Cadernos PROMUSPP, São Paulo, v.2 n.1, jan./mar. 2022 ISSN 2764-4510


Epistemologia da pesquisa em mudança social

Gustavo Luis Gutierrez1
Marco Bettine2



Resumo

Este artigo de opinião tem como objetivo discutir a natureza da pesquisa sobre mudança social e movimentos sociais. Partir-se-á de teóricos da sociologia clássica e seus diálogos com as dimensões sociais da economia, política ou cultural para desenvolver uma possível relação entre os usos de diferentes metodologias no campo de pesquisa em mudança social e movimentos sociais. Para concluir aponta-se para a complexidade do objeto, a interdisciplinaridade como necessidade intrínseca do objeto, a delimitação teórica e os métodos e técnicas de pesquisa adotados como parte necessária para legitimação do objeto.

Palavras-chave: mudança social; movimentos sociais; sociologia.

Epistemology of research in social change

Summary

This opinion article aims to discuss the nature of research on social change and social movements. It will start from theorists of classical sociology and their dialogues with the social dimensions of economics, politics or culture to develop a possible relationship between the uses of different methodologies in the field of research on social change and social movements. To conclude, we point to the complexity of the object, interdisciplinarity as an intrinsic need of the object, the theoretical delimitation and the research methods and techniques adopted as a necessary part for the legitimation of the object.

Keywords: social change; social movements; sociology.

Epistemología de la investigación en cambio social

Resumen

Este artículo de opinión tiene como objetivo discutir la naturaleza de la investigación sobre el cambio social y los movimientos sociales. Se partirá de teóricos de la sociología clásica y sus diálogos con las dimensiones sociales de la economía, la política o la cultura para desarrollar una posible relación entre los usos de diferentes metodologías en el campo de la investigación sobre el cambio social y los movimientos sociales. Para concluir, señalamos la complejidad del objeto, la interdisciplinariedad como necesidad intrínseca del objeto, la delimitación teórica y los métodos y técnicas de investigación adoptados como parte necesaria para la legitimación del objeto.

Palabras clave: cambio social; movimientos sociales; sociología.

Épistémologie de la recherche en changement social

Résumé

Cet article d'opinion vise à discuter de la nature de la recherche sur le changement social et les mouvements sociaux. Il partira des théoriciens de la sociologie classique et de leurs dialogues avec les dimensions sociales de l'économie, de la politique ou de la culture pour développer une relation possible entre les usages de différentes méthodologies dans le domaine de la recherche sur le changement social et les mouvements sociaux. Pour conclure, nous pointons la complexité de l'objet, l'interdisciplinarité comme nécessité intrinsèque de l'objet, la délimitation théorique et les méthodes et techniques de recherche adoptées comme partie nécessaire à la légitimation de l'objet.

Mots clés : changement social ; mouvements sociaux; sociologie.



Ciência e ciências

A ciência moderna é, essencialmente, o retrabalhar das ideias e dados coletados historicamente a partir do paradigma científico desenvolvido inicialmente por Galileu, Newton, Darwin e Descartes. A humanidade observa as estrelas e a natureza a seu redor desde sempre. Teorias como a dos movimentos dos planetas, da gravidade ou da adaptação das espécies são originais pelo paradigma científico moderno, no qual elas se fundamentam.

A evolução da ciência, e seu sucesso, vão se basear também em práticas científicas generalizadas, voltadas, na sua origem, para as ciências da natureza, ou áreas duras. Replicabilidade, experimentação, mensuração, comparação, uso de grupo controle são algumas técnicas de pesquisa que permitem avançar o conhecimento, reformular as teorias e construir assertivas científicas com conteúdo de verdade, para aquele momento específico. Os desdobramentos da ciência moderna são evidentes e não é o caso de retomar sua discussão, embora alguns autores como Maurício Tragtenberg (1979) e Paul Feyerabend (2007) apontem para uma supervalorização da sua inefabilidade. Convém ter presente, também, que as subáreas de humanas têm histórias diferentes. O direito romano, a filosofia grega ou a política de Platão são campos anteriores à constituição da ciência moderna, enquanto outros, como a sociologia, são muito recentes.

