Cadernos PROMUSPP, São Paulo, v.3 n.1, jan/abr, 2023


Ensaio
O governo Lula e o Ensino a Distância (EAD)



> Reynaldo Zorzi Neto: Professor do Instituto Federal de Goiás (IFG), campus Anápolis, doutor em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e doutorando em Ciências Sociais pela Universidad Nacional de Jujuy (UNJu), província de Jujuy, Argentina. Membro do grupo de estudos de educação Panecástica. Link ORCID: https //org/0009-0006-8076-2655



Resumo

O objetivo do artigo é analisar as marchas e contramarchas da política pública para a educação superior durante os dois governos Lula (2003 – 2011). Pensando o tratamento dado pelo governo em relação a questão do Ensino a Distância (EAD), vamos observar que o governo Lula possibilitou o enorme aumento da oferta dessa modalidade de ensino, mesmo com o surgimento de inúmeras críticas na comunidade acadêmica que apontaram a baixa qualidade da educação oferecida pelas instituições de ensino superior, sobretudo privadas, aos estudantes de EAD. Da mesma forma, o artigo busca determinar que as políticas de educação superior que foram executadas no Brasil durante a primeira década do século XXI não significaram o abandono do modelo neoliberal. Por contemplarem a diversidade de grupos e interesses representados no interior dos governos e, principalmente, nos ministérios da educação dos dois países, estas políticas não foram capazes de defender e fortalecer mais decididamente a universidade pública.

Palavras-chave: Educação superior, governo Lula, Ensino a distância (EAD), neoliberalismo, políticas públicas

Resumen

El objetivo del artículo es analizar los cambios y contracambios de la política pública de educación superior durante los dos gobiernos Lula (2003 – 2011). Pensando en el tratamiento dado por el gobierno en relación al tema de la Educación a Distancia (EAD), observemos que el gobierno Lula posibilitó el enorme aumento de la oferta de este tipo de enseñanza, aún con el surgimiento de numerosas críticas en el ámbito académico. comunidad que señaló la baja calidad de la educación que ofrecen las instituciones de educación superior, especialmente las privadas, a los estudiantes de educación a distancia. Asimismo, el artículo busca determinar que las políticas de educación superior que se implementaron en Brasil durante la primera década del siglo XXI no significaron el abandono del modelo neoliberal. Al considerar la diversidad de grupos e intereses representados al interior de los gobiernos y, principalmente, en los ministerios de educación de ambos países, estas políticas no lograron defender y fortalecer más decididamente a la universidad pública.

Keywords: Educación superior, gobierno Lula, educación a distancia (EAD), neoliberalismo, políticas públicas

Abstract

The objective of the article is to analyze the changes and counter-changes of public policy for higher education during the two Lula governments (2003 – 2011). Thinking about the treatment given by the government in relation to the issue of Distance Learning (EAD), let’s observe that the Lula government made possible the enormous increase in the supply of this type of teaching, even with the emergence of numerous criticisms in the academic community that pointed out the low quality of the education offered by higher education institutions, especially private ones, to distance learning students. Likewise, the article seeks to determine that the higher education policies that were implemented in Brazil during the first decade of the 21st century did not mean the abandonment of the neoliberal model. By considering the diversity of groups and interests represented within the governments and, mainly, in the ministries of education of both countries, these policies were not able to defend and strengthen the public university more decisively.

Keywords: Higher education, Lula government, Distance learning (EAD), neoliberalism, public policies

Résumé

L’objectif de l’article est d’analyser les changements et contre-changements de politique publique en matière d’enseignement supérieur au cours des deux gouvernements Lula (2003 – 2011). En pensant au traitement réservé par le gouvernement à la question de l’Enseignement à Distance (EAD), observons que le gouvernement Lula a rendu possible l’énorme augmentation de l’offre de ce type d’enseignement, même avec l’émergence de nombreuses critiques dans le monde académique. communauté qui a souligné la faible qualité de l’enseignement offert par les établissements d’enseignement supérieur, notamment privés, aux étudiants à distance. De même, l’article cherche à déterminer que les politiques d’enseignement supérieur mises en œuvre au Brésil au cours de la première décennie du XXIe siècle n’ont pas signifié l’abandon du modèle néolibéral. Compte tenu de la diversité des groupes et des intérêts représentés au sein des gouvernements et, principalement, dans les ministères de l’Éducation des deux pays, ces politiques n’ont pas été en mesure de défendre et de renforcer l’université publique de manière plus décisive.

