Cadernos PROMUSPP, São Paulo, v.3 n.3, set/dez, 2023



Práticas residuais ou de resistência: saberes territoriais como potenciais de mudança social na escala do bairro



> Adriana Casarotto Terra: é doutoranda no programa Mudança Social e Participação Política da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP), dentro da linha de pesquisa Dimensão Socioambiental, Patrimônio e Políticas Territoriais; mestra em Estudos Culturais pela mesma universidade, dentro da linha de pesquisa Cultura, Política e Identidades; e graduada em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero.
https://orcid.org/0000-0002-0033-4698




Resumo

O artigo mobiliza os conceitos de práticas residuais e de tradição seletiva, de Raymond Williams (2011), para refletir acerca do saber local resistente como conhecimento herdado, que persiste no espaço e no tempo, relacionando-o às ideias de territorialidade e de rugosidade de Milton Santos (2002), pensando uma cidade não-fragmentada, com historicidade. Relatando ações coletivas e comunitárias contemporâneas no bairro paulistano do Bixiga, na região central de São Paulo, a partir de observação participante e de entrevistas com moradores, o texto observa potenciais de mudança social existentes na própria escala do bairro, de caráter educativo, cidadão, de geração de pertencimento e produção de memória.

Palavras-chave: territorialidade, práticas, saberes, coletividade, memória.

Summary

The article uses the concepts of residual practices and selective tradition, by Raymond Williams (2011), to reflect on resistant local knowledge as inherited knowledge, which persists in space and time, relating it to the ideas of territoriality and “roughness” of Milton Santos (2002), thinking about a non-fragmented city, full of historicity. Reporting contemporary collective and community actions in the São Paulo neighborhood of Bixiga, in the central region of São Paulo, based on participant observation and interviews with residents, the text observes potentials for social change existing at the scale of the neighborhood itself, of an educational, citizen, of generating belonging and producing memory.

Keywords: territoriality, practices, knowledge, collectivity, memory.

Resumen

El artículo moviliza los conceptos de prácticas residuales y tradición selectiva, de Raymond Williams (2011), para reflexionar sobre el conocimiento local resistente como conocimiento heredado, que persiste en el espacio y el tiempo, relacionándolo con las ideas de territorialidad y “rugosidades” de Milton Santos (2002), pensando en una ciudad no fragmentada, con historicidad. Al relatar acciones colectivas y comunitarias contemporáneas en el barrio paulista de Bixiga, en la región central de São Paulo, a partir de observaciones participantes y entrevistas con residentes, el texto observa potenciales de cambio social existentes a escala del propio barrio, de carácter educativo, ciudadano, capaces de generar pertenencia y producir memoria.

Palabras clave: territorialidad, prácticas, conocimientos, colectividad, memoria.

Résumé

L’article mobilise les concepts de pratiques résiduelles et de tradition sélective, de Raymond Williams (2011), pour réfléchir sur les savoirs locaux résistants en tant que savoirs hérités, qui persistent dans l’espace et le temps, en les reliant aux idées de territorialité et de rugosité de Milton Santos (2002), penser une ville non fragmentée, avec une historicité. Faisant état d’actions collectives et communautaires contemporaines dans le quartier pauliste de Bixiga, dans la région centrale de São Paulo, à partir d’observations participantes et d’entretiens avec des habitants, le texte observe les potentiels de changement social existant à l’échelle du quartier lui-même, d’une approche éducative, citoyen, de générer de l’appartenance et de produire de la mémoire.

Mots-clés: territorialité, pratiques, savoirs, collectivité, mémoire.


Introdução

Ao refletir sobre territorialidade, concepção que perpassa sua obra, em 1987 Milton Santos diz, em “O Espaço do Cidadão”, que ela é sinônimo de cultura, da relação do homem com seu meio, herdada e reaprendida no viver. “Incluindo o processo produtivo e as práticas sociais, a cultura é o que nos dá a consciência de pertencer a um grupo, do qual é o cimento” (2002, p. 81). De forma que o elo da pessoa com o espaço tem capacidade de produção de conhecimento, de saberes, de identidade. Argamassa de vida que pode transformar a cidade e os cidadãos. Esse é o ponto central desse artigo que, em um primeiro momento, discorre conceitualmente sobre a questão, mobilizando autores da Geografia Humana, como Santos, da área dos Estudos Culturais e da Comunicação, como Raymond Williams, Stuart Hall e Muniz Sodré; e em um segundo momento busca articular exemplos a partir da experiência de campo em um bairro paulistano.