Com relação às ciências humanas a questão da apropriação do paradigma científico é mais complexa. É evidente que neste caso as técnicas de pesquisa acima apontada são difíceis de aplicar, ou impossíveis. Não se trata mais de um laboratório onde as variáveis podem ser trabalhadas separadamente e fazer intervenções dirigidas. Não há também como falar de técnicas, no sentido etimológico de obter sempre o mesmo resultado a partir da sua aplicação em condições controladas. Quando muito um conhecimento de natureza normativa que pode aproximar o pesquisador a um objetivo previamente definido. Tendo sempre presente que no caso de um conhecimento técnico o critério de sucesso é interno e inerente ao objeto (o objetivo de cura de uma técnica cirúrgica é universal, se o objetivo não é a cura não se trata de uma técnica cirúrgica, pelo menos dentro dos padrões éticos que a medicina adota institucionalmente) enquanto que no caso de um conhecimento de natureza normativa o critério de sucesso é definido antes e externamente ao objeto onde é aplicado (uma técnica pedagógica pode definir como objetivo de sucesso a alfabetização no menor tempo possível, um critério de sucesso entre muitos outros). No caso da técnica espera-se cem por cento de sucesso se todas as variáveis forem corretamente controladas, já no conhecimento normativo (como é comum na educação, economia, política ou direito) não existe essa relação.

Esta impossibilidade de uso da prova laboratorial cria uma situação paradoxal. Por um lado, as teorias se multiplicam e permanecem vivas e legitimadas mesmo quando são absolutamente excludentes entre si, por outro lado, as teorias são importantíssimas para o desenvolvimento do campo científico, em função justamente da fragilidade da abordagem empírica.

No campo de pesquisa da sociologia, seu objeto de pesquisa, a sociedade, tem características próprias. Para começar, o sujeito agente da ação de pesquisar está inserido e é fruto do seu objeto de pesquisa. Além disso, o objeto de pesquisa está em permanente transformação no tempo, o que torna toda série temporal de dados de difícil comparação. Ou ainda, o número praticamente infinito de variáveis torna inevitável o recurso de cortes epistemológicos, que diminuem a confiabilidade dos resultados.

Neste sentido, a ideia de definir a pesquisa sociológica como pesquisa em mudança social faz uma aproximação mais correta ao objeto de estudo, considerando suas características constitutivas. Há, contudo, outro aspecto a ser considerado. É difícil pensar uma mudança social decorrente de uma causa social (embora Durkheim trabalhe nessa linha de raciocínio devemos levar em conta que está tentando construir a especificidade de uma área nova de conhecimento). Normalmente a mudança social decorre de transformações políticas, econômicas, culturais ou de uma combinação entre elas. De uma revolução de trabalhadores à luta pela emancipação das mulheres sempre estão presentes questões políticas, econômicas e culturais, atravessando o processo de mudança social.

Com Durkheim, Marx e Weber, assim como seus principais desdobramentos a exemplo de marxistas (Luckács ou Gramsci, por exemplo), Bourdieu e Habermas, a sociologia busca compor um corpo teórico que seja, ao mesmo tempo, específico da área de conhecimento e que abarque minimamente toda a sua diversidade. A pesquisa em sociologia vai partir da apropriação de uma destas teorias sociológicas mais comumente aceitas e avançar dentro das características de cada escola. O fato de, em humanas, muitas vezes, escolas de pensamento serem mutuamente excludentes aponta para o fato (inevitável) de que ambas não podem estar certas. Isto, contudo, não é fundamental, O fato de a pesquisa ser apoiada num autor específico, numa perspectiva de ortodoxia metodológica com relação às suas ideias, vai permitir que o leitor perceba a coerência da reflexão, sua complexidade e profundidade. Muitas vezes pesquisas de boa qualidade e sofisticadas, mesmo partindo de escolas de pensamento diferentes, chegam à construção descritiva de determinado aspecto social com pontos significativos em comum. Ou seja, não há bom referencial que não possa ser usado de forma superficial e equivocada, assim como, todas as grandes escolas de pensamento, se bem utilizadas, podem contribuir para aumentar o conhecimento sobre alguns aspectos do real.

A questão da interdisciplinaridade, pensada de uma forma objetiva e delimitada, passa então pela compreensão dos recursos de pesquisa de dois campos diferentes de pesquisa. Por exemplo, a pesquisa sobre uma greve ou um movimento popular contra o custo de vida pode partir, ou ter como base, um dos teóricos clássicos (ou ainda uma interpretação específica de um deles), mas precisa também dispor de uma familiaridade básica com pesquisas da área econômica que pensam, por exemplo, distribuição de renda, moeda, inflação, custo de vida, crescimento econômico.

A interdisciplinaridade, de certa forma, está na própria origem da sociologia. Marx dialoga fortemente com a economia, assim como Weber com a política e Durkheim com a cultura.

