Cadernos PROMUSPP, São Paulo, v.3 n.2, v.3 n.2, mai/ago, 2023



Negritude, racismo e outridade na academia



> Maria Carolina Casati Digiampietri: Professora, escritora e doutoranda da EACH-USP, no Promuspp. Membra do GEPHOM, do Lidas e Vidas (UFBA). Financiada pela CAPES, desenvolve pesquisa “A mulata brasiliana: escrevivência, narrativas orais e memórias de brasileiras negras na Itália que se relacionam com italianos”. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6352-8134.


Resumo

A partir de uma cosmopercepção (OyěwùmÍ, 2021) amefricana em relação à academia, o presente artigo tem como objetivo discutir a urgência da decolonização do conhecimento à luz de conceitualizações teóricas desenvolvidas pensadoras negras e não-brancas oriundas de África e do chamado Sul global, tais como Conceição Evaristo, (2007), Glória Anzaldúa (2000), Grada Kilomba (2019), Lélia Gonzalez (2018) e María Lugones (2020). Mais especificamente, a ideia é apresentar apontamentos sobre o tema que, posteriormente, possam vir a se transformar em um trabalho mais robusto, uma análise mais elaborada. Assim, a fim de pensarmos em novas epistemologias e pluralidade da ciência, se vamos responder ao “apelo para a interdisciplinaridade” (Raynaut, 2014), é preciso refletir acerca do que faz com que nossas existências não sejam consideradas objetivas/ imparciais/ válidas o suficiente. Precisamos discutir conceitos que ainda hoje influenciam “ser negra” na academia brasileira.

Palavras-chave: Decolonialidade, escrevivência, epistemologia, escrita, raça, filosofia da ciência

Summary

Based on an Amefrican cosmoperception (OYĚWÙMÍ, 2021) in relation to academia, this article aims to discuss the urgency of decolonizing knowledge in the light of theoretical conceptualizations developed by black and non-white thinkers from Africa and the so-called global South, such as Conceição Evaristo, (2007), Glória Anzaldúa (2000), Grada Kilomba (2019), Lélia Gonzalez (2018) and María Lugones (2020). More specifically, the idea is to present notes on the topic that could later be transformed into a more robust work, a more elaborate analysis. Thus, to think about new epistemologies and plurality of science, if we are going to respond to the “call for interdisciplinarity” (RAYNAUT, 2014), it is necessary to reflect on what makes our existences not considered objective/impartial/valid or enough. We need to discuss concepts that still influence “being black” in Brazilian academia today.

Keywords: Decoloniality, escrevivência, epistemology, race, philosophy of science

Resumen

Basado en una cosmopercepción amefricana (OYĚWÙMÍ, 2021) en relación con la academia, este artículo tiene como objetivo discutir la urgencia de descolonizar el conocimiento a la luz de conceptualizaciones teóricas desarrolladas por pensadores negros y no blancos de África y el llamado Sur global, como como Conceição Evaristo, (2007), Glória Anzaldúa (2000), Grada Kilomba (2019), Lélia Gonzalez (2018) y María Lugones (2020). Más específicamente, la idea es presentar notas sobre el tema que luego podrían transformarse en un trabajo más robusto, un análisis más elaborado. Así, para pensar en nuevas epistemologías y pluralidad de la ciencia, si vamos a responder al “llamado a la interdisciplinariedad” (RAYNAUT, 2014), es necesario reflexionar sobre lo que hace que nuestras existencias no sean consideradas objetivas/imparciales/válidas. o suficiente. Necesitamos discutir conceptos que todavía influyen en el “ser negro” en la academia brasileña hoy.