Mots-clés: Enseignement supérieur, gouvernement Lula, Enseignement à distance (EAD), néolibéralisme, politiques publiques


Introdução

A volta do ex-presidente Lula ao palácio do Planalto em 2023 significa, sem dúvida alguma, uma inflexão positiva nos rumos da sociedade brasileira. Após 4 anos de retrocessos, marcados pela adoção de uma retórica e uma prática agressiva do governo federal em relação as demandas dos movimentos sociais, é esperada uma fase em que as políticas públicas estejam no centro do debate nacional. No que diz respeito a educação superior, o governo Bolsonaro, rejeitado pelas urnas, representou um enorme alívio para os defensores da universidade pública, uma vez o ideário neoliberal do presidente derrotado propunha a retirada do Estado deste setor da educação e o fim da universidade pública. A vitória de Lula, no entanto, não significa pura e simplesmente a afirmação de um projeto progressista, em oposição ao modelo anterior. O novo governo, pelo seu caráter e “frente ampla” e pela sua composição interna heterogênea, contempla em seu interior os mais diferentes projetos e interesses em relação a educação superior, e para entender como se darão os enfrentamentos no interior deste governo faz-se necessário voltar a análise para os dois primeiros governos Lula, onde este confronto de projetos foi ser observado. Para isso, consideraremos especificamente o tema da educação a distância (EAD) no ensino superior e como evoluiu o debate e a implementação da EAD durante o governo Lula na primeira década do século XXI. A hipótese central deste artigo é que a formulação e execução das políticas públicas para a educação superior (e principalmente sobre a educação a distância) durante os dois primeiros governos de Lula não foram exclusivamente progressistas, pelo contrário, elas foram o resultado do jogo de forças político realizado entre atores sociais relevantes e agentes governamentais, na maioria das vezes com visões diferentes sobre os mais variados temas, que se instalou no interior do governo e, principalmente, no Ministério da Educação (MEC). Esta compreensão é compartilhada por uma série de autores, que a exemplo de Berchansky ( 2008) e Souza e Menezes (2014), sustentam que houve em relação aos processos de transformação da universidade no Brasil durante o governo Lula, uma intensa disputa de posições políticas e ideológicas entre os grupos ligados à formulação das políticas de educação superior, não sendo assim possível pensar que as decisões que foram executadas foram totalmente progressistas ou ainda respeitaram aspectos meramente técnicos, neutros e objetivos. Ao contrário disso, é preciso perceber as nuances dos interesses econômicos e políticos que estão por trás dos discursos que justificam as mudanças ou mesmo a continuidade de determinados processos. Esses interesses são mascarados e justificados pela defesa da eficiência e da qualidade da educação, sempre se valendo do discurso tecnicista para referendar seus objetivos.



A educação a distância no Brasil

As primeiras iniciativas no sentido de se constituir processos de aprendizagem à distância no Brasil são anteriores ao fim da primeira metade do século XX. Conforme demonstram os estudos de Torres, Vianney e Roesler (2013), os primeiros passos legais relativos à existência do EAD no país foram dados em 1942, no Ministério da Educação e Saúde, do governo Getúlio Vargas, comandado pelo ministro Gustavo Capanema. Devido às gigantescas limitações do Estado brasileiro em levar escolas físicas para toda a população, aquela que ficou conhecida como Reforma Capanema estabeleceu parâmetros para a aprendizagem, enquanto processo suplementar à educação presencial, a partir de transmissões feitas pelo principal veículo de comunicação da época, o rádio. A partir da década de 1960, a EAD, ainda em caráter suplementar à educação presencial, passou a ser respaldada, também por meios televisivos, além de adotada também, a possibilidade de se realizar a educação por correspondência. Mas foi somente na década de 1980 que se observou a adoção de uma política nacional específica para o setor, que a partir desse momento deixou de ter caráter suplementar. Até aqui essas iniciativas, no entanto, ficaram restritas à educação fundamental e média. No que diz respeito à criação de programas de EAD para a formação em nível superior, encontramos o estabelecimento de marcos jurídicos e legais para o desenvolvimento de políticas apenas durante o governo Fernando Henrique Cardoso, já depois da segunda metade da década de 1990, por meio da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). É, portanto, só após esse marco regulamentar que se tem, a partir de 1996, o estabelecimento, do ensino a distância na formação de cursos de licenciaturas, para atender aos dispositivos legais de formação de professores no Brasil2.