No contexto mais amplo da sociedade, como objeto de pesquisa, partindo da ideia de que ela está permanentemente em mudança, os movimentos sociais possibilitam um recorte que, sem deixar de ser amplo, permite uma aproximação mais seletiva e sistemática ao objeto. A mudança social não se limita aos movimentos sociais, mas os movimentos sociais ajudam a delimitar, no tempo e no espaço os sujeitos sociais envolvidos, suas interações seletivas, as trocas materiais e simbólicas que ocorrem, assim como o cenário mais amplo onde ele exerce alguma influência.

A mudança social e os movimentos sociais

O conceito de mudança social é evidente. A sociedade está em permanente transformação e os processos de mudança são constantes. Sua apropriação enquanto objeto de pesquisa sociológica, contudo, não é simples. Não é fácil delimitar onde e quando começa e acaba um processo de mudança social, assim como nem sempre estão claros seus principais sujeitos sociais e os papéis que desempenham na mudança. Processos que se deram há muito tempo não mostram bem seu impacto real no momento em que ocorreram, em função das características da mudança já terem sido incorporada ao cotidiano que rodeia o pesquisador. Mudanças sociais contemporâneas ao pesquisador não mostram facilmente seu verdadeiro alcance e natureza no tempo.

No final do século passado vai ocorrer um debate sobre a natureza da mudança social enquanto um processo linear e, portanto, evolucionista ou processos cíclicos diversos sem uma necessária relação entre si (Rezende, 2002). Desde já este tipo de abordagem é fortemente teórica, tendendo a subordinar as conclusões da observação do real à própria opção metodológica prévia, como é característico, aliás, tanto dos evolucionistas como dos marxistas (existe uma discussão de que o marxismo seria um modelo evolucionista de modos de produção que não cabe discutir aqui).

Com relação especificamente à percepção da mudança social enquanto ciclos há também uma distinção entre ciclos curtos e longos. Neste caso os ciclos curtos seriam muito visíveis e teriam forte impacto imediato sobre a realidade social. Todas as mudanças nas formas de relacionamento social, que estamos assistindo agora, em função do desenvolvimento de novos usos da tecnologia da comunicação podem servir de exemplo. O problema aqui é a dificuldade em perceber a real duração dos fenômenos. Ninguém nega a importância hoje do facebook, mas convém lembrar que até poucos anos havia uma locadora de fitas de vídeo cassete em cada quarteirão da cidade.

Já os chamados ciclos longos apontam mudanças profundas nas características de uma sociedade. Sua evolução, contudo, é lenta e discreta, sendo difíceis de trabalhar enquanto objeto de pesquisa sociológica. Podemos colocar como exemplo o fato a seguir.

Há pouco mais de dez anos aconteceu de uma professora da rede pública de ensino esquecer um aluno de castigo e ir almoçar. Foi notícia de jornais, despertou uma onda de indignação e de reprovação popular.

O interessante é notar que este tipo de punição acontece há dezenas de anos e, antes, não era motivo de escândalo, pelo contrário, as pessoas comentavam coisas com “- é bom, assim o menino aprende...”. Em algum momento a percepção social sobre o papel do profissional de ensino e o respeito pelos direitos da criança mudaram, a ponto de um comportamento socialmente aceito passar a ser condenado.  Mudanças como esta devem estar acontecendo agora, mas não são fáceis de enxergar até que se generalizam.

A intenção aqui é conjugar a ideia de mudança social com a de movimento social e apontar para uma definição de movimento social como um objeto que delimita, de forma positiva, a ideia mais ampla de mudança social, procurando pensá-lo numa perspectiva interdisciplinar como já foi apontado, relacionando uma escola de pensamento sociológico legitimada na academia com um referencial original da economia, da política, ou cultura. O movimento social, neste sentido, é uma manifestação específica da mudança social. Não é a única e não mantém uma relação de hierarquia, ou mesmo valorativa, dentro do campo mais amplo da mudança social. A ideia de que o conceito de movimento social pode constituir-se uma delimitação positiva da mudança social se baseia no fato de que, na maioria dos casos, o objeto de pesquisa movimento social trazer consigo referências mais concretas quanto ao momento e lugar em que ocorre, assim como os papéis que desempenham os diferentes sujeitos sociais envolvidos.