Palabras clave: Descolonialidad, escrevivência, epistemología, negritud, filosofía de la ciencia

Résumé

Basé sur une cosmoperception amefricana (OYĚWÙMÍ, 2021) en relation avec le monde universitaire, cet article vise à discuter de l’urgence de décoloniser les connaissances à la lumière des conceptualisations théoriques développées par les penseurs noirs et non blancs d’Afrique et du Sud global, comme comme Conceição Evaristo (2007), Glória Anzaldúa (2000), Grada Kilomba (2019), Lélia Gonzalez (2018) et María Lugones (2020). Plus précisément, l’idée est de présenter des notes sur le sujet qui pourraient ensuite être transformées en un ouvrage plus robuste, une analyse plus élaborée. Ainsi, pour penser de nouvelles épistémologies et une pluralité des sciences, si nous voulons répondre à « l’appel à l’interdisciplinarité » (RAYNAUT, 2014), il est nécessaire de réfléchir à ce qui fait que nos existences ne sont pas considérées comme objectives/impartiales/valables. ou assez. Nous devons discuter des concepts qui influencent encore aujourd’hui le fait d’être noir dans le monde universitaire brésilien.

Mots-clés: Décolonialité, escrevivência, épistémologie, écriture, noirceur, philosophie des sciences

“a escrita me salva da complacência que me amedronta. Porque não tenho escolha. Porque devo manter vivo o espírito de minha revolta e a mim mesma também. Porque o mundo que crio na escrita compensa o que o mundo real não me dá. No escrever coloco ordem no mundo, coloco nele uma alça para poder segurá-lo. Escrevo porque a vida não aplaca meus apetites e minha fome. Escrevo para registrar o que os outros apagam quando falo, para reescrever as histórias mal escritas sobre mim, sobre você” (Anzaldúa, 2000. p. 232)

Tentar preencher a página em branco é algo que faço com prazer. E dor. O trecho de Anzaldúa define bem o que sinto: tenho medo de escrever, mas tenho mais medo ainda de não fazê-lo. E sei que, em grande medida, meu medo se dá pela certeza de que muitos irão dizer que meu texto não é válido, vão afirmar que eu não faço ciência, vão me acusar de ser muito passional, pouco objetiva. “Como eu, uma mulher negra, posso produzir conhecimento em uma arena que constrói, de modo sistemático, os discursos de intelectuais negras/os como menos válidos” (Kilomba, 2019, p.54)? Precisarei, indispensavelmente, falar de ancestralidade escrevivência e legado, uma vez que o conhecimento que produzo é a partir de narrativas de mulheres pretas e sou também parte desse grupo.

Assim, invocando a presença de muitas dessas pretas-velhas, e me inspirando na sua forma de escrever (também para a academia) – especialmente, no pretoguês de Lélia Gonzalez – me utilizarei da primeira pessoa para pensar em possibilidades de se discutir a urgência da decolonização do conhecimento à luz de pensadoras também pretas. Se, “os temas, paradigmas e metodologias do academicismo tradicional – a chamada epistemologia – refletem não um espaço heterogêneo para a teorização, mas sim os interesses políticos específicos da sociedade branca”, faz-se imprescindível a legitimação – e a emergência – de novas narrativas (Kilomba, 2019, p.54)1. Na verdade, a ideia é apresentar apontamentos sobre o tema que, posteriormente, possam vir a se transformar em um trabalho mais robusto, uma análise mais elaborada. Assim, a fim de pensarmos em novas epistemologias e pluralidade da ciência, se vamos responder ao “apelo para a interdisciplinaridade” (Raynaut, 2014), é preciso refletir acerca do que faz com que nossas existências não sejam consideradas objetivas/ imparciais/ válidas o suficiente. Precisamos discutir conceitos que ainda hoje influenciam “ser negra”, inclusive no Brasil. Falemos, então, um pouco sobre desumanização. Sim, porque, para produzir conhecimento, é preciso pensar e, para pensar, você tem que “ser humano”, não?