O conceito de tradição seletiva é interessante para observar a cidade de São Paulo em diversos aspectos. Desenvolvido por Williams (2011), ele diz que toda tradição, em uma cultura onde há jogo de forças, depende de uma escolha. Não existe tradição neutra onde há desequilíbrio de poder, mesmo que se trate de poder relativo e que não exista uma intencionalidade declarada de dominação. A questão é como uma tradição pode se apoiar na estrutura hegemônica, conseguindo se firmar, em detrimento de outras. É um conceito ao qual cabe uma abordagem que considere raça, classe, gênero, orientação sexual, local de origem (em caso de migrações), entre outros marcadores sociais da diferença, campo de estudos das ciências sociais com foco na forma como são constituídas, socialmente, as desigualdades e hierarquias entre a população (Zamboni, 2014).

É comum São Paulo ser entendida como capital do trabalho, do dinheiro, dos imigrantes, dos arranha-céus, do trânsito, da vida apressada, das brincadeiras intramuros, do lazer mercantilizado. Isso é uma seleção da identidade da cidade, construída com base em discursos na imprensa, do Estado, imagens de referência (fotojornalismo, cartões postais), narrativas no entretenimento (filmes, séries, novelas) e da publicidade no decorrer do século XX e cuja manutenção segue em curso, ainda que adaptada. Entretanto, esse é um recorte da cidade, uma seleção que - como toda - deixa de lado uma série de elementos, e que diante de uma desigualdade profunda de acessos e representações, reflete esse descompasso, reflete os marcadores sociais da diferença, o desequilíbrio de poder do qual fala Williams. Um recorte que desconsidera, inclusive, a territorialidade e a cultura vivas nos espaços, presentes nos bairros, fervorosas no cotidiano, forças de contrapeso a essa lógica.

Elementos que fazem parte da dimensão cotidiana das práticas, saberes, conhecimentos muitas vezes são entendidos como ultrapassados nessa percepção de cidade. São residuais no sentido de serem provenientes de outros tempos, de atravessarem a história, insistirem, mas isso não significa, ou não deveria significar, uma hierarquia de valores, um “envelhecimento”. “Por “residual” quero dizer que algumas experiências, significados e valores que não podem ser verificados ou não podem ser expressos nos termos da cultura dominante são, todavia, vividos e praticados como resíduos – tanto culturais quanto sociais – de formações sociais anteriores”, diz Williams (2011, p. 56-57).

Nesse texto, a ideia de residual é um caminho para pensar alguns exemplos acompanhados em campo no bairro paulistano do Bixiga: culturas vivas, conhecimentos compartilhados há décadas, manutenções por vezes localizadas nas esferas do lazer e das festividades. Aproximamos dela o conceito de rugosidades de Santos, pensando “o tempo histórico que se transformou em paisagem, incorporado ao espaço” (Santos, 2002, p. 173). As sobrevivências, o que elas nos contam? A primeira parte do artigo traz uma discussão teórica sobre o tema, enquanto a segunda tece relações com situações práticas.



Territorialidade: práticas residuais e rugosidades no centro

A identidade de São Paulo foi construída em um processo de tradição seletiva que priorizou determinadas populações, imagens e culturas acerca da história da cidade, apoiada em iniciativas urbanas lidas muitas vezes na chave do “progresso”, da “melhoria”, mas que não raro desterritorializaram pessoas por meio de expulsões do local de moradia ou transformação radical dos modos de vida de uma região. Segundo Schneck (2018):

