Cadernos PROMUSPP, São Paulo, v.2 n.3, jul/set. 2022



Análise da Copa do Mundo de Futebol Masculino da FIFA
em nações periféricas: os BRICS e um Exórdio ao Catar 1

1 Auxílio à Pesquisa: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo,
Grupo de Financiamento. Processo: 2021/10443-3




> Marco Bettine: Professor Associado 3 da Universidade de São Paulo. Realizou Pós-doutorado Universidade do Porto em 2012 e em Relações Internacionais e os Megaeventos Esportivos no Instituto de Estudos Avançados da em 2019. Foi Professor Colaborador no IEA em 2020 com o tema “BRICS e FIFA: as novas dinâmicas do Soft Power”. Recebeu 11 financiamentos da FAPES. Possui mais de 100 artigos publicados, 35 capítulos, 8 livros. https://orcid.org/0000-0003-0632-2943




Resumo

Busquei analisar se os Megaeventos da FIFA nas nações periféricas ampliaram o seu Soft Power. Utilizei como fonte de dados o modo que a mídia internacional abordou a Copa do Mundo de Futebol Masculino na Africa do Sul, no Brasil e na Rússia, e farei um exórdio ao Catar. Para interpretar como se deu essa cobertura foram analisadas reportagens de 9 jornais de diferentes línguas (inglesa, francesa e espanhola), os mais acessados da internet no período. Os jornais foram: CNN, BBC, Daily Mail, New York Times, The Guardian, El Pais, El Mundo, Le Monde, Le Figaro. No total foram analisadas 2.195 reportagens. No caso específico desta proposta, gostaria de trazer ao leitor como estes países utilizaram a Copa do Mundo de Futebol FIFA como discurso de ampliação do seu soft power, ou da sua diplomacia pública, ou simplesmente, da sua propaganda, discurso este que a FIFA comercializa.

Palavras-chave: FIFA; BRICS; Catar; Direitos Humanos; Nações Periferias; Soft Power


Analysis of the FIFA Men’s World Cup in peripheral nations: the BRICS and an Exordium to Qatar

Abstract

I sought to analyze whether FIFA’s Mega Events in peripheral nations increased their Soft Power. I used as a data source the way the international media approached the Men’s World Cup in South Africa, Brazil and Russia, and I will make an exordium to Qatar. In order to interpret how this coverage took place, reports from 9 newspapers in different languages ??(English, French and Spanish), the most accessed on the internet in the period, were analyzed. The newspapers were: CNN, BBC, Daily Mail, New York Times, The Guardian, El Pais, El Mundo, Le Monde, Le Figaro. In total, 2,195 reports were analyzed. In the specific case of this proposal, I would like to show the reader how these countries used the FIFA Soccer World Cup as a speech to expand their soft power, or their public diplomacy, or simply, their propaganda, a speech that FIFA commercializes.

Keywords: FIFA; BRICS; Qatar; Human rights; Outlying Nations; soft power.


Análisis de la Copa Mundial Masculina de la FIFA en naciones periféricas: los BRICS y un Exordio a Qatar

Resumen

Busqué analizar si los Mega Eventos de FIFA en naciones periféricas aumentaron su Soft Power. Usé como fuente de datos la forma en que los medios internacionales abordaron la Copa Mundial Masculina en Sudáfrica, Brasil y Rusia, y haré un exordio a Qatar. Para interpretar cómo se dio esta cobertura, se analizaron reportajes de 9 diarios en diferentes idiomas (inglés, francés y español), los más consultados en internet en el período. Los periódicos eran: CNN, BBC, Daily Mail, New York Times, The Guardian, El País, El Mundo, Le Monde, Le Figaro. En total, se analizaron 2.195 informes. En el caso específico de esta propuesta, me gustaría mostrar al lector cómo estos países utilizaron la Copa Mundial de Fútbol de la FIFA como un discurso para expandir su poder blando, o su diplomacia pública, o simplemente, su propaganda, un discurso que la FIFA comercializa.

Palabras clave: FIFA; BRICOS; Katar; Derechos humanos; naciones periféricas; Poder suave.