Conforme buscamos desenvolver num texto anterior (Gutierrez e Bettine, 2017), as ciências sociais, de uma forma geral, e mais especificamente a sociologia, vivem desde o início do século XX um grande embate que divide a reflexão entre marxistas e não marxistas. A questão da percepção acadêmica dos movimentos sociais não foge à regra.

Mas existem outras interfaces que convém ter presentes. Uma delas é com a ciência política. A mudança social passa de uma forma geral pelas relações de poder de cada grupo social, no interior da sociedade. Da forma como as ciências humanas foram sendo construídas, no interior da academia, o poder é objeto de pesquisa da ciência política, o que leva a colocar o objeto mudança social no campo da política, com a observação de que o poder na sociedade é, em essência, poder institucionalizado ou, em outros termos, só ocorrem mudanças sociais quando elas são percebidas e adotadas pelas instâncias institucionais de poder (como o poder executivo ou o poder legislativo). Em outra perspectiva, as mudanças sociais começam e terminam no próprio âmbito da sociedade e o poder institucionalizado ou, mais especificamente, seus representantes se quiserem sobreviver politicamente terão que adotar as mudanças da própria sociedade.

Movimento social, num sentido genérico, faz referência a qualquer grupo de pessoas que se articula na busca de um objetivo específico que altera as relações sociais dentro de um determinado contexto. Tem um fundo claramente político, no sentido etimológico do termo, já que visa modificar a distribuição de poder na sociedade.

Para ultrapassar esta definição, quase profilática, torna-se necessário (a) perceber o objeto numa perspectiva histórica e (b) e inseri-lo coerentemente numa explicação macrossociológica ou, em outros termos, numa escola de pensamento legitimada entre os pares do meio acadêmico.

Com relação ao primeiro aspecto, os movimentos sociais são comumente associados ao desenvolvimento da democracia representativa liberal, numa relação que alterna situações de complementação e de confronto. O movimento social, portanto, é fruto da modernidade, das sociedades industriais e do desenvolvimento das democracias representativas. (Bringen, Etchart, 2008; Pereira, 2012).  

Com relação ao segundo aspecto a questão é mais controversa. Há uma diferença importante de abordagem. Desde a perspectiva das democracias liberais os movimentos sociais complementam as ações dos partidos políticos nos limites da representação formal, seja no Poder Legislativo e/ou no Executivo. Neste sentido, os movimentos sociais tendem sempre à sua própria extinção, seja porque (a) ocorre uma desmobilização que leva a seu desaparecimento da cena social, (b) por que consegue, mesmo parcialmente, ver atendidas suas reinvindicações, o que leva ao seu consequente esvaziamento ou (c) por que ele se transforma mudando a agenda de reinvindicações e a sua estrutura interna. O fato definidor é que na perspectiva da democracia liberal toda mudança social vai ocorrer, sempre, através das formas institucionalizadas de representação.  Ou seja, reinvindicações populares só vão transformar efetivamente as relações de poder na sociedade na medido que são incorporadas formalmente pelas instâncias de representação política do poder Legislativo, do Executivo ou, ainda, pelo Judiciário em situações de conflito entre os outros dois.

Desde a perspectiva marxista os movimentos sociais antecedem e ultrapassam a ação dos partidos burgueses, constituindo-se no elemento central da revolução comunista. Esta concepção está na própria origem do marxismo e vai inspirar as formas de luta dos partidos comunistas durante todo o século XX. Karl Marx em seu livro A Guerra Civil na França (2011), um dos seus textos mais pragmático onde introduz o conceito de ditadura do proletariado, aponta a importância das lutas e revoltas populares para tomada do poder pela classe trabalhadora e a vitória da revolução socialista. Esta estratégia é complementada (ou deturpada, dependendo da análise) por Lenin, somando as propostas de profissionalização da militância do partido comunista e as tentativas de ocupar espaços (aparelhar no jargão comunista) nas instâncias importantes da sociedade, como as forças de segurança, meios de comunicação de massas, universidades ou administração pública. O sucesso da revolução socialista, ou ainda da implantação do projeto do socialismo real, passa pela articulação de todos estes elementos, sob direção e controle do partido comunista e a ajuda dos sindicatos autênticos (ou simplesmente alinhados com os comunistas), movimentos sociais e a ação de órgãos representativos da sociedade civil organizada.

Nos casos mais emblemáticos de tomada do poder pelos comunistas, a revolução soviética na Rússia e a revolução maoísta na China, vamos encontrar estes fatores associados a uma forte crise de legitimidade do governo capitalista e o desgaste decorrente de um conflito militar externo. Mas, de uma forma geral, as tentativas comunistas de tomada do poder, bem sucedidas ou não, passam pelos movimentos sociais.  

