Cadernos PROMUSPP, São Paulo, v.3 n.1, jan/abr, 2023



Políticas Públicas de financiamento do esporte de alto rendimento: o caso do Bolsa Atleta no tênis de mesa brasileiro



> Gustavo Kenzo Yokota: Mestrando no programa de Ciências da Atividade Física da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP). Graduado em Educação Física e Saúde na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6685-9518.

> Athyla Naoki Donon: Graduando em Educação Física e Saúde na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9025-8563.

> Marco Bettine: Prof. Dr. Universidade de São Paulo, Orientador programa de Pós-graduação em Mudança Social e Participação Política, EACH/USP



Resumo

Este trabalho transversal observacional buscou investigar a influência do Bolsa Atleta na manutenção das carreiras esportivas do tênis de mesa brasileiro. A coleta de dados foi realizada por meio de questionários gerados na plataforma Google Forms. Verificou-se, a partir da percepção dos seus contemplados, que o programa federal representa uma fonte de renda essencial àqueles inseridos nessa modalidade, cuja falta de tradição e visibilidade resulta em escassez de patrocinadores privados e, consequentemente, maior influência do Estado. Ademais, também foi possível concluir que o Bolsa Atleta extrapola o seu propósito inicial ao suprir demandas alheias ao esporte de alto rendimento, possibilitando até mesmo um sentimento de ascensão social. Sendo assim, trata-se de uma política pública que não apenas auxilia as carreiras esportivas do tênis de mesa brasileiro, mas, também, configura-se como principal responsável pela continuidade destas.

Palavras-chave: Política Pública, Esporte, Tênis de Mesa, Bolsa Atleta.

Abstract

This cross-sectional observational work sought to investigate the influence of Bolsa Atleta in the maintenance of sports careers in Brazilian table tennis. Data collection was carried out through monitoring generated on the Google Forms platform. It was verified, based on the perception of its beneficiaries, that the federal program represents an essential source of income for those inserted in this modality, whose lack of tradition and visibility results in retention of private sponsors and, consequently, greater influence of the State. In addition, it was also possible to conclude that the Bolsa Atleta extrapolates its initial purpose by meeting demands unrelated to high-performance sports, even allowing a feeling of social ascension. Therefore, it is a public policy that not only helps the sports careers of Brazilian table tennis, but is also the main responsible for their continuity.

Keywords: Public Policy, Sport, Table tennis, Athlete Scholarship.

Resumen

Este trabajo de observación transversal buscó investigar la influencia de Bolsa Atleta en el mantenimiento de carreras deportivas en el tenis de mesa brasileño. La recolección de datos se realizó a través de cuestionarios generados en la plataforma Google Forms. Se verificó, a partir de la percepción de sus beneficiarios, que el programa federal representa una fuente de ingresos fundamental para quienes se insertan en esta modalidad, cuya falta de tradición y visibilidad se traduce en escasez de patrocinadores privados y, en consecuencia, mayor influencia de los Estado. Además, también fue posible concluir que la Bolsa Atleta extrapola su propósito inicial al atender demandas ajenas al deporte de alto rendimiento, posibilitando incluso un sentimiento de ascensión social. Por lo tanto, es una política pública que no solo ayuda a las carreras deportivas del tenis de mesa brasileño, sino que también es el principal responsable de su continuidad.

Palabras clave: Política Pública, Deporte, Tenis de mesa, Beca Deportista.

Résumé

Ce travail d’observation transversal visait à étudier l’influence de Bolsa Atleta dans le maintien des carrières sportives dans le tennis de table brésilien. La collecte des données a été effectuée au moyen de questionnaires générés sur la plateforme Google Forms. Il a été vérifié, sur la base de la perception de ses bénéficiaires, que le programme fédéral représente une source essentielle de revenus pour ceux insérés dans cette modalité, dont le manque de tradition et de visibilité se traduit par une pénurie de sponsors privés et, par conséquent, une plus grande influence du État. De plus, il a également été possible de conclure que la Bolsa Atleta extrapole sa vocation initiale en répondant à des exigences sans rapport avec le sport de haut niveau, permettant même un sentiment d’ascension sociale. C’est donc une politique publique qui non seulement aide les carrières sportives du tennis de table brésilien, mais est également le principal responsable de leur continuité.

Mots-clés: Politique Publique, Sport, Tennis de table, Bourse d’athlète.


Introdução

Como todos os demais fenômenos socioculturais, o esporte passou por inúmeras transformações ao longo da história. A sua versão moderna, cuja criação se deu nas escolas públicas da Inglaterra, ainda no século XVIII e início do século XIX, baseou-se num conjunto de práticas semi estruturadas em torno do fair play e do cavalheirismo, isto é, normas de conduta que vislumbravam a igualdade entre os participantes (Bourdieu, 1983). Já a sua versão contemporânea, embora tenha herdado elementos básicos da anterior, tomou rumos diferentes e mais abrangentes, pois incorporou uma lógica mercantilizada, capaz de exercer grandes influências no modo de se pensar as sociedades dos séculos XX e XXI.

O esporte contemporâneo, por assim dizer, viu seus rumos mudarem significativamente após a Segunda Guerra Mundial, ao passo que as características que se mantém até os dias atuais foram impulsionadas com a Guerra Fria (Marques; Gutierrez; Almeida, 2008a). A partir de então, depois de ter tido papel político e simbólico na afirmação dos interesses nacionais de diferentes Estados, adotou de vez a lógica globalizada do mercado. Trata-se, portanto, de uma instituição que comercializa, dissemina e divulga práticas heterogêneas por meio de transações e investimentos que envolvem grandes quantias de dinheiro (Marques; Gutierrez; Almeida, 2008a).