(...) no decorrer do século XX assistimos à construção de uma certa história na qual alguns estereótipos foram dados como traços determinantes da metrópole: a cidade ordenada (legal e espacialmente) segundo preceitos ideais, visto que resultante de um supostamente correto modelo europeu; a cidade convenientemente branqueada pela presença do imigrante (também) europeu, principalmente o italiano; a cidade cosmopolita, onde a coexistência de diferentes culturas supostamente lhe conferia um caráter democrático e, por extensão, oportunidades iguais para todos; a cidade dinâmica, onde o valor do trabalho, definido pela máxima “São Paulo não pode parar”, funcionaria como o motor propulsor do progresso do país; enfim, uma cidade moderna representada pelo espaço público adequado às suas (novas) necessidades e pela arquitetura imponente de edifícios públicos e privados. Contudo, a manutenção desses predicados no imaginário urbano tem como consequência funesta a perpetuação de preconceitos geradores de práticas sociais excludentes. (Schneck, 2018, p. 41)

Tradição seletiva foi um conceito desenvolvido por Williams (2011) que fala sobre a lógica de valorização desigual frente um mundo com acessos e relações de poder desiguais:

Além disso, em um plano filosófico, no plano teórico verdadeiro e no plano da história das várias práticas, há um processo que chamo de “tradição seletiva”: o que, nos termos de uma cultura dominante efetiva, é sempre assumido como “a tradição”, “o passado significativo”. Mas sempre o ponto-chave é a seleção — forma pela qual, a partir de toda uma área possível do passado e do presente, certos significados e práticas são escolhidos e enfatizados, enquanto outros significados e práticas são negligenciados e excluídos. (Williams, 2011, p. 54)

Autores como Casé Angatu - referido no texto como Santos (2017) - e Koguruma (2001) questionam essa imagem de metrópole, essa seleção da realidade, observando São Paulo na virada para o século XX. “Há o intento claro de relacionar pobreza ao crime e taxar certas regiões como os celeiros naturais das ‘classes perigosas’, misturando o que se tentava marginalizar com a marginalidade”, diz Santos (2017, p. 97). O autor mobiliza diferentes fontes para lançar luz sobre culturas que o poder público queria europeizar, “modos de vida que influenciavam e eram influenciados pela cidade” (Santos, 2017, p. 92). Já Koguruma (2001, p. 120) fala sobre “tentativas de disciplinarização e normalização da população da cidade”. Ambos jogam luz sobre a presença das populações negras e indígenas na região central da cidade.

Os autores mencionam “modos de vida”, “regiões”. Questões que apontam para a ideia de territorialidade de Milton Santos, da relação das pessoas com o local em que vivem como produtora de identidade, cultura e memória. Segundo o geógrafo (2002):

Assim como cidadania e cultura formam um par integrado de significações, também cultura e territorialidade são, de certo modo, sinônimos. A cultura, forma de comunicação do indivíduo e do grupo com o universo, é uma herança, mas também um reaprendizado das relações profundas entre o homem e o seu meio, um resultado obtido por intermédio do próprio processo de viver. Incluindo o processo produtivo e as práticas sociais, a cultura é o que nos dá consciência de pertencer a um grupo, do qual é o cimento. (Santos, 2002, p. 81)

Ao desvalorizar, buscar negligenciar significados e práticas, marginalizar ou tentar disciplinar, busca-se desterritorializar. “Desterritorialização é frequentemente uma outra palavra para significar alienação, estranhamento, que são, também, desculturização” (Santos, 2002, p. 82). No entanto, esse movimento não ocorre sem contra-ataque, resistência, persistência. Olhar para o território, local de desalienação e relação fértil com o espaço, é praticar um desenganar o olho frente a uma cidade que se quis homogênea, achatada, que se vende como multicultural mas não respeita nem considera igualmente as culturas presentes nela, em uma espécie de multiculturalismo corporativo. Diz Santos (2002):

O território em que vivemos é mais que um simples conjunto de objetos, mediante os quais trabalhamos, circulamos, moramos, mas também um dado simbólico. A linguagem regional faz parte desse mundo de símbolos, e ajuda a criar esse amálgama, sem o qual não se pode falar de territorialidade. Esta não provém do simples fato de viver num lugar, mas da comunhão que com ele mantemos. O cimento regional obtém-se tanto via solidariedade orgânica, quando o essencial da divisão do trabalho é praticado na área, como via solidariedade funcional regulada, isto é, quando a coesão das pessoas (...) (Santos, 2002, p. 82)