A diferença entre as duas concepções de movimento social é clara. Na perspectiva liberal os movimentos sociais podem colaborar, ou até mesmo aprimorar, o funcionamento da democracia representativa, mas jamais poderão substituir suas formas institucionalizadas de consultas e tomada de decisões. Inclusive, em última instância, os movimentos sociais só poderão ter suas pretensões atendidas a partir do momento em que sejam acolhidas pelo poder político institucionalizado. Na perspectiva marxista os movimentos sociais, por sua vez, tendem a ultrapassar as formas burguesas de representação e a cumprir um papel importante na articulação que derruba o regime capitalista e impõe um governo revolucionário comunista.

Em termos conceituais mais gerais o movimento social se situa entre dois extremos: a guerra civil e a explosão pontual de violência política. No caso da guerra civil ocorre um esgarçamento do tecido social onde o estado não consegue mais exercer minimamente seu papel de conciliar os interesses dos diferentes grupos que compõem a sociedade, que partem para o conflito direto e armado. É a radicalização da ação dos movimentos sociais em luta uns contra os outros. Já as explosões pontuais de violência política se caracterizam por alastrarem-se rapidamente e, com a mesma rapidez, esgotar seu poder de manifestação. É o caso dos linchamentos, ações de vandalismo ou saques gerados por um fato pontual como, por exemplo, a morte de uma pessoa de uma comunidade pelas forças de segurança. É uma manifestação social que não chega a se constituir como movimento.

Existem muitas definições e tipologias do que é um movimento social. Podemos citar, por exemplo, a de Sherer-Warren (2014) (movimentos sociais organizados, manifestações ou marchas dos movimentos sociais, manifestações amplas da cidadania e/ou “indignados”, manifestação bloqueio ou “formas de ação nas ruas”, ação manifesto sociocultural). Para efeito deste texto, a definição ampla apresentada no início parece suficiente.

Exemplos de movimentos sociais nos regimes de democracia representativa no século XX

O melhor exemplo de movimento social é, sem dúvida, o movimento feminista ou das mulheres. Surgido no final do século XIX, no esteio da busca de igualdade propugnada pela revolução francesa, vai se focar inicialmente nos direitos políticos, como a extensão do direito de voto para as mulheres e o acesso ao ensino. É um movimento vitorioso que tem suas reinvindicações atendidas no tempo. Este sucesso, contudo, não diminui o movimento ou leva a uma desmobilização permanente. Pelo contrário, apesar de fortes conflitos e divergências internas, o movimento consegue se atualizar mantendo-se presente com novas questões para a agenda pública. Ele transita constantemente pelos diferentes campos aqui apontados, podendo focar-se tanto na política (o direito a voto, por exemplo), na economia (salários iguais) ou cultura (denuncia do preconceito ou agressões).

Outra linha de atuação importante para os movimentos sociais é a luta pela terra e a reforma agrária. No Brasil podemos destacar a atuação das Ligas Camponesas e Francisco Julião no Nordeste, muito atuantes até o processo repressivo que se seguiu à tomada do poder pelos militares em 1964. Estas questões relacionadas com a ocupação da terra e a reforma agrária são retomadas, a partir dos anos 80, pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, agora dentro de uma proposta fortemente influenciada pelo marxismo, com uma clara hierarquia interna, divisão de tarefas entre militantes, quadros, dirigentes e ideólogos, escolas de formação política de quadros e a adoção de práticas clandestinas, ou semiclandestinas.

Outro exemplo de movimento social são as Sociedades Amigos do Bairro (SAB’s) que se originam na Europa e chegam ao Brasil em torno de 1930. Com o início do regime militar em 1964 sofrem um processo complexo onde, por um lado, são mal vistas e eventualmente controladas pelo poder público e, por outro, principalmente a partir da flexibilização do regime na década de oitenta, são alvo de tentativas de utilização política por parte de setores da esquerda política.

Outro movimento importante, do final da década de setenta, foi o Movimento Contra a Carestia ou custo de vida (MCC). Numa interface com as associações de bairro e as Comunidades Eclesiais de Base (organizações ligadas à igreja católica e inspiradas na Teologia da Libertação que segue o Concílio Vaticano II) o MCC chega a fazer manifestações significativas, com suas lideranças ocupando um espaço político importante. Vai desaparecer nos anos seguintes entre lutas internas, tentativas de instrumentalização política pela esquerda e a repressão do governo. Vamos perceber aqui, em função da conjuntura do fim do período militar, em geral, uma maior politização de todo o ambiente social.