Desse modo, transcendendo os espaços da prática, o esporte contemporâneo mostrou-se extremamente rentável, visto que, espetacularizado, é vinculado aos meios de comunicação e produz mercadorias de lazer cheias de valores simbólicos. Cabe destacar o protagonismo de um personagem central para a sua estrutura: o atleta profissional, cuja dedicação se faz necessária na constante busca de melhores performances (Marques; Gutierrez; Almeida, 2008b).

Entende-se como atleta profissional, pessoas inseridas no esporte de alto rendimento com participação em competições oficiais. Partindo do pressuposto que o esporte de alto rendimento é estruturado, orientado a uma tarefa e com demanda de comprometimento e esforço físico (Dimande, 2010), exige-se um estilo de vida que impõe constantes desafios ao corpo humano. A construção de uma trajetória no esporte, resultante do trabalho exercido e dos desejos pessoais, juntamente com as experiências passadas e influências atuais (Arthur; Hall; Lawrence, 1989), permite chamá-la de carreira esportiva. Embora esta, em alguns casos, não seja vista como uma profissão comum, existem semelhanças que provam o contrário, tais como a necessidade de reconhecimento, retorno financeiro, necessidade de profissionalização, desenvolvimento de disciplina e empenho linear (Campos; Capelle; Maciel, 2017).

Aliado à dedicação e esforço físico depositados na rotina de treinamentos e competições, há também o investimento financeiro, necessário aos atletas profissionais para alavancar suas carreiras esportivas. Afinal, com o esporte contemporâneo se tornando especializado, os atletas profissionais tiveram demandas cada vez mais sofisticadas: materiais de prática, recorrentes viagens ao exterior, acompanhamento interdisciplinar, entre outros exemplos.

À medida que passou por um processo de apropriação social e cultural, vinculando-se a benefícios e potencialidades capazes de resolver problemas sociais, o esporte contemporâneo também virou fio condutor de importantes políticas públicas (Camargo, 2020). Por conseguinte, com a passagem do século XX para o século XXI, o Estado mostrou-se mais preocupado com o direcionamento de recursos às pessoas inseridas no alto rendimento, o que, em outras palavras, significou um maior investimento para auxiliar os atletas profissionais.

No Brasil, alguns esportes tradicionais oferecem alta remuneração aos atletas profissionais de maior relevância, os quais possuem espaço na mídia e conseguem contratos com patrocinadores privados. Por outro lado, existem modalidades que convivem com a escassez de recursos até mesmo para aqueles que nos representam em Jogos Olímpicos e Jogos Pan-Americanos. Este é o caso do tênis de mesa, regulamentado a nível nacional por uma entidade própria desde 1979 (Marinovic, Iizuka & Nagaoka, 2006). Acreditamos que os atletas profissionais dessa modalidade, deparando-se com baixas remunerações, anonimato e falta de apoio privado, têm no Bolsa Atleta um importante alicerce para as suas carreiras esportivas. Trata-se de um programa do governo federal de abrangência significativa, o qual destina-se, pelo menos teoricamente, a garantir condições mínimas para que se dediquem com exclusividade e tranquilidade, ao treinamento e competições locais, sul-americanas, pan-americanas, mundiais, olímpicas e paralímpicas (Brasil, 2021).

O objetivo deste estudo é mapear o perfil socioeconômico do tênis de mesa brasileiro no Bolsa Atleta, bem como, a partir das percepções dos beneficiários, compreender qual o papel exercido pelo programa nas suas trajetórias esportiva e pessoal. Também avaliamos a aceitação do Bolsa Atleta frente aos beneficiários e sua relevância para a manutenção das carreiras esportivas no tênis de mesa brasileiro. Questiona-se, qual o perfil desses atletas? Em que medida a política pública está atendendo ou deixando de atender às suas necessidades? Perguntas como essas esperam ser respondidas ao longo deste trabalho.

Ressaltamos que cada modalidade possui um espaço de jogo com práticas sociais inteiramente particulares, definidas durante o curso de uma história ímpar (Bourdieu, 1983). Portanto, sem investigações semelhantes na literatura, o tênis de mesa brasileiro de alto rendimento carece de uma análise que considere as condições específicas do seu universo. Para construir os argumentos deste artigo, separamo-lo em três itens: (1) contextualização do Bolsa Atleta; (2) metodologia da pesquisa; (3) resultados/discussões acerca do programa e suas relações com as carreiras esportivas do tênis de mesa brasileiro.



1. Algumas considerações sobre o programa Bolsa Atleta

No século XX, durante décadas, a maioria dos atletas profissionais tinha poucos subsídios para a manutenção de suas carreiras esportivas no Brasil. Tal situação apresentou melhoras significativas com a entrada do século XXI, pois, sob grande influência dos ciclos de megaeventos esportivos que o país sediou, o Governo Federal mostrou-se disposto a amparar com mais ênfase o esporte de alto rendimento. Entre outras motivações para isso, também cabe destacar os resultados negativos da delegação nacional no quadro de medalhas dos Jogos Olímpicos de 2000, o que acendeu o debate em torno de maior diversificação das fontes de financiamento dos atletas brasileiros (Teixeira, Matias, Carneiro & Mascarenhas, 2017). De lá para cá, um primeiro passo foi a lei Agnelo/Piva, cujas discussões já existiam desde os anos 1990. Em seguida, a criação da Rede Nacional de Esportes contribuiu nesse sentido, até que, finalmente, visando alavancar ainda mais o nível dos atletas brasileiros em competições nacionais e internacionais, foi sancionada em 2004 a Lei Nº 10.891, que criou o Bolsa Atleta, objeto de estudo desta pesquisa. Considerado um dos maiores programas de patrocínio individual de carreiras esportivas do mundo (Brasil, 2019), tal política pública destina-se a patrocinar atletas de alto rendimento e garantir que estes se dediquem com exclusividade às suas respectivas modalidades.