Durante o governo Lula, destacamos dois momentos que delimitam a expansão da EAD no país: o primeiro, foi o Decreto nº 5.622 de 19 de dezembro de 2005 (Brasil, 2005)3, que estabeleceu parâmetros jurídicos para expansão da EAD, assinalando em seu artigo primeiro:

Art. 1º Para os fins deste Decreto, caracteriza-se a Educação a Distância como modalidade educacional na qual a mediação didático-pedagógica nos processos de ensino e aprendizagem ocorre com a utilização de meios e tecnologias de informação e comunicação, com estudantes e professores desenvolvendo atividades educativas em lugares ou tempos diversos.

O segundo momento responsável por oferecer bases legais para expansão da educação à distância no país foi a criação da Universidade Aberta do Brasil (UAB), que contribuiu para a expansão e a interiorização da oferta de cursos e programas de educação superior no Brasil. Dentre os objetivos que nortearam a criação da universidade aberta, estava o de oferecer, preferencialmente, cursos de licenciatura e de formação inicial e continuada para professores, em atividade da rede pública de educação básica, que deveriam ser ofertados em regime de colaboração da União com estados e municípios, por instituições públicas de educação superior, em articulação com pólos de apoio presencial. As justificativas governamentais para implantação da EAD foram detalhadas por Carvalho (2014, p. 217):

(...) a educação a distância foi defendida como alternativa indispensável, justificada no programa de governo em face das dimensões continentais do país e das enormes desigualdades e carências. Além da exigência de um regramento específico e mais detalhado, o sentido da política pública alternou-se à medida que dentre as propostas estava o aumento de vagas desta modalidade em universidades públicas. A legislação pertinente definiu em quais situações a presença do aluno é obrigatória, os níveis e modalidades educacionais que poderiam ser oferecidos pelas IES públicas ou privadas em consórcios, parcerias, celebração de convênios, acordos, contratos.

Numa classificação mais abrangente podemos encontrar, segundo Moran (2009), duas modalidades de educação, aquela chamada de presencial e aquela definida como a distância:

A modalidade presencial é a comumente utilizada nos cursos regulares, onde professores e alunos encontram-se sempre em um mesmo local físico, chamado sala de aula, e esses encontros se dão ao mesmo tempo: é o denominado ensino convencional. Na modalidade à distância, professores e alunos estão separados fisicamente no espaço e/ou no tempo. Esta modalidade de educação é efetivada através do intenso uso de tecnologias de informação e comunicação, podendo ou não apresentar momentos presenciais. (MORAN, 2009)



Tabela 1 – Número de matrículas de graduação em EAD – governo Lula

Tabela 2 – Número de instituições em EAD para cursos de graduação – governo Lula

Tabela 3 – Número de cursos de graduação em EAD – governo Lula

Analisando os dados do censo da educação superior, percebemos que em todos os aspectos indicados (evolução do número de estudantes de graduação, evolução do número de instituições e evolução dos cursos de EAD) existe um enorme crescimento do ensino a distância, durante o governo Lula. Interessante notar também que o maior crescimento do EAD aconteceu em 2005, ano em que o Ministério da Educação estabeleceu as normas para o funcionamento da modalidade de ensino e o número de matrículas estudantis saltou de 59.611, para 114.642. Ao longo dos anos Lula, o ensino a distância consolidou e expandiu-se no contexto da educação superior brasileira, sobretudo na educação privada. (Berchansky, 2008, p. 168) observa que, ao final do segundo mandato do presidente Lula, o EAD apresentou um crescimento na ordem de 18 vezes, o que nos dá um pouco a dimensão das transformações que esse modelo de ensino trouxe para a realidade educacional do Brasil.