Já Sodré (2002) vai dizer que:

Estuda-se muito o espaço como algo a ser submetido ou melhor aproveitado (...) mas se deixam de lado as afetações simbólicas que na cultura opera o espaço-lugar, o território, enquanto força propulsora (...) (Sodré, 2002, p. 7)

Contra o movimento que busca destituir os cidadãos da cidade, práticas de comunhão com o local em que moramos, afetações simbólicas permanecem vivas em diversas partes de São Paulo, inclusive em regiões nas quais a ideologia da urbanização e do progresso atuou e segue atuando de maneira violenta. Essas práticas são heranças, como fala Milton Santos (2002), relacionam-se com saberes, com conhecimento local.

Ao falar sobre tradição seletiva, Williams (2011) elenca algumas distinções entre as práticas culturais a partir desse conceito. Inicialmente, ele separa formas alternativas e opositoras, sendo as primeiras mais facilmente diluídas ou engolidas pelo capital, e as segunda mais de combate, embora a linha que as separa seja tênue, lembrando o conceito de cultura popular abordado por Hall (2003, p. 241), aquele que tem na disputa, na “tensão contínua”, o fundamento de sua existência. Posteriormente o autor faz a divisão entre formas emergentes, práticas que representam novos significados e valores, e as residuais, culturas provenientes de formações anteriores que estão a certa distância da cultura dominante.

Por “residual” quero dizer que algumas experiências, significados e valores que não podem ser verificados ou não podem ser expressos nos termos da cultura dominante são, todavia, vividos e praticados como resíduos – tanto culturais quanto sociais – de formações sociais anteriores. (...) Uma cultura residual está geralmente a certa distância da cultura dominante efetiva, mas é preciso reconhecer que, em atividades culturais reais, a cultura residual pode ser incorporada à dominante. Isso porque alguma parte dela, alguma versão dela – sobretudo se o resíduo é proveniente de alguma área importante do passado – terá de ser, em muitos casos, incorporada se a cultura dominante quiser fazer sentido nessas áreas. (...) Assim, as pressões são reais, mas certos significados e práticas genuinamente residuais, em alguns casos importantes, sobrevivem. (Williams, 2011, p. 56-57)

O aspecto da sobrevivência que está na ideia de culturais residuais é interessante para pensar em manifestações urbanas que driblam a visão dominante da cidade, assim como a relação complexa, variante, entre as práticas culturais - visão que entende que há um trânsito entre as categorias, a depender do jogo de forças existente da sociedade. Cabe aqui refletir sobre a “persistência de práticas residuais” (Williams, 2011, p. 57) para pensar no que é herança e reaprendizado, como diz Santos, ao falar do conhecimento produzido a partir do lugar. Há um diálogo com a ideia de rugosidades do geógrafo, pois ela também implica continuidade. Segundo Ribeiro (2021):

O conceito de rugosidade refere-se à concepção do espaço como acúmulo de tempos, ou seja, enfrenta os enigmas teóricos relacionados à indissociabilidade entre espaço e tempo. Da mesma forma, este conceito valoriza a historicidade que conforma a espacialidade (...) (Ribeiro, 2021, p. 68-69)

É usual enxergar, no ambiente de uma metrópole, o jogar bola na rua, a festa comunitária como hábitos de um passado cujos rastros não têm mais a mesma força, ou são vistos na chave de um romantismo alienante. Frequentemente essa leitura aparece na imprensa. Isso tem relação com a própria tradição seletiva na estruturação de São Paulo. No entanto, esses são hábitos que - reinventados ou adaptados com novas camadas - seguem vivos em muitos lugares. Marcam o espaço com um tempo não-linear, rico de conteúdos. São passado, presente e futuro. “A rugosidade, como acúmulo de tempos que conforma o espaço, condiciona os futuros possíveis” (Ribeiro, 2021, p. 68). Por vezes, alguma parte deles é incorporada na estrutura dominante, pois para fazer sentido ela precisa dessa argamassa, explica Williams (2011), mas sempre há algo neles que não se deixa capturar.