Analyse de la Coupe du Monde masculine de la FIFA dans les nations périphériques: les BRICS et un Exordium au Qatar

Sommaire

J’ai cherché à analyser si les Mega Events de la FIFA dans les pays périphériques augmentaient leur Soft Power. J’ai utilisé comme source de données la façon dont les médias internationaux ont abordé la Coupe du monde masculine en Afrique du Sud, au Brésil et en Russie, et je ferai un exorde au Qatar. Afin d’interpréter comment cette couverture a eu lieu, les rapports de 9 journaux dans différentes langues (anglais, français et espagnol), les plus consultés sur Internet dans la période, ont été analysés. Les journaux étaient : CNN, BBC, Daily Mail, New York Times, The Guardian, El Pais, El Mundo, Le Monde, Le Figaro. Au total, 2 195 rapports ont été analysés. Dans le cas précis de cette proposition, je voudrais montrer au lecteur comment ces pays ont utilisé la Coupe du Monde de Football de la FIFA comme un discours pour étendre leur soft power, ou leur diplomatie publique, ou simplement, leur propagande, un discours que la FIFA commercialise.

Mots-clés: FIFA; BRICS; Qatar; Droits humains; nations périphériques; douce puissance.




1. Introdução

Neste ensaio pretendo desenvolver cinco tópicos, na seção 1 - BRICS nos Megaeventos Esportivos; Seção 2 - Soft Power, Diplomacia Pública ou Propaganda; Seção 3 - A Copa do Mundo da FIFA nos BRICS; Seção 4 – Exórdio ao Catar; Considerações Finais: FIFA 2.0 “The Empire Strikes Back”.

Algumas problemáticas foram levantadas por pesquisadores que se preocupam com a atuação da FIFA no mundo contemporâneo, dentre elas destaco: a falta de clareza na escolha dos países sedes; a escolha de anfitriões com potencialidade de mudanças legislativas em favor dos parceiros financeiros da FIFA; os países com corrupção endêmica, o que facilitaria os acordos da FIFA com os parceiros globais e a elite política local.

Gostaria de alertar que não estou tomando aqui a categoria soft power de forma ingênua, sabendo que ela é utilizada vezes como justificação para a recepção dos megaeventos, sendo considerada como um dos seus legados intangíveis. A própria questão do legado é controversa, pois muito se fala no período das candidaturas, provavelmente, para angariar apoio político, social e econômico, mas, o fato concreto é que o tema “legado” é pouco estudado após o evento no eixo Sul Global (Almeida, Bolsmann, Marchi Jr., e Souza. 2015).

Busquei analisar se os Megaeventos da FIFA nas nações periféricas ampliaram o seu Soft Power. Utilizei como fonte de dados o modo que a mídia internacional abordou a Copa do Mundo de Futebol Masculino na Africa do Sul, no Brasil e na Rússia, e farei um exórdio ao Catar. Para interpretar como se deu essa cobertura foram analisadas reportagens de 9 jornais de diferentes línguas (inglesa, francesa e espanhola), os mais acessados da internet no período. Os jornais foram: CNN, BBC, Daily Mail, New York Times, The Guardian, El Pais, El Mundo, Le Monde, Le Figaro. No total foram analisadas 2.195 reportagens. No caso específico desta proposta, gostaria de trazer ao leitor como estes países utilizaram a Copa do Mundo de Futebol FIFA como discurso de ampliação do seu soft power, ou da sua diplomacia pública, ou simplesmente, da sua propaganda, discurso este que a FIFA comercializa.

Antes de começar a discussão teórica, gostaria de explicar a vocês o que significa os BRICS e porquê eu afirmo que estes países investiram pesado nos grandes eventos esportivos.




2. BRICS nos Megaeventos Esportivos

BRICS é um acrônimo geopolítico que identifica novos atores globais. O uso deste acrônimo é parte de um mecanismo político-diplomático que se constitui em um momento de redesenho da governança global, em que se torna cada vez mais aguda a percepção do déficit de representatividade e, portanto, de legitimidade, das estruturas globais.

Os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) apesar da distância geográfica e cultural, têm em comum a compreensão da distribuição desigual de poder nas relações internacionais. Seu objetivo principal é reformar a ordem internacional.