Como veremos adiante, o ensino a distância foi alvo de intensas críticas dos setores progressistas. Não dando ouvidos as críticas produzidas por este setor da universidade, o governo Lula criou a Secretaria de Educação à Distância (SEED). Não sem alguma dose de ironia, o primeiro secretário da pasta respondeu aos opositores do programa:

Sei que muitos, inclusive das universidades, ainda não tomaram a iniciativa de pesquisar e avaliar devidamente as vantagens que métodos de educação a distância podem trazer, até mesmo para o próprio ensino presencial. Os que se informaram a respeito aceitaram o desafio. Outro mito que vejo disseminado é que a educação à distância dispensaria o professor. Tal afirmação não resiste à mais rudimentar das análises. Cursos a distância necessitam, sim, de educadores preparados e motivados, uma vez que serão, em geral, mais exigidos, inclusive intelectualmente. Tornar-se-ão produtores de conteúdo. Pelo contrário, cursos de educação a distância ampliam o mercado para profissionais da educação: a tutoria aos alunos é uma parte fundamental do processo, sendo normalmente ocupada por professores em formação. Além disso, são necessários na avaliação e em outras atividades inerentes ao processo. (...) não há espaço para improviso. Dentro dessa realidade, a missão da Secretaria de Educação à Distância – Seed/MEC é coordenar essas iniciativas. Para nós da Seed, os desafios são inúmeros, mas estou convencido de que a educação à distância é o melhor caminho para a realização do sonho de todos nós brasileiros, expresso pelo presidente Lula em seu programa de governo: “Fazer uma escola do tamanho do Brasil”.

Obviamente, a defesa da educação a distância também foi feita pela entidade que representa os interesses privados da educação à distância no Brasil, a Associação Brasileira de Educação a Distância (ABED). Para esses, as novas tecnologias significam uma revolução em relação às possibilidades de acesso à educação, sobretudo se pensamos nos trabalhadores e nos cidadãos mais pobres, dado que o EAD significa em geral um barateamento dos preços das mensalidades. Argumentaram ainda, que o EAD possibilitava a ampliação do acesso à educação, porque o seu alcance é, comparativamente, muito maior que a educação do tipo presencial, podendo chegar às mais longínquas regiões e localidades do país. Diferentemente da educação presencial, que requer altos investimentos em infraestrutura e pessoal qualificado (e que nem sempre estão disponíveis), a educação à distância requer investimentos muitos menores para atingir o objetivo de levar o acesso à educação:

(...) a metodologia da Educação a Distância possui uma relevância social muito importante, pois permite o acesso ao sistema àqueles que vêm sendo excluídos do processo educacional superior público por morarem longe das universidades ou por indisponibilidade de tempo nos horários tradicionais de aula, uma vez que a modalidade de Educação a Distância contribui para a formação de profissionais sem deslocá-los de seus municípios (...) (ABED)

Assim, a ABED saúda a Educação a Distância por seu caráter supostamente democrático. Argumentam que as novas tecnologias de informação e comunicação se impõem como um mecanismo capaz de transpor barreiras e levar o conhecimento a um número maior de pessoas. O fácil acesso, que pode ser feito por um computador, em qualquer parte do país ou do mundo significa, para essa associação, uma revolução na forma de ensinar e de aprender. Apesar dos defensores do EAD apresentarem a ideia de que esse modelo de ensino permite que a educação pode ocorrer “a qualquer hora, em qualquer lugar e no seu próprio ritmo”, Berchansky (2008, p. 169), também chama a atenção para os problemas dessa proposta, apesar de ter um caráter pretensamente “inclusivo”:

(...) considera-se que à primeira vista o EAD apresenta-se enquanto vantajoso, por buscar “incluir” um segmento da população que não tinha acesso ao ensino superior, oferecendo flexibilidade de horários e possibilidade de acesso ao nível superior, cujas instituições concentram-se nas capitais e no eixo sul-sudeste. Contudo, o que não fica evidente neste processo é o aligeiramento profissional e a facilidade da obtenção de diplomas. Compreende-se ainda que no contexto atual da sociedade brasileira, os trabalhadores estão diante do aprofundamento da “questão social”, o que traz rebatimentos importantes para a construção de uma educação qualificada, pois no capitalismo contemporâneo a exploração, o desemprego, a pobreza assumem formas particulares a partir das transformações ocorridas no processo produtivo, com as consequentes transformações no mundo do trabalho. Com isso, identifica-se que esse cenário se apresenta adverso para a educação superior, comprometendo, portanto, a formação de alunos críticos e a ênfase de uma educação pautada na qualidade.