Depois de passar por inúmeros ajustes, dentre eles a Lei 12.395/11 que permite ao atleta adquirir outros patrocínios paralelos, o programa se estabeleceu com seis categorias oferecidas atualmente pelo Ministério do Esporte: Atleta de Base, Estudantil, Nacional, Internacional, Olímpico/Paralímpico e Pódio. A partir da assinatura do termo de adesão, os contemplados recebem o equivalente a 12 parcelas do valor definido por categoria, sendo estes: R$ 370 (Atleta de Base); R$ 370 (Estudantil); R$ 925 (Nacional); R$ 1.850 (Internacional); R$ 3.100 (Olímpico/Paralímpico) e R$ 5 mil a R$ 15 mil (Pódio) (Brasil, 2021).

De acordo com dados concedidos pela Confederação Brasileira de Tênis de Mesa (CBTM), 119 atletas olímpicos (70 masculinos e 49 femininos) da modalidade de raquetes foram pleiteados em 2017 nas categorias Base (3 atletas), Nacional (91 atletas), Internacional (18), Olímpica (5 atletas) e Pódio (1 atleta). Esta pesquisa optou por avaliar parte dos atletas em questão, ressaltando que os resultados considerados para o benefício são de 2017, mas as inscrições para o pleito aconteceram em 2018, e a contemplação do programa somente em 2019. Isso significa que, desde o resultado qualificatório para o pleito até o recebimento da primeira parcela do Bolsa Atleta, os beneficiários esperaram aproximadamente um ano.

No caso do tênis de mesa, os critérios relacionados à categoria de pleito e colocação em competições nacionais e internacionais de 2017, foram:

Bolsa Nacional: Infantil, Juvenil e Absoluto A:

Bolsa Internacional:

Bolsa Olímpica:

Vale dizer que, ao longo das últimas décadas, o tênis de mesa brasileiro passou por transformações significativas e avançou consideravelmente no cenário competitivo, conquistando posições inéditas no ranking mundial (CBTM, 2022). Tal evolução, experienciada sobretudo no século XXI, provavelmente está relacionada ao aumento de recursos em torno das Leis Agnelo Piva e Bolsa Atleta, que propiciaram um maior investimento das Confederações, e um maior número de atletas patrocinados pelo Governo Federal. Como já foi mencionado, o Bolsa Atleta abarca não apenas os mesatenistas profissionais de idades adultas, mas também os mesatenistas infantis (sub15) e juvenis (sub18). Sendo assim, trata-se de uma política pública que, por méritos técnicos, atende à parcela significativa das carreiras esportivas no tênis de mesa brasileiro, independentemente da idade ou do contexto competitivo (Base, Escolar, Nacional, Internacional, Olímpico e Pódio).



2. Metodologia

Com o intuito de chegar aos objetivos que movem esta pesquisa, a metodologia utilizada seguiu o modelo transversal observacional. Logo, aos mesatenistas contemplados no ano de 2019 com o Bolsa Atleta, foram aplicados questionários de caráter quantitativo-qualitativo, tendo sido estabelecido um termo de consentimento para garantir a segurança e privacidade de todos, cujas respostas obtidas permaneceram anônimas durante a pesquisa.

O auxílio da Confederação Brasileira de Tênis de Mesa (CBTM) foi de suma importância, pois, a partir de contatos estabelecidos via e-mail, tivemos acesso a informações sobre a quantidade de atletas contemplados pelo programa, categorias e critérios de pleito.

O questionário aplicado foi composto por 15 perguntas, sendo estas voltadas à avaliação e percepção individuais dos mesatenistas quanto ao Bolsa Atleta e sua influência na manutenção das carreiras esportivas do tênis de mesa. Além disso, informações gerais também foram coletadas, tais como grau de escolaridade, estado onde se pratica o esporte, idade, renda média familiar, entre outras. Com isso, esperava-se mapear o perfil dos mesatenistas contemplados pelo programa, a fim de encontrar correlações entre fatores regionais e socioeconômicos que explicassem as suas avaliações.

Utilizou-se um questionário com perguntas fechadas de múltipla escolha da plataforma Google Forms. Para detectar o preenchimento dos questionários incompatíveis à amostra, vinculamos as respostas obtidas a uma planilha do Excel, o que separou atletas paralímpicos e olímpicos, sendo este segundo grupo o objeto de estudo da pesquisa. Dos 119 atletas olímpicos que foram contemplados pelo programa Bolsa Atleta em 2019 (referentes aos critérios técnicos de 2017), 75 retornaram o nosso contato via redes sociais (Facebook, Instagram e WhatsApp) ou e-mail, o que representa 63% do total e, portanto, parte considerável dos principais mesatenistas brasileiros.



3. Resultados e discussões

Para facilitar a discussão, os resultados a seguir foram compilados em quatro diferentes tabelas: 1) características socioeconômicas; 2) avaliação do programa; 3) influência do programa na trajetória esportiva; 4) influência do programa na trajetória pessoal. Vale ressaltar que as tabelas refletem a percepção individual dos atletas contemplados.

Tabela 1 - Características socioeconômicas

De acordo com os dados da Tabela 1, tem-se que, dos 75 participantes desta pesquisa, 62,7% foram homens e 37,3% mulheres, valor que se aproxima do total de 119 contemplados pelo programa em 2019: 58,8% e 41,2%, respectivamente. Portanto, cabe pontuar a prevalência do gênero masculino, dado que não surpreende à primeira vista, afinal, segundo a Confederação Brasileira de Tênis de Mesa, representa 80,7% do total de filiados à entidade, enquanto o gênero feminino apenas 19,3%. Sendo assim, o tênis de mesa é um esporte no qual os homens estão em maior número e consequentemente somam mais inscritos participando de competições do que as mulheres.

