em consideração a interação
entre os participantes por meios digitais, não considerando
aspectos importantes para a interação e conversação realizada de
forma presencial. Diante disto, o modelo desenhado por Souza
(2016) agregou o aspecto das interações presenciais à análise
empregada nesta pesquisa, pois seu foco é nas capacidades
inerentes à conversa entre os participantes.
Foi possível
verificar na análise que alguns dos aspectos levantados por
Souza (2016) estavam presentes na categoria Gestão do Processo
Participativo de Stefani (2015). Contudo, o modelo de Stefani
(2015) engloba esses aspectos em somente uma categoria, o que
dificulta a análise detalhada de cada um deles, e não leva em
consideração os fluxos de interação entre os participantes. Desta forma, as Capacidades
Conversacionais descritas por Souza (2016) são capacidades que
estão relacionadas às capacidades técnicas de Gestão do
Processo Participativo, como definido por Stefani (2015).
O
Estabelecimento do Propósito se mostrou como indicador
importante para determinar os rumos da iniciativa, pois a
partir dele é possível determinar outros aspectos da política,
tendo em vista que processos de monitoramento participativo
mediados por tecnologia podem receber propósitos distintos. No
caso observado, apesar de ser idealizado por um órgão de accountability
governamental, a ação não possui propósitos para aplicar
sanções ou punições. A iniciativa, por outro lado, possui
intenção educativa, não possuindo como objetivo a coleta de
dados para uso da CG-DF.
As ferramentas tecnológicas
envolvidas se mostraram como recurso mobilizado para aumento da
capilaridade pelo território do Distrito Federal e também
possibilitou a geração de um banco de dados sobre a auditoria,
viabilizando informações e conhecimento sobre as condições
estruturais das escolas públicas da região. A CG-DF, enquanto
órgão governamental detentor de capacidades técnicas para
tratamento e formatação dos dados, produziu relatórios com
visualização das informações produzidas pela coleta.
Esse
processo de transformação e tradução dos dados foi essencial
para a participação dos estudantes no projeto, pois esses
alunos não possuíam os conhecimentos técnicos necessários para
trabalhar com o volume de dados gerados. Além disso, essas
informações foram necessárias para embasar as próximas etapas
do game.
Desta forma, o tratamento de dados e geração de informações,
assim como organização e tradução dessas informações, é um
aspecto técnico importante para processos de monitoramento
participativos que envolvem participantes que não possuem
esses conhecimentos, sendo uma capacidade estatal importante
para implementação pelo governo desse tipo de iniciativa.
No caso da CG-DF, o órgão
governamental possuía a metodologia que foi adaptada ao
contexto escolar. Uma campanha que não condiz com a realidade
do contexto aplicado é ineficiente e pode levar o processo de
monitoramento ao fracasso. Uma campanha condizente com esse
contexto e que engaja o público alvo leva o governo a ter
capacidades para implementar a política. O conhecimento sobre
contexto local, portanto, também pode ser inserido como um
critério de análise na subcategoria Desenho da Metodologia.
No caso
analisado, surgiu um ator com papel fundamental na
implementação de iniciativas utilizando TICs no contexto
escolar. O professor possui conhecimentos inerentes ao
contexto monitorado e do público
alvo da ação, adquirindo responsabilidades vinculadas à
Mediação do Processo. Dentro da gama de possibilidades de
mediadores, é importante observar a qual contexto esse
mediador pertence, assim como seu nível de conhecimento sobre
o contexto e sobre o processo de monitoramento participativo.
Também é interessante observar se esse mediador adquiriu o
conhecimento do processo específico do monitoramento a partir
de capacitações oferecidas pelo órgão governamental
idealizador do projeto. No caso da CG-DF, os professores que
exercem papel de mediação foram capacitados para execução do
projeto, oferecendo as informações necessárias sobre o
processo, uso da ferramenta tecnológica e os conceitos que o
órgão desejava trabalhar com os alunos como Controle Social e
Combate à Corrupção.
Além disso, dado o foco no
processo de aprendizagem, o recurso concentrado na mediação
realizada pelos professores é a atuação desses atores no
processo de aprendizagem e formação dos alunos. Eles também
assumem papel como ponte entre a CG-DF e os alunos em muitas
situações, seja no processo de formação dos alunos, de
execução do monitoramento, na comunicação do projeto ao órgão
de controle e na transmissão e tradução das informações
produzidas pela etapa de monitoramento, assim como atuar como
mediador do processo participativo e conduzir a reflexão
crítica dessas informações pelos estudantes. Esses professores
também possuem papel importante na coordenação do projeto e na
tradução das informações técnicas do projeto aos alunos.