Lazer e saber nas ruas de um bairro de São Paulo

Então como essa argamassa sólida que dá sentido ao espaço, qualifica um bairro, uma rua, uma região transparece e é reveladora de identidades, memórias, potencializando mudanças sociais? A partir de pesquisa de campo que envolveu observação participante e entrevistas com moradores e ex-moradores do Bixiga entre 2015 e 2020, a segunda parte do texto traz relatos de ações coletivas, comunitárias, que apontam para saberes locais, conhecimento compartilhado, culturas, manutenções de modos de ser e existir na cidade.

Nascida em 1930 na várzea do rio Saracura, justamente na região que abrigou um quilombo (ocupação que antecede a chegada de imigrantes), a escola de samba Vai-Vai, antigo cordão carnavalesco, é um elo fundamental para entender a territorialidade negra, as sociabilidades e heranças culturais do samba na região, hoje sob risco com a obra do metrô que deslocou sua quadra do Bixiga. O aprendizado do tocar os instrumentos, da dança de mestre-salas e porta-bandeiras, da costura de vestimentas, da ritualística de festejos são saberes passados no dia a dia da agremiação por componentes mais velhos aos mais novos. Até meados dos anos 2010 na rua São Vicente crianças e adolescentes tinham aulas com ritmistas da bateria, uma entre as muitas iniciativas que promoviam essa continuidade - nem sempre instituída oficialmente no formato de aulas, por vezes expressas no cotidiano. Observemos fala de Marco Antônio Carneiro, analista de sistemas e músico, nascido e criado no bairro, hoje ex-morador, com 56 anos à época (em depoimento à Terra, 2020, p. 38):

Outro dia a gente tava lembrando as histórias do [cordão carnavalesco] Fio de Ouro na rede social, só a velharada, eu morava em uma vila chamada Zamataro e me lembro uma vez em que o pessoal do Fio de Ouro foi arrumar os instrumentos lá – antes era tudo [pele] de couro, e quando rasgava eles descartavam. Então a gente pegava, deixava de molho na água para amolecer e prendia, deixava secar e saía tocando pela vila. E a gente ficava só ali esperando eles arrumarem os instrumentos pra gente ir lá pegar as sobras (...) Foi o primeiro contato que eu tive com instrumento de percussão. Ali foi a primeira escola de samba que a gente começou a enxergar. E parece que tinha uma rixa entre o Fio de Ouro e o Vai-Vai, isso eu ouço falar. E minha mãe me levava na [rua] Rui Barbosa pra ver o Vai-Vai passar, e a gente não ia embora enquanto não visse o rei e a rainha (...)

Figura 1 - Baianas de escolas de samba paulistanas subindo a rua São Vicente no tradicional cortejo para Ogum,
organizado pelo Vai-Vai, em julho de 2017 | Foto: Adriana Casarotto Terra

A rotina de ir ver o Vai-Vai passar com a mãe e o aprendizado do samba evocado por ele a partir da brincadeira com os instrumentos do cordão Fio de Ouro se desdobram hoje na prática do bloco 013, do outro lado do bairro, embaixo do viaduto Jaceguai, onde ocorrem aulas de tamborim, surdo, caixa, chocalho, repinique semanalmente desde 2016, com músicos oriundos da escola de samba. Não muito distante dali, a rua Maria José - instituída como uma Rua de Lazer pela Secretaria de Esportes da Prefeitura de São Paulo desde 2019 - fecha para carros aos domingos, priorizando as sociabilidades dos moradores no espaço público nesse dia, quando a via abriga atividades infantis, shows, almoços, jogos de futebol (no Campeonato Inter Ruas do Larguinho é possível ver como identidades de diferentes vias de um mesmo bairro se manifestam). A mesma rua também é sede de um cineclube que exibe, produz filmes e promove oficinas, o Cinequebrada. Essas ações envolvem o morador não só como público, mas agente ativo, produtor de cultura, mobilizando saberes que já existem ali.