Segundo Lugones (2020), a colonização, funda a categoria humano e inventa a ideia de raça – uma vez que o branco-europeu-cis-hétero se coloca como padrão de humanidade. Dessa forma, somente ele é gente/pessoa, somente suas crenças são “religião”, apenas seu modo de conhecer e entender o mundo é “ciência”, somente a sua visão corresponde a “gênero”, apenas seus afetos e desejos são “normais” e sua hierarquia e divisão social é a “válida”. No que diz respeito aos negros, a situação é ainda mais cruel.

Em Dois naturalistas em busca de um deus grego: raça e estética nas viagens de Hermann Burmeister e Louis Agassiz no Brasil, Machado e Brito (2023) analisam como a medicina se apropriou de discurso da arte – que apresentava métricas ideais para esculturas – para definir corpos belos e “humanos”. Segundo as autoras, a discussão acerca dos diferentes tipos humanos atinge seu ápice com expansão das expedições europeias para a África e as Américas e é nesse cenário que podemos

“entender a reinvenção do padrão de beleza grego como vetor de classificação de toda a humanidade. [...] Frente às diferentes características corporais, de costumes, hábitos e comportamentos dos diferentes povos, cujos registros foram coletados pelas expedições científicas e colocados à disposição dos naturalistas e anatomistas, os estudiosos europeus responderam propondo esquemas classificatórios nos quais o padrão grego é reinventado como ápice da perfeição” (p.18).

Ainda de acordo com as autoras, partir de palestra apresentada pelo médico holandês Pieter Camper na Universidade de Göttingen, na qual ele apresentava a medida dos crânios de macacos, um homem negro, um Calmuck e um europeu e estabelecia os ângulos ideais para cada ser e raça, esses padrões se vulgarizaram e se tornaram acima de qualquer questionamento.

Burmeister e Agassiz (os viajantes que dão título ao estudo de Machado e Brito, 2023), por meio de suas observações – inclusive no Brasil, contribuem fortemente para a teoria da suposta inferioridade racial das pessoas negras que, segundo ambos, se comprovaria pelo fato de os negros não se enquadrarem nos parâmetros do padrão grego clássico de beleza.

Burmeister, aliás, tinha um discurso bem peculiar sobre o tema. De acordo com o pesquisador, o Brasil era o lugar perfeito para a observação das diversas raças de africanos, uma vez que apenas ao passear pelas ruas, era possível o encontro com pessoas de diferentes nações. Ele se declarava antiescravista, afirmando que, mesmo que o negro se afastasse do padrão europeu de beleza, ainda era um ser humano. Suas afirmações também versavam sobre a mulher negra. Segundo ele

“uma vez que o braço da fêmea3 do negro é relativamente mais longo que o da europeia, e que sua perna também ultrapassa a daquela em comprimento, isso indica um certo nível do tipo masculino” (Machado & Brito, 2023, p. 20).

Com o passar do tempo, modelos como os utilizados pela Escola Americana de Etnologia se tornam provas irrefutáveis da supremacia branca; é nessa época que “cada vez mais cientistas e antropólogos começam a associar humanidade à beleza”, elementos de algumas das “raças” humanas. Assim, uma “imagem feminina emerge como parâmetro de análise do belo, sendo a representação feminina branca o exemplo da beleza, mas também da feminilidade ideal”3. E, o europeu, passa a ser a definição de homem, “superior, livre, inteligente e, também, belo, enquanto a negritude já estava associada à escravidão e fealdade” (Machado & Brito, 2023, p. 20).

Ser definida como “não humano”, também, em narrativas que ainda hoje embasam práticas (para não dizer políticas públicas) acerca das pessoas pretas nos remete ao chamado “o mito negro”.

Segundo Neuza Santos Souza (2021), o mito é uma fala – verbal ou visual –, uma forma de comunicação sobre qualquer objeto. Entretanto, se trata de um discurso qualquer; o mito, antes, é algo que intende esconder o real, negar a história e transformá la em ‘natureza’. Por ser um instrumento da ideologia, o mito é um “efeito social” resultante da convergência de determinações econômico-político-ideológicas e psíquicas (p. 54)4.