Desde os primeiros momentos que chegou à universidade, o EAD foi foco de intensa resistência acadêmica. Para os professores, o modelo representou a perda de postos de trabalho, com a transferência de disciplinas que eram presenciais para a nova modalidade de ensino. O EAD foi concebido como um substituto incômodo e empobrecedor da relação professor/aluno. Logo no primeiro momento de implantação do sistema, o EAD anunciou tempos difíceis para educação, sobretudo para a privada, onde o sistema chegou com força e foi muito bem recebido pelos donos das instituições de ensino. Muitas instituições se esforçaram em colocar o máximo possível de disciplinas no ensino a distância, promovendo demissões e aproveitando com isso para enxugar o quadro docente. Já para os estudantes, as expectativas não foram melhores e houve muita reclamação. Foi impossível não relacionar o surgimento da EAD nos cursos de graduação ao empobrecimento da qualidade da educação superior que era oferecida e que, muitas vezes, já se apresentava de maneira deficitária na sua modalidade presencial. Assombrados pelos altos valores das mensalidades, outros assinalaram ainda que o surgimento do ensino à distância deveria ser entendido como mais uma estratégia das instituições privadas para aumentar os lucros, com a fácil constatação de que a mudança de inúmeras disciplinas da grade curricular, de presencial para o EAD, significava uma diminuição dos gastos com pessoal e infraestrutura e, por oposição, o aumento dos rendimentos do setor empresarial. Ao mesmo tempo em que se reconhecia, como parte do processo de modernização das relações humanas, a inevitabilidade da criação e expansão do sistema EAD, os críticos não deixaram de apontar as limitações do processo, sobretudo em relação à forma pela qual o modelo foi implantado no país, sem critérios e com baixa fiscalização da qualidade do serviço oferecido. Esses também assinalaram que o EAD serviu aos interesses dos empresários da educação, ao contribuir com a lógica: menor custo/maior lucro. Através dela, um novo público podia ser alcançado com custos menores. (Castro, 2010, pp. 206, 207), chama também a atenção, para o fato de que a expansão da oferta de ensino à distância, apesar de algum apoio popular, também significou a abertura de espaço para investimentos do capital financeiro que, pela sua lógica e interesse, não estão em nada preocupados com a melhoria do sistema educacional:

(...) As IES, mesmo públicas, passam a ser objetos de metas do mercado expandido, já que para o funcionamento dessas instituições de ensino, há muitas vezes, necessidade de convênios e parcerias, bem como de captação de recursos externos. Com isso, é evidente o retraimento da responsabilidade do Estado como um “bem público”, apesar de se vangloriar de inaugurar, em série, instituições de ensino. [...] E não se pode ignorar que a abertura de novas vagas não leva necessariamente de forma mecânica jovens a entrar na universidade.

Além disso, quando lembramos que a educação superior precisa ser pensada, respeitando-se a tríade ensino, pesquisa e extensão, consideramos que a educação a distância é, principalmente da forma como foi pensada, incapaz de cumprir com atividades de pesquisa e extensão, porque essas são essencialmente presenciais. O EAD, nesse sentido, representa uma “banalização” da ideia de universidade e do seu papel social, porque a universidade agrega a diversidade de campos de saberes, e se define a partir do conceito de autonomia acadêmica, didática, administrativa e de gestão ou ainda, pela unidade na diversidade. O ensino a distância, como argumentam (Gouvêa & Oliveira, 2006, p. 13), também se apresenta na sua essência, de forma deficiente, na medida em que é pensado de maneira individualista, não considerando que a produção do conhecimento deve ser feita essencialmente de forma coletiva. Além disso, maioria dos cursos EAD, por terem sido organizados, na maioria dos casos, às pressas, ficaram desprovidos de estrutura básica de apoio, não possuíam, (e não possuem até hoje), em sua grande maioria, bibliotecas em seus pólos, ou mesmo computadores em quantidade ou condições suficientes. É dessa forma que, ao invés de ampliar o acesso, no EAD ficaram abafadas

(...) as contradições desse sistema de ensino, uma vez que não há estímulo à pesquisa (porque não se vislumbra a necessidade de se obter alunos qualificados e críticos); impedem o aluno de poder vivenciar plenamente a trajetória acadêmica com troca de experiências, tirar dúvidas com professores, debater sobre questões atuais, discutir, com a criação de vínculos afetivos com demais colegas, participação em debates e reuniões, acesso a biblioteca qualificada, realizar trabalho em grupo. Somado a isso, observa-se que se inviabiliza a organização política dos estudantes. Assim, o EAD não é uma opção desses estudantes. É resultado, exatamente, da falta de opções. Expressa uma política deliberada de estímulo ao empresariamento da educação superior e de desqualificação da formação profissional. (Berchansky, 2008, p. 168)