Entre 1983 e 84 vamos assistir o movimento pela eleição direta para presidente da república, chamado Diretas Já e composto por um amplo leque de aliança entre a população em geral, órgãos da sociedade civil organizada e partidos políticos institucionalizados. Uma aliança parecida vai apoiar, e conseguir, o impedimento do presidente Fernando Collor em 1992. Estes movimentos também são classificados como movimentos civis, numa alusão ao conceito de cidadania, já que envolvem setores institucionalizados.

Os movimentos sociais no Brasil parecem seguir uma dinâmica própria, sem repetir necessariamente o que acontece em outros lugares. Na Europa Ocidental o movimento ecológico, por exemplo, parece ter muita mais história e penetração na sociedade do que no caso brasileiro. O movimento de ocupação de imóveis urbanos, chamado Okupa, também tem pouca repercussão no Brasil Só mais recentemente as ocupações de imóveis urbanos passam a ser mais importante, mas num modelo que se origina no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, pelo chamado Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, e que traz marcas organizacionais típicas da sua origem.

Neste mesmo sentido, os movimentos sociais no Brasil não parecem alinhados com os movimentos nos Estados Unidos da América. O movimento dos direitos civis dos negros, muito importante na década de sessenta, não parece ter uma relação direta com a dinâmica dos movimentos nacionais. Da mesma forma, os movimentos contra a guerra do Vietnam e as manifestações hippies e de contra cultura parecem ter tido menos repercussão no Brasil que em outros países ocidentais. Convém ter em mente o regime político que o país vive no período.

Mas, de uma forma geral, vamos encontrar aqui a interação proposta ao observar uma relação comum entre a mudança social e aspectos econômicos, políticos ou culturais.

Exemplos de movimentos sociais nos países do socialismo real no século XX

Os pesquisadores dos movimentos sociais têm, na maioria dos casos, uma formação teórica de esquerda e, portanto, tendem a se interessar mais pelos casos de confronto com os regimes capitalistas. Isto não impede que nos países de economia planificada, também chamados de comunistas ou ainda de socialismo real, também existam movimentos sociais.

Todo o carinho e admiração com que a esquerda olha os movimentos sociais nos países capitalistas não tem continuação quando ela chega ao poder. Os países comunistas sempre se caracterizaram, e ainda se caracterizam, por se constituírem em estados policiais que exercem um férreo controle político da população. Mesmo assim, há exemplos de movimentos sociais importantes.

As pesquisas dos movimentos sociais, que ocorrem nos países do socialismo real, apresentam um desafio epistemológico adicional. Como já foi colocado, a pesquisa clássica em sociologia parte das teorias de Durkheim, Marx ou Weber. Pois bem, os dirigentes dos países do socialismo real, quadros dos partidos comunistas nacionais, argumentam que apoiam suas ações políticas e econômicas na interpretação do modelo marxista. Tendo em conta este fato, um movimento social que se contrapõe a um regime inspirado no marxismo pode ser estudado a partir das categorias de análise deste mesmo pensador? Tentando ter um mínimo de coerência, podemos pensar em duas alternativas:

1.- Um movimento social que se contrapõe a um regime marxista, quando estudado da perspectiva marxista, deve ser por definição reacionário e contrarrevolucionário.

2.- O governo que se auto intitula marxista pode não ser verdadeiramente marxista. Neste caso o referencial marxista pode ser usado com liberdade, embora possa ocorrer alguma confusão terminológica na análise.

De qualquer forma, convém ficar atento ao estudar movimentos sociais que atuam em regimes que se autodenominam marxistas, em função desta superposição entre a escola de pensamento adotada pelo pesquisador e a sua coincidência com relação à referência ideológica das práticas, ou pelo menos do discurso, dos agentes das ações sociais que compõem o objeto de pesquisa.

Vamos a alguns exemplos. Em Berlin, na Alemanha Oriental, em 1951, um forte movimento popular que conjugava a imigração para a região da cidade controlada pelos Aliados (EUA, Inglaterra e França) com a simpatia pela ideologia capitalista, levou à construção do famoso Muro de Berlim, uma construção de 66,5 quilômetros de paredes e grades, com mais de trezentas torres de vigilância. Sua derrubada, por um movimento popular, em novembro de 1989, constitui o mais forte símbolo do fim do comunismo soviético.