O mito negro, que produz a singularidade do problema negro, se organiza de forma tridimensional:

É o racismo – estrutural, estruturante e discursivo – que sustenta esse e outros mitos e mantém essas narrativas acerca dessa população. Grada Kilomba (2019), ao definir o racismo, se vale de três características básicas, a saber:

Ainda de acordo com a autora, o racismo não diz respeito à nacionalidade ou a sentimentos, ele é sobre poder. Assim, podemos dizer que se manifesta em três esferas: institucional, estrutural e cotidiano. E, este último, se materializa por meio do discurso – olha aí a necessidade de sermos definidos por nós mesmxs –, é o que reproduz e produz narrativas (no mínimo) equivocadas sobre nós. É ele que nos classifica não apenas como outra/o, mas como Outridade, ou seja, “a personificação dos aspectos reprimidos na sociedade branca (Kilomba, 2019, p.78).

Dessa forma, somos definidos por meio dos seguintes processos:

Ao falarmos de corpos negros, é importante ressaltar que, no caso das mulheres negras, a situação é ainda mais complicada, uma vez que somos “o outro do outro”. “Saber-se negra “, diz Neuza Santos Souza (2021), “é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas perspectivas, submetida a exigências, compelida a expectativas alienadas. Mas, é também, e sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar sua história e recriar-se em suas potencionalidades” (p. 46). Assim, falar sobre mulheres pretas é falar sobre interseccionalidade. Abro um parêntese aqui para tratar brevemente desse conceito tão importante para pensarmos inclusive as relações amorosas.

O termo interseccionalidade - cunhado por Kimberlé Crenshaw em 1989 – e diz respeito às “avenidas identitárias onde mulheres negras são repetidas vezes atingidas pelo cruzamento e sobreposição de gênero, raça e classe” (Akotirene, 2018, p.14). De acordo com Crenshaw (2002), racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado, produzem as avenidas que repetidas vezes nos atingem.

Adotado por outras feministas negras, interseccionalidade é uma “sensibilidade analítica” que discute as experiências das mulheres negras, “inobservadas tanto pelo feminismo branco” – que definia mulher de uma forma que não considera6 nossas idiossincrasias – “quanto pelo movimento antirracista, a rigor, focado nos homens negros” (Akotirene, 2018, p.13).

Discutir interseccionalidade também é pensar plural e atribuir sentidos plurais ao mundo e às pessoas. Se a branquitude usava apenas o olhar para nos definir (animais, perigosos, mercadorias rentáveis ou não, boas parideiras), a interseccionalidade faz com que usemos todos os sentidos e retomemos no corpo (e não apenas na oralidade) nossa produção de conhecimento, língua e significados.

Mas, o objetivo aqui era falar sobre produção de conhecimento, sobre o “fazer científico”, não é mesmo?

Ora, se olharmos inclusive para os textos literários produzidos por mulheres pretas, podemos encontrar algo muito frutífero. É ali, também, que podemos produzir novos discursos e narrativas sobre nós. Voltando à ancestralidade, exaltando exu, a encruzilhada, a filosofia iorubá, as línguas africanas e a diáspora negra, mulheres pretas passam a se narrar e, assim, produzir novos conhecimentos sobre si e os seus; aqui, falamos para além do conceito de “lugar de fala”. Trata-se, antes, da estrangeira de dentro6 que, é feminista e pleiteia “o lugar da mulher como sujeito político, mas ao mesmo tempo” é “uma de fora pela maneira como é vista e tratada dentro do seio do próprio movimento, a começar pelo modo pelo qual as reivindicações do movimento feminista foram feitas” (Ribeiro, 2017, p. 47).