Apesar desse achados, mostra-se necessário explorar mais a
atuação dos professores na coordenação e adaptação da ação e
da metodologia a partir dos aspectos de Negociação e
Flexibilidade do monitoramento participativo para identificar
as capacidades estatais envolvidas nesse processo, pois esses
professores não são só mediadores da participação dos alunos,
mas também são responsáveis pela implementação da iniciativa
no contexto local.
A subcategoria Liderança e
Condução Política de Stefani (2015, p. 149) está alocada em
Capacidades Políticas e aborda as capacidades concentradas no
líder e sua equipe na condução de projetos e políticas
públicas. Em casos de monitoramento participativo utilizando
TICs essa subcategoria poderia ser explorada enquanto
capacidade técnica, tendo em vista algumas necessidades e
particularidades do processo. Em primeiro lugar, o papel de
liderança se focaliza no órgão de controle, e não somente a um
líder do projeto, especificamente. A equipe que precisa ser
liderada são os professores na execução do projeto em cada uma
das escolas, envolvendo ainda aspectos de governança. Essa
governança é realizada, principalmente, por meios digitais.
Esse aspecto é complementar a subcategoria Mediação do
Processo, mas amplo ao abarcar aspectos de gestão da
iniciativa.
Outro aspecto inerente
ao monitoramento participativo são os processos de
aprendizagem. Como trazido na análise, o modelo não foi
suficiente para explorar esse aspecto do monitoramento e ainda
pode se revelar como variante complexa para análise das
capacidades estatais nesse tipo de iniciativa por envolver
conceitos sobre o processo de aprendizado e relações
socioestatais. Nessas relações também é possível observar a
troca de experiências, recursos e informações entre Estado e
sociedade, influenciando o processo de implementação do
monitoramento.
Ainda sobre as relações entre
Estado e sociedade, a troca de informação também se revela como
tópico importante para análise das capacidades estatais nesses
processos uma vez que esse é o principal recurso para a
participação. Villi (2018), em estudo sobre as interações
socioestatais em iniciativas de monitoramento participativo,
constatou que os processos de troca de informação são complexos,
existindo processos de troca de informações em diferentes fluxos
de interação entre Estado e sociedade. Isso se revela como
tópico importante para se considerar na construção de modelos
sobre as capacidades estatais em processos de monitoramento
participativo.
A presente pesquisa dedicou-se
a analisar as capacidades técnicas envolvidas em processos de
monitoramento participativo utilizando TICs. O objetivo era
identificar em que medida as capacidades estatais se diferem
nessa modalidade de participação entre outras modalidades que
foram estudadas por Souza (2016) e Stefani (2015). Para isso,
foi empregado estudo de caso com foco na etapa de Auditoria
Cívica do projeto Controladoria na Escola, promovido pela
Controladoria-geral do Distrito Federal nos anos de 2016 a 2018,
que propõe-se a monitorar a estrutura física das escolas
e oferecer essas informações à comunidade escolar
para o desenho de projetos atacando os problemas identificados
nesse processo de coleta.
A
partir do modelo de análise construído com base no levantamento
bibliográfico, a ótica das capacidades estatais foi
aplicada no caso a partir dos critérios de Souza (2016) e
Stefani (2015). As subcategorias foram organizadas pelo ciclo de
monitoramento participativo de Villi (2018) a partir das
características dessas em cada uma das etapas envolvidas. Após,
as subcategorias foram distribuídas pelos quatro princípios do
monitoramento participativo definidos por Estrella e Gaventa
(1998). A partir dessa análise, foi possível identificar alguns
aspectos que as capacidades estatais para implementação de
monitoramento participativo se diferenciam de outras iniciativas
de participação mediadas por TICs.
O primeiro resultado é o
estudo de caso de uma iniciativa governamental de utilização de
TICs para processos de monitoramento participativos,
contribuindo para o campo de estudos sobre controle e avaliação
de políticas públicas utilizando o Monitorando a Cidade na área
de educação, assim como Villi (2018) e Santos e Craveiro (2020).