Na dimensão do esporte cabe também mencionar o projeto Arena Bela Vista, de cunho social voltado a crianças e adolescentes, instalado sob o viaduto Jaceguai. Trata-se de uma iniciativa de uso de um espaço onde, décadas atrás, familiares dos articuladores praticavam o mesmo esporte. “Antônio conta que seu pai jogava bola ali nos anos 1980. ‘Tentamos retomar essa tradição do bairro, pintamos o chão da quadra, o Uilson (que é ex-atleta e treinador) com alguns contatos trouxe as traves, e quem começou a vir mais foram as crianças. Então fomos aprender a trabalhar com elas’”, diz reportagem de 2021.

Com relação aos festejos comunitários, no meio do ano festas juninas ocorrem no bairro organizadas por moradores, que também trazem para esses eventos as variadas culturas existentes ali. Com quase um século de história, a Festa da Achiropita é italiana, mas agrega diferentes populações do bairro - território negro que nasce de um quilombo, recebe imigrantes europeus e, desde 1950, é lar de migrantes de estados do Nordeste brasileiro e, mais recentemente, vindos do Oriente Médio, de países africanos e caribenhos. Essas identidades, ao participarem da festa que perpetua saberes da gastronomia, por exemplo, também dão a ela sua cara. Já a Festa de São Benedito é uma iniciativa da Pastoral Afro Achiropita, fundada na década de 1980, cujo ensinamento dos fazeres é transmitido geracionalmente. Outra festa organizada pela mesma entidade é a Festa da Mãe Preta: música, gastronomia (café da manhã ou almoço incluindo determinados alimentos) e rituais religiosos fazem parte dos dois eventos. Em setembro, a festa de Cosme e Damião ocorre há dezesseis anos na Casa Mestre Ananias, pólo sócio-educacional que busca “favorecer o desenvolvimento local da comunidade onde atua”. O site da casa conta que:

O Caruru oferecido para São Cosme Damião foi a primeira festividade que a Casa Mestre Ananias promoveu logo no início de suas atividades, em setembro de 2007. (...) Acreditamos que as crianças são a força de continuidade e resistência, o elo que mantém a transmissão do saber e a esperança por um mundo mais justo. (...) Na Bahia, a ligação do Samba de Roda ao Caruru oferecido à São Cosme e São Damião é tão íntima que os antigos afirmam que aí está o surgimento do Samba de Roda. Em honra ao nosso Mestre Ananias daremos continuidade ao festejo que iniciamos juntos e com as crianças da Casa e da comunidade prestaremos nossa homenagem aos seus protetores. (Casa Mestre Ananias, 2019)

Figura 2 - Campeonato de Futebol Inter Ruas realizado por moradores no Largo Maria José, no bairro do Bixiga, anualmente, em registro de 2022.
Foto: Adriana Casarotto Terra

Seja no preparo do caruru, na continuidade do jogo de futebol, na organização das festas de santos ou na articulação que possibilita brincadeiras de rua em uma via fechada para carros, essas ações no Bixiga nos mostram horizontes de cidadania em uma capital desigual, dribles a uma tradição seletiva (contra o apagamento racista), identidades que podem ser expressas em sua potência, e não engolidas por processos homogeneizadores. São heranças transmitidas pelos mais velhos (pais, vizinhos, mestres). Como fala Santos:

(...) parcelas significativas do espaço geográfico, situadas sobretudo nas cidades (especialmente as grandes cidades dos países subdesenvolvidos), escapam aos rigores das normas rígidas. Velhos objetos e ações menos informadas e menos racionais constroem paralelamente um tecido em que a vida, inspirada em relações pessoais mais diretas e mais frequentes e menos pragmáticas, pode ser vivida na emoção e o intercâmbio entre os homens é criador de cultura e de recursos econômicos. (Santos, 2006, p. 145-155)