Falamos, portanto, de produções de quem tem voz, mas não é necessariamente ouvida; de quem precisa se narrar para ter identidades e vivências ressignificadas, legitimadas. É a mulher que se torna sujeito pela narrativa. É o ser que reclama sua humanidade pela palavra. É por meio dos “modos de subjetivação” – processos pelos quais se obtém a constituição de uma subjetividade – e não pelos “modos de sujeição”, que supõem obediência e submissão aos códigos normativos – que o sujeito se constrói.

No caso das mulheres negras, reforçamos, a deslegitimação não ocorre somente nas páginas oficiais da História, mas também, na literatura. Segundo Conceição Evaristo (2007), quando mulheres negras se tornam objetos da literatura, em grande parte das vezes, “surgem ficcionalizadas a partir de estereótipos vários”.

A escrevivência das mulheres negras explicita as aventuras e as desventuras de quem conhece a dupla condição, que a sociedade teima em querer inferiorizada, mulher e negra” (Evaristo, 2007:6). Grada Kilomba (2019) afirma que escrever a si mesma em Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano, é uma “forma de transformar”, uma vez que não é mais a “Outra”, mas sim, ela própria.

O termo é cunhado por Conceição Evaristo (2007) e usado para definir sua escrita, mas, fala de algo que diz respeito a muitas de nós. E lá vamos com mais um parêntese, pois gostaria de deixar bem explícita – empretecer mesmo – a diferença entre “escrita de si” e “escrevivência”.

Muitos autores se interessam pela “escrita de si”. De acordo com Foucault (2006), ela não pretende revelar algo oculto, descobrir o que ainda não foi dito. Antes, trata de captar o dito, reunir o que é possível ser e ouvir com um único objetivo: a constituição do sujeito (Schwarcz, 2019).

É a respeito disso que estamos falando aqui: processo de subjetivação que, ao serem produzidos pelo indivíduo (autoras negras), materializam novos efeitos de verdade e significados sobre o coletivo (mulheres pretas, negritude).

Para autoras como Lívia Natália de Souza (2018), porém, a ideia de “escrita de si” não dá conta de tudo o que a escrevivência produz; esses textos demandam a construção de percursos teóricos específicos para a sua análise (p. 30). São necessários paradigmas outros para se analisar esses textos que são individuais e, por isso mesmo, coletivos.

Ainda de acordo com Souza (2018),

“o entrecruzamento dos lugares de gênero, raça e classe resulta no nascimento de especificidades de demandas que fazem parte deste exclusivo universo, o das mulheres negras pobres, neste caso, com destaque para aquelas que nasceram na diáspora negra. Ao colocar-se a partir deste contexto, a saber, do privilegiado e estreito contexto da enunciação escrita, Evaristo fala, conforme conseguimos depreender neste texto, com a sua fala e com a fala de todas as outras mulheres negras sistematicamente subalternizadas pelo desejo do outro. Operando para fora do estereótipo e gerenciando a expressão das suas demandas a partir da indagação sobre o que levaria determinadas mulheres nascidas e criadas em contextos não letrados, semialfabetizados, quando muito, afirma, “romperem com a passividade da leitura e buscarem o movimento da escrita?” (2007, p. 20), Evaristo fala por si, conta a sua própria história que, no entanto, se dilata. Adentrando ao agenciamento coletivo ao colocar-se no lugar de enunciação, ela articula a sua voz com as vozes de um sem número de mulheres que são, sistematicamente caladas, minoradas ou estereotipadas” (p. 37).

Portanto, nessa que pode ser considerada uma Literatura Menor, tudo adquire um valor coletivo, “uma vez que, pelas limitadas condições de vida e de acesso a bens simbólicos, não há estímulo suficiente para que os talentos abundem nos contextos contra-hegemômicos, o que torna mais fácil formar um escritor branco medíocre do que formar um escritor negro” (Souza, 2018:38).

Neste sentido, a escrevivência cresce como estilística negra, mas que, para além de questões da forma do texto, imprime a marca do coletivo também nos conteúdos e na própria possibilidade de escrita como sobrevivência8.