A existência dos chamados “professores tutores”, responsáveis por orientar a produção acadêmica dos alunos, também foi bastante criticada. Sobrecarregados por uma quantidade imensa de estudantes, em geral não são capazes de resolver todas as atividades, não contribuindo para a formação dos alunos virtuais. (Otranto, 2006, p. 5), acredita que seria mais adequado utilizar-se da tecnologia de EAD, não para cursos de graduação, mas sim e somente para cursos de pós-graduação. Para ela, o ensino à distância entendido, enquanto complemento da pós-graduação

(...) é positivo, mas como graduação é extremamente negativo. É um tipo de curso para quem tem maturidade, para quem tem acima de tudo disciplina. No curso presencial, muitas vezes o aluno já não corresponde. Imagine um aluno chegando em casa depois de um dia de trabalho, cansado, tendo a opção de sair com os amigos ou namorar, ele não vai preocupar-se em estudar. Se já era difícil manter a motivação dos alunos em aulas presenciais, muito mais difícil será na proposta virtual, se os alunos não se envolverem em processos participativos, afetivos, que inspirem confiança. Em sala de aula, é mais fácil observar os problemas que acontecem e procurar dialogar ou encontrar novas estratégias pedagógicas.

Finalmente, como afirmam os autores Gouvêa & Oliveira (2006), ainda existem enormes dificuldades entre os brasileiros para o acesso pleno e de qualidade a computadores e internet. Se considerarmos o país como um todo, cheio de desigualdades e carências básicas, podemos constatar isso facilmente, mesmo quando consideramos apenas os estudantes jovens que são, supostamente, aqueles com mais acesso à tecnologia.



Conclusões

O terceiro governo Lula, da mesma forma que os dois primeiros, carrega em seu interior uma enorme diversidade de posições políticas, ideologias e interesses. No campo da educação superior, estes grupos disputarão as decisões e as políticas que serão adotadas no Ministério da Educação em relação a educação a distância. Podemos considerar que, apesar do avanço extraordinário do número de instituições e de vagas que houve no durante todo o século XXI, ainda existe, sobretudo em função do baixo acesso da população brasileira ao ensino universitário, muito espaço para crescer. Ainda é muito cedo para dizer se a continuidade dessa expansão se dará observando-se a qualidade da oferta e o respeito a parâmetros básicos ou se ela vai se dar a partir da imposição de um modelo que busque apenas o princípio do “gasto mínimo, lucro máximo”, como querem os setores mercantis da educação. Certamente este tema, pela sua importância e centralidade, enseja novas análises e reflexões.



1 Apesar da LDB ter regulamentado a presença da EAD na educação superior, (Torres, Vianney & Roesler, 2013), destacam o pioneirismo da UFMT: “(...) a pesar de que la publicación de la LDB haya ocurrido en diciembre de 1996, el primer curso de graduación ofrecido por la Educación a Distancia en Brasil data de dos años antes. Fue en 1994 cuando la Universidad Federal de Mato Grosso (UFMT) hace el primer examen de admisión de un curso a Distancia. Se trataba de una licenciatura de formación de profesores para actuar en las series iniciales de la Enseñanza Fundamental. En febrero de 1995 se inician las actividades de aprendizaje para los 352 alumnos clasificados en el examen de admisión (...). Nacía así con estos 352 alumnos, la enseñanza de graduación a distancia en el país”.

2 Cabe destacar que apesar do debate a respeito da EAD no Brasil ser relativamente recente, esta modalidade de ensino pode ser entendida de uma forma mais ampla, para além da existência de computadores ou da internet. A primeira Lei de Diretrizes e Bases da educação brasileira de 1961 (Lei n° 4.024/61), por exemplo, já contemplava uma educação não presencial à distância quando determinava em seu Artigo 25, § 2°, que os cursos “supletivos serão ministrados em classes ou mediante utilização de rádio, televisão, correspondência e outros meios de comunicação que permitam alcançar o maior número de alunos”. (Otranto, 2006, p. 13).



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