Em 1968, na antiga Tchecoslováquia, um movimento popular denominado Primavera de Praga, a favor de reformas políticas, como maior liberdade individual e autonomia com relação à URSS, leva a que o governo busque avançar nesta direção, num processo que só vai ser revertido pela ocupação militar do país pelas tropas do Pacto de Varsóvia (na prática, tropas da Rússia).

Outros movimentos parecidos vão surgir no Leste europeu. Talvez o mais interessante seja o movimento denominado Solidariedade na Polônia. Surgido de uma federação sindical original dos estaleiros Lenin, na cidade de Gdansk, ele vai se expandir até se transformar num forte movimento social reivindicando maior liberdade, direitos para os trabalhadores e mudanças políticas. A trajetória do Solidariedade é típica dos movimentos socais, começa como expressão de anseios populares, aumenta sua base política, transforma-se em partido político e seu líder original, Lech Walessa, se elege presidente da república em 1990.

Antes disso, em 1980, em Cuba ocorre o chamado Grande Êxodo de Mariel. Depois de um incidente com um funcionário, a embaixada do Peru se viu invadida por dez mil pessoas querendo deixar a ilha. Frente a esta situação o governo cubano libera o porto de Mariel para as pessoas que quisessem imigrar pudessem deixar o país. O processo é muito confuso e o governo de Cuba é acusado, até hoje, de misturar cidadãos comuns com presidiários e doentes mentais. Dos 125.000 cubanos que chegam a Miami calcula-se que, pelo menos, quinze por cento fossem delinquentes comuns.

A própria queda do regime comunista na Rússia, país hegemônico entre as nações comunistas do Leste europeu, é fruto de uma grande mobilização popular em torno de reinvindicações de liberdade e mudanças políticas, em 1989.

Na China, também em 1989, ocorre uma série de manifestações populares em Pequim que levam à ocupação da Praça da Paz Celestial por manifestantes exigindo mudanças no regime e contra a corrupção. Esta manifestação inicia no dia 15 de abril e será violentamente sufocada no dia 4 de junho. Informações desencontradas falam entre quatrocentos e sete mil mortos.

Os movimentos sociais que ocorrem nos países ditos socialistas são, de uma forma geral, movimentos com forte ênfase na dimensão política, embora em alguns casos possam ser disparados pela limitação das liberdades individuais e uma relativa precarização das condições de vida.  A forte censura exercida pelos governos da época tampouco ajuda a uma melhor compreensão da natureza e características destes movimentos sociais.

Movimentos sociais no século XXI

A falência do socialismo real com a queda do Muro de Berlim traz consequências profundas, cujos efeitos só poderão ser medidos com o passar do tempo (Gutierrez, Bettine 2017).

Grande parte dos movimentos sociais, durante quase todo o século XX, vai se caracterizar por refletir a luta de classes típica do modo de produção capitalista, num conflito que coloca de um lado demandas dos trabalhadores e setores populares da sociedade, contra o capital e estado normalmente classificado de burguês.

Como foi apontado, já havia fissuras neste quadro, seja pelos movimentos sociais críticos que ocorrem no interior do socialismo real, também chamados países de economia planificada, seja por movimentos sociais com ênfase em questões culturais.

Há, porém, certo consenso no campo da pesquisa a respeito de que com a queda do Muro a perspectiva dos movimentos sociais parece ampliar-se, surgindo uma série de novos movimentos apoiados em questões culturais e de identificação social.

Aqui parece importante apontar algumas questões. Os novos movimentos sociais motivados por questões de identificação social e cultural vão conviver e dividir espaço com movimentos anteriores marcados por (a) a questão tradicional das lutas de classe e distribuição da riqueza na sociedade capitalista, a exemplo do movimento dos trabalhadores sem terra ou sem teto e (b) movimentos antigos, cujas raízes históricas podem retroceder ao século XIX e que possuem uma forte identidade própria, como é o caso do movimento feminista.

Além disso, esta nova realidade pode ser mais multifacetada do que parece num primeiro momento. Neste sentido, convém refletir sobre a observação de Ferraz (2019) a respeito do cenário: “O avanço da constituição de movimentos sociais em torno dos direitos civis (movimento de mulheres, movimento LGBTI, movimento negro, quilombola e indígena) denunciava a invisibilidade social desses indivíduos e a profunda desigualdade, característica da sociedade brasileira e latino-americana. Vivenciamos no período o surgimento da política de identidade.