É pensar a vida por meio da narrativa. É transformar a vida por meio da narrativa. Mas isso só se dará por meio do trabalho coletivo, da retomada do quilombo, da reverência à ancestralidade, do fazer político, de uma que escreve a si e às demais. É descrever a sua própria história. É escrever, como ato político. Só assim será possível decolonizar a academia. Só assim intelectuais negras serão vistas como tal. Só assim a ciência será, de fato, universal – uma vez que incluirá a diversidade. Seguimos.



1 Aliás, a academia não só não nos acolhe, como tenta o tempo todo nos mostrar que não pertencemos àquele lugar. A santíssima trindade – mito do universal, mito da subjetividade e mito da neutralidade (Kilomba, 2019: 50-56) – nos oprime e silencia diariamente: não use a primeira pessoa, afaste-se do seu objeto de pesquisa, falar de algo tão pessoal, ciência não é isso!

Calma, D. Ciência, “meus escritos podem ser incorporados de emoção e de subjetividade, pois contrariando o academicismo tradicional, as/os intelectuais negras/os se nomeiam, bem como seus locais de fala e de escrita, criando um novo discurso com uma nova linguagem” (Kilomba, 2019:58).

2 É interessante observar que ele se refere à mulher negra como “fêmea”, categorização que a aproxima ainda mais da animalidade se pensarmos em termos ocidentais. Porém, se observamos uma teórica africana discorrendo sobre isso, temos uma visão completamente oposta.

Ao falar sobre o que aconteceu com as sociedades africanas a partir da invasão, em A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero (2021), Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí cunha os termos anafêmea (fêmea anatômica – “para enfatizar a atitude não generificada na relação entre o corpo humano e os papéis sociais, posições e hierarquias” (p. 19). De acordo com a autora, que busca em sua obra analisar “como e por que o gênero é construído na sociedade iorubá (e, de fato, em outras sociedades africanas contemporâneas), o papel e o impacto do Ocidente são de extrema importância”, não somente porque a África esteve sob domínio europeu até o início do século XX, “mas também em função do domínio contínuo do Ocidente na produção de conhecimento” (p. 16-17). Assim, quando a autora diz que a “fêmea anatômica” africana foi reduzida à categoria mulher com a colonização, além de dar um significado outro a esses conceitos, visto que, “mulher simplesmente não existia na Iorubalândia antes do contato mantido com o Ocidente”, Oyěwùmí discute que, a grande questão aqui é como esses conceitos determinam a organização social ocidental. Essas categorias sociais são “baseadas em um tipo de corpo e são elaboradas em relação, e em oposição a outra categoria: o homem. A presença ou ausência de alguns órgãos determina a posição social” (p. 15-16). Logo, diz ela, não é verdade que a sociedade iorubá não fosse dividida de alguma forma antes da colonização. Porém, essa ideia de “bio-lógica” – a lógica social pautada na biologia – foi trazida (e, em certa medida, imposta) pelos europeus. “Antes da instalação de noções ocidentais na cultura iorubá, o corpo não era base de papéis sociais, inclusões ou exclusões; não foi o fundamento do pensamento e da identidade social” (p. 16). É aquilo ao qual me referia logo no início deste texto: ao nos definirmos, os significados que nos atribuímos são completamente outros.

3 Para além da questão da beleza e da feminilidade, a mulher negra também foi hipersexualizada, o que justificaria os constantes estupros. Não apenas na Europa, essa visão era propagada em larga escala. “Através dos jornais que circulavam na sociedade norte-americana, no Norte e no Sul, a ciência era traduzida para uma linguagem mais simples”, seria consumida pela massa. Esses discursos produziam os estereótipos sobre o que significava “ser negro, africano, branco, caucasiano”, homem, mulher. “No caso específico das mulheres mulatas [e negras], a descrição do comportamento delas trazia conforto para os senhores de escravos. Após lerem The Black Man, eles poderiam afirmar que, ao violentarem suas escravas, estavam mantendo relações consensuais melhorando a condição física e mental destas mulheres e obedecendo aos impulsos da natureza, tanto deles enquanto homens e delas enquanto fêmeas de uma raça com fortes inclinações para o sexo” (Machado & Brito, p. 18).