Também contribui para o campo de estudos sobre capacidades
estatais em processos participativos, dando continuidade às
discussões iniciadas por Stefani (2015), Parra (2017) e Souza
(2016).
O segundo resultado é a
análise de uma iniciativa governamental de participação social
mediadas por TICs, privilegiando a visão do Estado na condução
da iniciativa. Além disso, o modelo de análise que trabalha com
os aspectos digitais e presenciais das capacidades estatais
necessárias para promoção de processos de participação
mediados por TICs. O modelo híbrido entre os estudos de Stefani
(2015) e Souza (2015) possibilitou análise detalhada e
satisfatória da iniciativa, sendo suficiente para revelar
aspectos inerentes aos processos participativos mediados por
tecnologias promovidas pelo Estado. O modelo também foi
importante para identificar as limitações da pesquisa ao mostrar
que as capacidades técnicas não estão isoladas das outras
dimensões de capacidades, sendo diretamente relacionadas e
influenciadas por essas.
Sendo assim, apesar do foco
nas capacidades técnicas, foi possível identificar nesta
pesquisa que as capacidades estatais envolvidas no processo são
diversas e integradas entre os quatro âmbitos definidos por
Grindle (1996). Considera-se, assim, importante explorar também
as outras dimensões de capacidades para que seja possível
investigar e criar modelos sobre os processos de monitoramento
participativo utilizando TICs. Os aspectos de monitoramento
participativo definidos por Estrella e Gaventa (1998) não foram
inteiramente contemplados, deixando lacunas na definição de um
modelo apropriado para explorar as capacidades estatais
envolvidas em processos de monitoramento participativo mediados
por TICs, principalmente no que diz respeito às capacidades
mobilizadas dentro das escolas.
As
diferenças encontradas em iniciativas de monitoramento
participativo mediados por TICs são voltadas para os aspectos
de aprendizagem envolvidos na iniciativa, uma vez que os
processos de aprendizagem do público alvo são imprescindíveis
para a execução desse tipo de participação. Também
verificou-se que os mediadores do processo participativo
possuem papel relevante na condução dessa aprendizagem assim
como de disponibilização e tradução das informações
necessárias para o processo participativo. Os processos de
mediação, tradução e aprendizagem dependem diretamente dos
recursos humanos envolvidos, público alvo da iniciativa e do
propósito da iniciativa. Os aspectos
de aprendizagem poderiam ainda gerar novos indicadores e
subcategorias no modelo de análise, dada a sua importância e
complexidade para o processo.
Outra diferença revelada foi a
importância dos conhecimentos técnicos e metodológicos sobre os
processos de monitoramento participativos, mas também o
conhecimento sobre o público alvo a quem se destina. Conhecer o
contexto local dos participantes garante que a metodologia seja
adequada às condições desse público. Os mediadores da iniciativa
podem, além de conduzir as conversas, gerenciar o processo de
monitoramento, organizar os participantes, mobilizar recursos,
adaptar a metodologia ao contexto local e traduzir as
informações para a linguagem dos participantes. No caso
estudado, a mediação era realizada pelos professores e
mostrou-se a necessidade de explorar com maior foco os aspectos
de flexibilidade e negociação que foram concentradas nessa
figura.
Desta forma,
mostra-se a necessidade de dar continuidade na pesquisa com
foco no contexto escolar, explorando como a iniciativa foi
executada nesses espaços, assim como ampliar a pesquisa às
quatro dimensões de capacidades estatais para, assim,
construir um modelo prático de análise de capacidades estatais
em processos de monitoramento participativos utilizando TICs.
O estudo apresentado aponta para a necessidade de investigar
com amplitude as capacidades estatais envolvidas em processos
descentralizados de participação mediada por TICs,
particularmente nos casos de monitoramento participativo que
dependem do público local e dos processos de aprendizagem,
flexibilidade, negociação e participação para acontecer.
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Bacharel em Gestão
de Políticas Públicas pela Universidade de São Paulo e
integrante do COLAB-USP, atualmente pesquisadora da Rede Conhecimento
Social. Tem experiência com processos participativos e governo
aberto. https://orcid.org/0000-0002-4314-8051
Docente da Escola de Artes, Ciências e
Humanidades (EACH), credenciada no Programa de Pós Graduação em
Mudança Social e Participação Política da USP e coordenadora do
grupo de pesquisa COLAB-USP. http://orcid.org/0000-0002-1053-4132