Ao avaliar os indicadores de idade e sexo em todas as modalidades do Bolsa Atleta entre 2011 a 2016, Camargo, Oliveira, Santos e Mezzadri (2018) apontam que, de fato, homens representam a maioria dos atletas beneficiários, confirmando a premissa de que o envolvimento masculino no esporte ainda é maior que o feminino. Trata-se de um cenário comum no campo esportivo, visto que, desde os primórdios da sua versão moderna, o esporte consolidou-se uma instituição de estrutura, valores e regras que normatizam performances de masculinidades e feminilidades (Capitanio, 2010). Em outras palavras, ideias ultrapassadas que remetem ao determinismo biológico continuam legitimando e invalidando modalidades entre os gêneros, de modo que até os dias atuais preceitos desiguais influenciam o número de praticantes, os salários oferecidos, a quantidade de patrocinadores, a premiação de competições, as oportunidades de intercâmbios internacionais, o tratamento de entidades regulamentadoras, bem como as experiências individuais de cada atleta no tênis de mesa (Yokota; Donon; Maeda & Almeida, 2021). De todo modo, Camargo et al. (2018) também constatou que o valor de financiamento através do Bolsa Atleta é em média um pouco maior em atletas do gênero feminino, parâmetro que, no que se refere especificamente ao tênis de mesa, não foi avaliado neste trabalho e carece de novas investigações.

Mas a quantidade de vagas para o pleito do Bolsa Atleta Nacional, por exemplo, não é a mesma para mesatenistas homens e mulheres? Sim, porém o que explica a diferença de gênero entre os beneficiários? Acreditamos que uma das razões disso possa ser justamente a presença majoritária de homens na modalidade, visto que, por estarem em maior quantidade nas competições disputadas, sobretudo nas categorias de base, preenchem todas as vagas disponibilizadas pelo programa, enquanto as mulheres nem sempre conseguem o mesmo. Nas disputas masculinas de equipes do Campeonato Brasileiro, por exemplo, é comum que cada clube semifinalista tenha quatro integrantes, enquanto que nas disputas femininas as chances de serem de duas a três integrantes são maiores4.

Em outras modalidades, atletas das categorias de base tendem a ser os menores beneficiários do programa, correspondendo a menos de 10% do total (Camargo, 2020). Entretanto, ao analisarmos os dados referentes à idade dos atletas contemplados no tênis de mesa, fica evidente o papel do programa nas categorias de base e de transição para a categoria adulta, visto que jovens de 15 a 18 anos são os mais numerosos (36%), seguidos de jovens de 18 a 21 anos (33,3%). Em 2018, de acordo com o Relatório Anual da Confederação Brasileira de Tênis de Mesa, 44,2% dos filiados à entidade encontravam-se nas categorias Super Pré-Mirim (sub-9), Pré-Mirim (sub-11), Mirim (sub-13), Infantil (sub-15), Juvenil (sub-18) e Juventude (sub-21). Um tema interessante para refletirmos sobre esse cenário consiste nas diferentes fases de uma carreira esportiva. Excluindo algumas modalidades como as ginásticas, a natação e os saltos ornamentais, em que o pico da performance esportiva pode acontecer a partir dos 14 anos (médias de pico entre 19 e 22 anos), as demais modalidades possuem médias de pico de performance entre 23 e 32 anos (Longo, Sifreddi, Cardey & Aquilino, 2016).

Como não encontramos dados concretos sobre o caso específico do tênis de mesa, considerando a idade média das demais modalidades, é provável que 69,3% dos atletas que compõem a amostra deste trabalho estejam em estágios intermediários da carreira esportiva, também conhecidos como anos de especialização, ou em preparação para alcançarem o pico de performance, também conhecidos como estágios finais e de perfeição. Os estágios intermediários ou anos de especialização geralmente abrangem as categorias de base, em que a prática deliberada passa a substituir gradativamente o jogo deliberado, aumentando a participação da família em termos de apoio concreto-financeiro (Galatti, Collet, Folle, Coté & Nascimento, 2017). Já os momentos de transição para os estágios finais ou de perfeição, geralmente alcançados na idade adulta, denotam aperfeiçoamento, o alcance do mais alto nível de competência possível e a intensidade extrema de compromisso para alcançar a excelência, de tal modo que a quantidade elevada de prática deliberada resulta em diminuição da importância das demais atividades da vida diária, em prol da dedicação esportiva (Galatti et al. 2017). Sendo assim, o perfil preponderante do Bolsa Atleta no tênis de mesa brasileiro parece englobar jovens atletas que ainda não atingiram o pico de performance.

Cabe destacar que, por lei, a idade mínima para alguém ser contemplado pelo programa Bolsa Atleta é de 14 anos, situação que pode desvincular o auxílio durante o período de iniciação esportiva e desperdiçar possíveis talentos (Bueno, 2008). Portanto, os atletas classificados como pré-mirim (sub-11) ou mirim (sub-13), fases iniciais da carreira esportiva de um mesatenista, dependerão da condição financeira familiar ou de patrocínios privados para viajarem à campeonatos do calendário oficial, tais como o Sul-Americano, disputado regularmente pelas seleções brasileiras dessas categorias.5 Vale salientar que há diversas discussões a respeito da especialização precoce, pois crianças e adolescentes dividem opiniões sobre se, realmente, podem ser considerados um grupo de alto rendimento.