Essa questão aparece fortemente em Tituba, de Maryse Condé. O texto se inicia com a seguinte frase: “Abena, minha mãe, foi violentada por um marinheiro inglês no convés do Christ the King, num dia de 16**, quando o navio zarpava para Barbados. Dessa agressão nasci. Desse ato de agressão e desprezo” (Condé, 2020:25). A própria narradora tem um episódio de estupro “para chamar de seu”. Ao aumentarem as suspeitas acerca da bruxaria praticada, Tituba é estuprada por Parris – seu senhor – e um grupo de amigos puritanos. A cena é forte, violenta, dramática e revela como os algozes enxergavam seu corpo e como o violaram: tocando, rasgando suas roupas, a penetrando inclusive com um cabo de madeira e fazendo alusões ao membro de seu então esposo, também negro. É importante ressaltar como esses dois corpos eram definidos em relação ao sexo e como o corpo de Elizabeth Parris era significado pelo marido que, segundo seus relatos, nem mesmo tirava as roupas no momento das raras relações.

5 Em discurso proferido como uma intervenção na Women’s Rights Convention em Akron, Ohio, Estados Unidos, em 1851, Sojourner Truth questiona E eu não sou uma mulher? Na reunião de clérigos onde se discutiam os direitos da mulher, Sojourner levantou-se para falar após ouvir de pastores presentes que mulheres não deveriam ter os mesmos direitos que os homens, porque seriam frágeis, intelectualmente débeis, porque Jesus foi um homem e não uma mulher e porque, por fim, a primeira mulher fora uma pecadora. O discurso todo é brilhante e lista algumas das diferenças das existências entre mulheres pretas e brancas. Para algumas de nós, esse é o início do chamado feminismo negro. O texto pode ser lido na íntegra em: https://www.geledes.org.br/e-nao-sou-uma-mulher-sojourner-truth/.

Sojouner Truth nasceu escrava em Nova Iorque, sob o nome de Isabella Van Wagenen, em 1797, foi tornada livre em 1787, em função da Northwest Ordinance, que aboliu a escravidão nos Territórios do Norte dos Estados Unidos (ao norte do rio Ohio). A escravidão nos Estados Unidos, entretanto, só foi abolida nacionalmente em 1865, após a sangrenta guerra entre os estados do Norte e do Sul, conhecida como Guerra da Secessão. Sojourner viveu alguns anos com uma família Quaker, onde recebeu alguma educação formal. Tornou-se uma pregadora pentecostal, ativa abolicionista e defensora dos direitos das mulheres. Em 1843 mudou seu nome para Sojourner Truth (Peregrina da Verdade). Na ocasião do discurso já era uma pessoa notória e tinha 54 anos. A versão mais conhecida foi recolhida pela abolicionista e feminista branca Frances Gage e publicada em 1863 (https://www.geledes.org.br/e-nao-sou-uma-mulher-sojourner-truth/).

6 O termo faz alusão ao de Audre Lorde, irmã outsider.

7 E, aqui, claro, não podemos deixar de mencionar Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus. Mas, não apenas. Baratas, A Mulher dos Pés Descalços e Nossa Senhora do Nilo, a chamada trilogia do genocídio, de Scholastique Mukasonga – todos publicados pela Editora Nós – também apresenta a escrita como uma válvula de escape para a sobrevivência. Sobre esse tema, cabe também a leitura de Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo, de Glória Anzaldua, do qual cito um trecho no início do texto; está disponível na Revistas Estudos Feministas, Florianópolis, v. 8, n. 1, p. 229- 236, 1. sem., 2000.


References

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