Considerações finais

O texto buscou debater a importância da relação das pessoas com o espaço em que vivem no campo da produção da cultura e da manutenção dos saberes, ressaltando o potencial de mudança social e drible a uma tradição seletiva urbana contidos nesta ação. Mobilizando Santos (2002) e Sodré (2002) para falar sobre território, o texto articulou também autores dos Estudos Culturais como Williams (2011) e Hall (2003) para demonstrar práticas hierárquicas nas cidades, bem como disputas e sobrevivências. Como exemplo de campo, o artigo abordou ações no bairro do Bixiga, na região central de São Paulo, a partir de observação participante e de entrevistas, pensando nos conhecimentos herdados, adaptados, mantidos ali, nas rugosidades que conformam o local. Festas, práticas de lazer e educativas se amalgamam no cotidiano da região a partir das iniciativas listadas, do campeonato de futebol ao preparo do caruru, passando pela afinação de instrumentos percussivos e pela articulação coletiva que envolve as grandes festas, demonstrando como territorialidade e conhecimento caminham juntos nesse espaço, produzindo saberes, memória e valorizando a historicidade, revelando as identidades, a diversidade, bem como as desigualdades e tensões, contra narrativas fragmentadas, corporativas e únicas.



1 Sodré (2002, p. 36) usa a expressão “enganar o olho” para falar sobre a busca pela aparência “metropolitana” expressa na arquitetura das casas nas cidades brasileiras, por exemplo.

2 Hall (2003) nos lembra que o multiculturalismo pode ser pensado ignorando as suas contradições, em uma leitura que busca “’administrar’ as diferenças culturais da minoria, visando interesses do centro”, ou pode ser pensado enfocando “o poder, o privilégio, a hierarquia das opressões e os movimentos de resistência” (MacLaren, 1997, apud Hall, 2003, p. 53), buscando alterar a realidade.

3 Em 2021, a quadra da escola de samba Vai-Vai, no entroncamento das ruas São Vicente, Cardeal Leme e Dr. Lourenço Granato, foi destruída por uma obra do metrô da Linha 6-Laranja. No entanto, um sítio arqueológico foi encontrado nas escavações, com vestígios do Quilombo do Saracura, do século XIX. Desde 2022, um movimento da sociedade civil, o Mobiliza Saracura Vai-Vai, tem buscado a preservação do sítio, pensando na memória e no futuro da população negra local a partir da preservação da história e da luta pela permanência.

4 https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias/2021/02/02/acao-comunitaria-cria-escolinha-de-futebol-sob-viaduto-no-centro-de-sp.htm

5 http://mesnias.blogspot.com/p/festas.html treana



Referências

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KOGURUMA, P. (2001). Conflitos do Imaginário: a reelaboração das práticas e crenças afro-brasileiras na “metrópole do café” - 1890-1920. São Paulo, SP: Annablume.

RIBEIRO, A. C. T. (2012). Homens Lentos, Opacidades e Rugosidades. Revista Redobra, 9. Salvador, BA: EDUFBA.

SANTOS, C. J. F. (2017) Nem tudo era italiano – São Paulo e Pobreza (1890-1915). São Paulo, SP: Annablume/Fapesp.

SANTOS, M. (2002a). O espaço do cidadão. São Paulo, SP: Edusp.

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SCHNECK, S. (2018) Bexiga: cotidiano e trabalho (1906-1931). Anais Do Museu Paulista: História e Cultura Material, São Paulo, v. 26, e. 24.

SODRÉ, M. (2002). O Terreiro e a Cidade: a forma social negro-brasileira. Rio de Janeiro, RJ: Imago.

TERRA, A. C. (2020) Entre centro e periferia: camadas, imaginários e a importância da rua na construção da identidade no Bexiga. (Dissertação de Mestrado). Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.

WILLIAMS, R. (2011) Cultura e Materialismo. São Paulo, SP: Editora Unesp.

ZAMBONI, M. (2014). Marcadores Sociais da Diferença. Sociologia: grandes temas do conhecimento (Especial Desigualdades), v. 1, 14 - 18.



Sites e reportagens na imprensa

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TERRA, A. (2021) Ação comunitária cria escolinha de futebol sob viaduto no centro de SP. UOL ECOA. Disponível em https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias/2021/02/02/acao-comunitaria-cria-escolinha-de-futebol-sob-viaduto-no-centro-de-sp.htm. Consulta em 16 de setembro de 2023.