No que se refere à distribuição espacial dos bolsistas, as regiões Sudeste e Sul somam 88% dos atletas participantes deste trabalho. De acordo com o financiamento de políticas públicas pela Função Desporto e Lazer (FDL), pode-se dizer que os estados brasileiros com maior desenvolvimento econômico são também os que possuem maior investimento dos governos locais (Carneiro & Castellani, 2021), o que explicaria as vantagens da prática competitiva do tênis de mesa nessas regiões. Sobre os municípios, segundo consta nos dados oficiais do Tesouro Nacional de 2020, as regiões Sudeste e Sul também são as que mais tiveram investimentos locais, enquanto que nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste os valores foram menores (Carneiro & Castellani, 2021). Cabe destacar a importância do contexto para a formação esportiva, bem como para um bom desempenho dos atletas de alto rendimento, posto que, com a adequação de locais e recursos, tem-se melhores oportunidades e condições determinantes para a qualidade e a quantidade da prática esportiva, favorecendo o desenvolvimento humano, bem como a possibilidade de desenvolvimento de futuros praticantes e atletas profissionais (Galatti et al., 2017).

Por trás da predominância das regiões Sudeste e Sul, também vale destacar a trajetória histórica do tênis de mesa, o qual chegou a São Paulo durante o início do século XX, importado da Inglaterra. Este estado, que já era a maior potência esportiva da América Latina ao final dos anos 1910 (Sevcenko, 1992), seria também pioneiro na organização das primeiras entidades regulamentadoras da prática de raquetes (CBTM, 2021). Com o passar dos anos, a modalidade repercutiu em São Paulo e se espraiou a territórios vizinhos, como Rio de Janeiro e Santa Catarina. Não à toa, os três estados são, segundo levantamento do Atlas do Esporte, aqueles com maior número de atletas, treinadores e clubes no Brasil (Vinhas; Azevedo, 2006). Conforme discutido no parágrafo anterior, tais fatores se traduzem em condições mais propícias para o desenvolvimento da carreira esportiva, o que impulsiona a imigração de atletas das regiões menos favorecidas para as de maior tradição no tênis de mesa. Um exemplo notável disso é o de Lígia Silva, mesatenista que conheceu a prática de raquetes em Manaus (AM), mas transferiu-se ainda adolescente para Santos (SP), cidade na qual ela treinou durante o vitorioso período em que disputou três Jogos Olímpicos6.

Fatores de ordem cultural também podem estar por trás do grande número de beneficiários da região Sudeste (56%). Ocorre que, desde os anos 1950, o tênis de mesa passou a ser cultivado em larga escala pela colônia japonesa estabelecida em São Paulo (CBTM, 2019). Já nas décadas de 1970 e 1980, o estado passou a revelar os principais jogadores do país, em sua maioria descendentes dessa nacionalidade (Yokota, 2021). De lá para cá, o tênis de mesa foi incorporado pela identidade nipo-brasileira: enquanto a modalidade é presença garantida em clubes recreativos e esportivos frequentados por nikkeis,7 estes são numerosos e com certa frequência ocupam as primeiras colocações nas competições estaduais. Para se ter ideia da sua influência na modalidade, um exemplo é o Campeonato Brasileiro Intercolonial, organizado pela colônia japonesa e considerado o maior evento de tênis de mesa da América Latina (CBTM, 2019). A título de curiosidade, no judô, outra modalidade em que japoneses e seus descendentes tiveram papel primordial para a popularização e desenvolvimento da prática esportiva, o quadro é parecido. De acordo com Dias et. al. (2016), entre os anos de 2011 a 2013, o maior número de judocas contemplados com o Bolsa Atleta estava distribuído pela região Sudeste (51,46%), seguida pela região Sul (22,38%).

Já no quesito da escolaridade, 49,3% ingressaram no ensino superior, o que está de acordo com a faixa etária dos atletas contemplados, conforme vimos no terceiro parágrafo desta discussão. Além disso, 12% da mesma parcela seguiu com a pós-graduação depois de concluir a faculdade. Os dados em questão levam ao entendimento de que a maioria dos atletas de tênis de mesa com 18 anos ou mais optam por duplas jornadas, isto é, conciliam a carreira esportiva com os estudos. No que se refere a esses achados, sabe-se que o atleta que ingressa no ensino superior se depara com um novo mundo de oportunidades educacionais, o qual envolve projetos de extensão e pesquisa, exigindo maior investimento e disposição em sua formação para o mercado de trabalho, sendo esta mantida em paralelo aos compromissos esportivos (Wylleman Alferman; Lavalle, 2004). Conforme discutiremos adiante, é provável que os ganhos da carreira esportiva, quando analisados isoladamente, não sejam suficientes para o sustento dos atletas de tênis de mesa no alto rendimento, razão pela qual uma parcela considerável desse grupo dá continuidade aos estudos, buscando novas possibilidades profissionais. Entretanto, sem uma dedicação exclusiva às carreiras esportivas o desempenho é prejudicado, afinal, conciliar os estudos com uma rotina de treinamentos e competições é tarefa desafiadora e por vezes exaustiva, considerando que atletas de alto rendimento podem destinar entre 20 e 30 horas semanais às suas modalidades (Capranica et al., 2015). Cabe reforçar que há diferenças no nível de desenvolvimento esportivo entre aqueles que cursam ou já cursaram o ensino superior (49,3%) quando comparados com aqueles que estudam ou já estudaram até o ensino médio (50,7%): por conta da idade esperada, os primeiros costumam estar próximos do seu auge, enquanto os segundos provavelmente estão em estágios iniciais da carreira de atleta (Wylleman; Reints; De Knop, 2013).