Programas públicos e a criação de conselhos e secretarias voltados para determinados grupos populacionais (mulheres, população negra, população LGBTI, indígenas) no interior das políticas de saúde, educação e assistência social foram desenvolvidos por governos de orientação progressista. O que provocou o surgimento de um novo tipo de relação entre movimentos sociais e governos e o revigoramento do clientelismo político, em que as perspectivas de ganhos para os grupos redundam em apoio eleitoral e político para partidos e coalizões governantes.

É sempre difícil trabalhar com a realidade contemporânea imediata. Não se trata apenas de uma mudança de sujeitos sociais (agora mais afastados das lutas da classe trabalhadora e setores populares, privilegiando grupos com identidades específicas), e de uma mudança na agenda de reinvindicações (a substituição de questões mais coletivas como salário, serviços sociais ou custo de vida, por aspectos socioculturais e de direitos). Trata-se de perceber, também, uma nova forma de relacionamento entre os grupos sociais, a política pública e o poder institucionalizado. Se no século XX os movimentos sociais, de uma forma geral, enfrentavam o estado e as forças de segurança na busca da realização de seus objetivos, essa relação parece ter-se transformado profundamente no momento atual. Hoje, estes novos movimentos sociais dialogam com o poder público num processo de troca de apoios políticos, onde as forças de segurança não apenas não os reprimem, mas podem chegar a ter que defendê-las contra possíveis ataques da outros setores da população, que advogam posturas políticas, ou culturais, diferentes.

Não parece se tratar de uma simples mudança de atores e agendas, mas de uma transformação mais ampla, tanto na forma como os movimentos sociais atuam, como nas características da sociedade que os rodeia e, de certa foram, condiciona a natureza da interação.

Outro aspecto que precisaria ser analisado com mais atenção é a existência de um movimento social inspirado na oposição a outro movimento. Os organizadores da marcha com Jesus chegaram a tentar agendar a manifestação no mesmo local e data da parada pelo orgulho gay, o que foi obviamente impedido pelas autoridades.

Observações finais

A pesquisa sobre mudança social é de natureza interdisciplinar e, partindo de teóricos da sociologia, vai acabar dialogando com dimensões sociais da economia, política ou cultural e suas diferentes correntes teóricas e pensadores. Parece importante ter certa clareza ao desenvolver esta relação, tanto no que se refere à opção metodológica primeira em sociologia, como com relação às dimensões específicas com as quais a pesquisa vai interagir, tendo sempre presente que o que vai definir a técnica de pesquisa adotada é a característica do tipo de dado necessário para a conclusão da pesquisa.

A observação da mudança social na sociedade contemporânea parece apontar para uma diminuição da importância de agendas baseadas em questões econômicas e políticas para uma ênfase maior em questões de natureza cultural. Esta realidade, contudo, é bastante recente, por um lado movimentos sociais históricos continuam presentes e, por outro, novas e diferentes tendências podem se manifestar a qualquer momento, inclusive apontando para um maior nível de violência popular.

A sociologia é uma área de pesquisa muito complexa e ainda em desenvolvimento. A aproximação interdisciplinar a um objeto de pesquisa não ajuda a simplificar o cenário, pelo contrário, muitas vezes acabam se somando a relatividade conceitual de várias áreas de pesquisa diferentes. Neste sentido, a pesquisa interdisciplinar deve atender a (a) uma necessidade intrínseca para uma melhor compreensão do objeto estudado, (b) deve delimitar da forma mais clara possível a teoria de referência, os demais campos com que se relaciona, e os métodos e técnicas de pesquisa adotados e (c) desenvolver categorias de análise claras e, dentro de cada especificidade, rígidas, de forma a limitar a tendência (de resto inevitável) que a união entre uma área de pesquisa complexa, a multiplicidade de dados disponíveis no real e a flexibilidade da aplicação das teorias (pela falta do recurso empírico), termine levando o pesquisador a desenvolver uma narrativa desconectada do mundo real. 



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1 É professor titular do departamento de Atividade Física Adaptada da Faculdade de Educação Física da UNICAMP. Tem produzido principalmente nas áreas de gestão, metodologia de pesquisa, qualidade de vida e inclusão de grupos com necessidades especiais. Orcid. https://orcid.org/0000-0002-8628-3990

2 Professor da Universidade de São Paulo, Escola de Artes, Ciências e Humanidades. Professor Livre Docente pela USP desde 2013. Desenvolve pesquisas na área Interdisciplinar, com ênfase em Sociais e Humanidades. https://orcid.org/0000-0003-0632-2943