Por fim, os últimos dados da Tabela 1 revelam que 90,7% dos contemplados pelo Bolsa Atleta no ano de 2019 possuíam uma renda domiciliar mensal superior a R$2000,00. Os números foram distribuídos de maneira equilibrada, com destaque para aqueles com renda domiciliar mensal de R$2000,00 até R$4000,00 (29,3%), e aqueles com renda domiciliar mensal superior a R$8000,00 (24%). Diante desses achados sobre os atletas brasileiros de tênis de mesa, os quais predominantemente pertencem a dois perfis socioeconômicos bem distintos, não é verdade, conforme imaginávamos, que o alto rendimento na modalidade pode ser considerado elitizado. Segundo um levantamento do IBGE, em 2018 o rendimento total médio das famílias brasileiras era de R$5426,70 mensais, enquanto 23,9% delas viviam com uma média de apenas R$1245,30. Sendo assim, a maioria dos mesatenistas contemplados pelo Bolsa Atleta (57,3%) se enquadra nessa margem — sem ultrapassar o rendimento total médio das famílias brasileiras —, ainda que este parâmetro desconsidere as desigualdades regionais e sociais do país. A título de comparação, ao analisar tenistas infanto-juvenis competitivos, Andrade et al. (2018) constatou que 84,6% destes pertencia à classe A, ou seja, a parcela mais rica do país, com rendas mensais superiores a 20 salários mínimos. É muito provável que tal homogeneidade se estenda à categoria adulta, portanto trata-se, este sim, de um exemplo de modalidade elitizada.

Tabela 2 - Avaliação do programa

Os primeiros dados da Tabela 2 evidenciam a aprovação do programa segundo os próprios atletas, que, majoritariamente, enxergam-no como “bom” ou “excelente” (72,4%), sem nenhuma resposta para a opção “ruim” ou “muito ruim”. As razões disso encontram-se nos dados seguintes, os quais informam que o Bolsa Atleta fornece um suporte essencial na carreira esportiva da maioria dos contemplados (63,2%). Diante disso, conclui-se que os mesatenistas participantes deste trabalho, por unanimidade, avaliam positivamente o programa, reconhecendo também a sua importância durante os desafios da carreira esportiva.

Vale ressaltar que o Bolsa Atleta é considerado um dos maiores incentivos governamentais do mundo para o esporte de alto rendimento (Brasil, 2019). Além de contemplar um número significativo de atletas com diferentes idades, o programa também se mostrou efetivo na evolução dos resultados obtidos pelos brasileiros mundo afora. De acordo com o estudo de Paz, Costa, Lourenço, Stareprava e Rinaldi (2018), que avaliou a influência do programa na trajetória profissional e pessoal de atletas de ginástica rítmica, as contempladas tiveram excelentes desempenhos durante o período de recebimento da bolsa, tais como medalhas em Jogos Pan-americanos, Campeonatos Sul-americanos e Copas do Mundo. Nesse mesmo sentido, no que tange à uma avaliação mais abrangente, o estudo de Teixeira et al. (2017) comparou o número de medalhas conquistadas por bolsistas nos Jogos Olímpicos de Pequim, Londres e Rio de Janeiro: entre um ciclo e outro, houve uma evolução exponencial, cujo ápice se deu em 2016, edição na qual todos os atletas medalhistas eram beneficiários do programa federal. Embora não haja investigações específicas sobre o tênis de mesa, é de se inferir que os excelentes resultados conquistados recentemente pelas seleções brasileiras da modalidade sejam reflexos positivos do programa federal.

Tabela 3 - Influência do programa na trajetória esportiva

A Tabela 3, referente à influência do Bolsa Atleta na trajetória dos contemplados, traz à tona informações interessantes sobre o caso do tênis de mesa no Brasil. Quando perguntados sobre outras fontes de renda oriundas da carreira esportiva, a maioria dos atletas respondeu que conta unicamente com o programa federal (55,3%). Como já era de esperar, patrocínios privados são raridade em modalidades não tradicionais como o tênis de mesa, logo, apenas 17,1% dos atletas participantes deste trabalho contam com tal privilégio.

Uma quantidade significativa dos atletas (39,4%) possui como fonte de renda salários ou auxílios municipais, sendo estes juntamente com o programa federal essenciais às carreiras esportivas do tênis de mesa. Em outras palavras, 82,9% dos atletas possuem somente remunerações de origem pública. O interesse das prefeituras municipais em auxiliar os atletas de tênis de mesa se dá, sobretudo, nas regiões Sudeste e Sul, onde estados como São Paulo e Santa Catarina formam equipes em busca das primeiras colocações nas competições regionais e estaduais de organização multiesportiva, tais como os Jogos Abertos do Interior (SP), e os Jogos Abertos de Santa Catarina (SC).

A Tabela 3 também mostra que a maioria dos atletas (68,4%) depende do programa para a manutenção de suas carreiras esportivas. O alto rendimento no tênis de mesa demanda gastos com materiais de prática importados, inscrições e viagens para competições nacionais ou internacionais, além de treinamentos e rotina (transporte, hospedagem e alimentação). Esses pilares, essenciais para o aprimoramento técnico e o desenvolvimento da carreira esportiva, são supridos, ao menos parcialmente, pelo Bolsa Atleta. O programa cumpre, portanto, um papel muito importante para o tênis de mesa brasileiro, situação que também pode ser encontrada em outros exemplos. Recorrendo novamente ao estudo de Paz (et al., 2018), tem-se que as atletas de ginástica rítmica possuem demandas parecidas supridas pelo programa, tais como o gasto com a aquisição de materiais e equipamentos (em alguns casos importados) para o treinamento e competições, e o auxílio em alimentação e transporte.

Entretanto, não é possível afirmar que o programa seja suficiente para que os beneficiários explorem ao máximo as suas carreiras esportivas, visto que, de acordo com um estudo realizado por Camargo (2020), constatou-se que os valores vigentes do Bolsa Atleta, excetuando-se a parcela inserida na categoria de pleito Pódio, não apenas não são suficientes para arcar com todas as despesas do alto rendimento, como não os viabiliza viver em função de suas respectivas modalidades. Devemos ter em mente que a maioria dos beneficiários do Bolsa Atleta encontra-se na categoria de pleito Nacional, cujo valor de RS 925,00 não garante uma dedicação exclusiva à carreira esportiva.

É provável que uma parcela significativa dos 55,3% dos participantes desta pesquisa que não possuem outro retorno financeiro oriundo da carreira esportiva seja composta pelos jovens beneficiários do programa, os quais contam com o auxílio familiar para o suprimento de suas necessidades básicas. Ainda assim, não podemos descartar a existência daqueles que já se encontram em idade adulta e, provavelmente, recorrem a ocupações alternativas para complementar a fonte de renda e possibilitar a manutenção da vida de atleta. Nestes casos, a prática de esporte de alto rendimento enquanto uma ocupação profissional, com fases específicas de alcance e desejo que devem ser manejadas para atingir a alta performance, pode estar sendo mantida em paralelo às carreiras convencionais e/ou formais, cujas características encontram inúmeras semelhanças (Campos; Capelle; Maciel, 2017),

Corroborando com a hipótese anterior, Camargo (2020) também constatou que o valor da categoria de pleito Nacional é limitado, visto que, desconsiderando as demandas da carreira esportiva, sequer garantiria aos beneficiários condições mínimas para se viver no Brasil. Diante disso, podemos inferir que o programa é sim importante aos participantes desta pesquisa, porém com função apenas complementar para pelo menos 77% deles. Ainda nesse sentido, segundo o estudo de Rodrigues (2016), o qual reuniu as respostas de atletas contemplados em 2015, constatou-se que, independentemente da modalidade, 46,1% deles consideram o programa “insuficiente” ou “muito insuficiente” para custear a carreira esportiva. O mesmo estudo também mostra que 58,1% dos atletas são influenciados totalmente ou parcialmente pelo Bolsa Atleta para darem continuidade às suas carreiras esportivas.

De acordo com os dados desta pesquisa, 84,2% dos atletas teriam sua carreira esportiva afetada caso não fossem contemplados pelo Bolsa Atleta, sendo que 7,9% da mesma parcela abandonaria completamente o tênis de mesa, e 43,4% não conseguiria arcar com todas as despesas necessárias. Há também aqueles que cogitaram abandonar a modalidade caso não fossem contemplados pelo Bolsa Atleta (32,9%), o que somado aos dados anteriores, leva ao seguinte questionamento:

- Se não houvesse o programa federal para apoiar as carreiras esportivas no tênis de mesa, teríamos uma redução no número de atletas ativos nas competições nacionais ou internacionais? É muito provável que sim, sobretudo por parte daqueles que já se encontram na categoria adulta. Como vimos, muitos atletas nessas condições dão ênfase aos estudos em busca de novas oportunidades profissionais, visto que a remuneração oriunda da carreira esportiva deixa a desejar.

Consta no website do Ministério da Cidadania que o Bolsa Atleta “garante condições mínimas” para que os seus contemplados “se dediquem, com exclusividade e tranquilidade, ao treinamento e competições” nacionais ou internacionais. Conforme vimos nos parágrafos anteriores, embora a avaliação dos atletas seja positiva, o programa muitas vezes não é o suficiente para preencher as diversas demandas do alto rendimento. Ainda assim, cumpre um importante papel ao garantir, com função complementar, a continuidade das carreiras esportivas na modalidade.

Tabela 4 - Influência do programa na trajetória pessoal

Levando em consideração que muitos atletas não possuem outra fonte de renda além do programa, imaginávamos que seu uso não se restringia ao universo do tênis de mesa. A Tabela 4 confirma essa hipótese, pois mostra que, para a maioria dos contemplados (60,5%), os valores do Bolsa Atleta são despendidos em áreas que não estão diretamente relacionadas à carreira esportiva, por exemplo, despesas da moradia, despesas familiares, lazer, compras diversas, entre outras. Tal informação indica que o programa, criado exclusivamente para o patrocínio de carreiras esportivas, também cumpre um papel que extrapola a sua função inicial. O estudo realizado por Camargo (2020) está de acordo com isso, pois identificou que o Bolsa Atleta é direcionado para fins que poderiam permitir a melhoria na qualidade de vida dos atletas, mas que, em alguns casos, também são alheios às carreiras esportivas. Nesse sentido, vale acrescentar que o esporte como meio de ganhos socioeconômicos também pode ser abordado do ponto de vista das disfunções ou distorções sociais que esta atividade harmoniza, cabendo considerar um contexto de valores específicos, sejam sociais, políticos, econômicos e culturais (Cárdenas; Freire, 2014). Sendo assim, entendemos que o Bolsa Atleta parece estar suprindo outras carências do Estado, ou seja, além dos gastos com o esporte de alto rendimento, o seu uso seria essencial para a manutenção de necessidades básicas do cotidiano.

Há também a possibilidade de que alguns contemplados pelo programa não tenham uma conduta de dedicação exclusiva ao esporte de alto rendimento, ou tampouco estejam em plena atividade como atleta, o que fere um dos requisitos mínimos para o pleito segundo a legislação vigente. Nesses casos, o uso do Bolsa Atleta para despesas alheias ao tênis de mesa não acontece por necessidade, mas, sim, pela falta de prioridade dada às carreiras esportivas por parte de alguns contemplados.

Por fim, o último dado da Tabela 4 é referente à percepção dos atletas acerca do impacto gerado pelo programa. Tem-se que mais da metade (52,4%) acredita que o Bolsa Atleta possibilitou um maior poder aquisitivo e, consequentemente, algum tipo de ascensão social, descrita pelo questionário como ganho de poder aquisitivo, qualidade de vida, status, entre outros. Ao tratarmos de um assunto dessa magnitude, deve-se considerar as especificidades do Brasil, um país extremamente desigual onde a ascensão social pode se dar, sobretudo, a partir da condição econômica de um indivíduo, mas também a partir de alterações de papéis e status, as quais não necessariamente provocam uma mudança no ordenamento hierárquico de classes (Cárdenas; Freire, 2014). Não foi possível esmiuçar que tipo de impacto socioeconômico de fato foi experienciado pela amostra deste trabalho, mas fato é que, novamente, o Bolsa Atleta parece ter um impacto social significativo para os atletas de tênis de mesas, muitas vezes superior ao de uma política pública destinada exclusivamente à manutenção de carreiras esportivas. Camargo (2020) sustenta esses achados, pois constatou em seu estudo que a maioria dos beneficiários do programa relatou melhora na renda mensal e melhora na qualidade de vida, questões estas que podem estar relacionadas a um sentimento de ascensão social.



Considerações finais

Diante do que foi discutido neste trabalho, é possível concluir que o Bolsa Atleta assume um papel importante nas carreiras esportivas do tênis de mesa brasileiro, podendo inclusive gerar uma relação de dependência, visto que parcela considerável dos beneficiários cogitaria deixar a modalidade caso não fosse contemplada pelo programa. A partir disso, é de se inferir que o Bolsa Atleta não atua apenas como uma ferramenta importante para o desenvolvimento das carreiras esportivas, mas, também, como garantia de sua continuidade. Não fosse o programa, os resultados apresentados sugerem que poderia haver uma diminuição no número de atletas em atividade, isto é, disputando competições oficiais. Concluímos também que, bem avaliado pelos seus beneficiários, o programa é essencial às carreiras esportivas de tênis de mesa, mas na maioria dos casos não é capaz de suprir sozinho todas as demandas do alto rendimento.

Não obstante, este trabalho ressalta a importância de políticas públicas, tal qual o Bolsa Atleta, para as modalidades não tradicionais. Vimos que o programa é a única fonte de renda oriunda do tênis de mesa para parcela significativa dos atletas, ou seja, com a escassez de patrocinadores privados, é o Estado que tem assegurado a manutenção das suas carreiras esportivas. A partir dos questionários aplicados também foi possível mapear socioeconomicamente os beneficiários do Bolsa Atleta, atestando uma clara desigualdade regional a partir da concentração de atletas nas regiões Sudeste e Sul, bem como indicativos de gênero e renda média familiar, por exemplo. A idade média também foi uma questão interessante para refletirmos acerca do perfil dos atletas a que o programa vem atendendo no tênis de mesa brasileiro, sendo estes majoritariamente jovens em estágios intermediários ou de transição para estágios finais da carreira esportiva, dados que antagonizam os achados de pesquisas que se debruçaram sobre outras modalidades.

Com exceção da categoria Pódio, mesmo que não esteja por garantir a dedicação exclusiva no esporte de alto rendimento, o Bolsa Atleta possibilitou à maioria dos participantes desta pesquisa (52,6%) um sentimento de ascensão social, caracterizado pelos questionários aplicados como ganhos de poder aquisitivo, qualidade de vida e status. Ademais, o uso do programa transcende as preocupações voltadas exclusivamente ao tênis de mesa de alto rendimento, visto que, como vimos, supre demandas de diferentes áreas (despesas da moradia, despesas familiares, lazer, compras diversas, entre outros). Embora tais achados possam ser reflexos das carências sociais de um país historicamente desigual como o Brasil, há também a possibilidade de que parte dos contemplados não possua uma conduta de dedicação à carreira esportiva.

Por fim, cabe dizer que este trabalho contou com alguns limites, como por exemplo, a falta de outras investigações semelhantes na literatura consultada. São praticamente inexistentes os autores que tenham se dedicado às especificidades do tênis de mesa, especialmente no que se refere à influência de políticas públicas. Sendo assim, esperamos que este trabalho contribua para o crescimento dessa temática ainda pouco explorada, de modo que também traga à tona novas perspectivas acerca das carreiras esportivas de tênis de mesa.

A despeito da certeza de que sempre será possível aprimorar uma política pública em busca de resultados melhores e mais justos, reconhecemos a legitimidade do programa para o desenvolvimento do esporte brasileiro. Ainda assim, o presente trabalho reforça a necessidade de se pensar novas estratégias, seja por parte da iniciativa pública ou privada, para somar ao Bolsa Atleta e possibilitar melhores condições às carreiras esportivas do tênis de mesa.



4 Tais informações referentes a diferentes edições do Campeonato Brasileiro foram checadas no site oficial da CBTM. Recuperado de https://www.cbtm.org.br/evento/categoria/2.

5 Na última edição do Campeonato Sul-Americano Pré-Mirim (sub-11) e Mirim (sub-13), a seleção brasileira conquistou cinco medalhas de ouro, seis de prata e seis de bronze (CBTM, 2023). Os atletas em questão viajaram para a competição com recursos próprios. Recuperado de https://www.cbtm.org.br/noticia/detalhe/99931/brasil-fecha-o-campeonato-sul-americano-sub-11-e-sub-13-com-mais-quatro-titulos-e-dez-medalhas.

6 Como Lígia, há diversos exemplos de atletas que deixaram as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste para treinar e competir nas regiões Sul e Sudeste, onde mais da metade das campeonatos oficiais de tênis de mesa são realizados. Esta informação foi checada nos calendários de diferentes anos disponíveis no site oficial da CBTM. Recuperado de https://www.cbtm.org.br/evento/categoria?id=2&valor=&ano=2021.



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