O Ministério das Relações Exteriores do Brasil, em reunião de 2012 discutindo Brasil, BRICS e agenda internacional, afirmaram que existe em comum entre estes países o interesse de um posicionamento geopolítico e a redistribuição do poder na esfera internacional, acresce-se a isso os interesses de cada nação: (a) para a China, uma forma conveniente de se posicionar como líder mundial, exercer influência global e reduzir a dos EUA sem se expor ou correr riscos sozinha; (b) para a Rússia, um canal de diálogo com EUA, e um espaço para retomar sua força nas demandas globais; (c) para Índia, um espaço para suas demandas multilaterais e proteger-se contra o Paquistão; (d) para o Brasil, um meio de expandir sua força política para além da América do Sul e melhorar sua imagem no mundo; (e) para a África do Sul, uma forma de conquistar a confiança dos atores globais (principalmente em relação aos direitos Humanos) e ser o porta-voz do pan-africanismo.

Além de utilizar as estratégias típicas das relações internacionais para demandas de comércio exterior, tarifas alfandegárias, legitimidade nos organismos internacionais e relações horizontais com outros blocos econômicos, o que se tornou evidente no século XXI foi a utilização estratégica do esporte como meio para busca de promoção política e econômica internacional, bem como, a intenção de reforçar as agendas domésticas, a legitimidade política e a coesão nacional.

A tabela 1 dará um espectro à vocês das vezes que os BRICS sediaram, neste século, algum megaevento esportivo.

Apenas para alertar sobre a importância do Commonwealth Games nesta tabela. Esta competição entre os países vinculados ao Império Britânico, tem início em 1930, ocorre a cada quatro anos e em 2022 será sua 22ª edição. Em 2010 foi a primeira vez que os jogos ocorreram na Índia, mesmo este país figurando em 4º lugar no quadro geral de medalhas, no total de 70 confederações (países) reconhecidos pela Commonwealth Games Federation.

Até 2022, os BRICS estarão na vanguarda como sede de megaeventos esportivos, serão dois jogos olímpicos de verão, dois jogos olímpicos de inverno, três copas do mundo e um Commonwealth Games.




3. Soft Power, Diplomacia Pública ou Propaganda

Não quero ocupar o tempo para apresentar os estudos teóricos do soft power, suas críticas, seus seguidores ou seus limites, posso afirmar que o uso feito de forma mecanicista em nações periféricas é um problema muito grave, pois esquece-se que sua utilização como ferramenta teórica foi criada para analisar potências econômicas ocidentais em uma conjuntura específica - pós perestroika, glasnost, queda do muro de Berlim e o fracasso do socialismo real na Europa Oriental e URSS. A preocupação dos cientistas políticos era compreender o papel dos Estados Unidos da América do Norte neste novo cenário mundial e como ele poderia exercer outras formas de poder, além das já utilizadas pelo pentágono.

Um ano após a queda do muro de Berlim, Joseph Nye apresenta um livro sobre a mudança das formas do poder americano no mundo, ganhando vários adeptos e o tornando uma referência/celebridade no debate sobre relações internacionais. Sua categoria parecia bem simples de entender, o poder é algo fluído, existe uma intangibilidade e há outras formas de um país exercer sua influência mundial sem utilizar embargos econômicos, ou mísseis, como por exemplo, os filmes, a tecnologia ou as alianças bilaterais de acordo de cooperação em áreas estratégicas como a de energia.

A teoria de Nye, que não se realizou na realidade concreta, era que com o fim da guerra fria, a coerção militar e econômica seria menos efetiva na busca por prestígio e influência internacional. Afirmo que não se realizou na realidade concreta devido a “Guerra ao Terror”. Desde este período vivemos em um estado de exceção permanente, com: dados pessoais em vigília; governantes sendo grampeados pelo pentágono; prisões secretas e guerras permanentes.

Respondendo à questão colocada, soft power, diplomacia pública ou propaganda, parece-me que a categoria soft power mais se aproxima da propaganda, que utiliza estratégias de âmbito global, como: os filmes e séries na área do entretenimento; os broadcast e jornais online para as notícias; e os megaeventos esportivos para o esporte. A diplomacia pública está associada à promoção da imagem de um país no exterior, por meio de diplomatas e cônsules preocupados com a relação da política externa com a sociedade civil, em um esforço de democratização e transparência das políticas públicas transnacionais.

Teria mais soft power aquela nação que consegue fazer prevalecer sua cultura às demais nações. Como a nação dominante está no coração e nas mentes das nações dominadas, ela poderia exercer seu poder por meio dos princípios de Nye. Em último caso, o soft power só poderá ser utilizado se houve em sua base primeira violência, imposição e força, de uma nação dominante sobre a dominada. Seria a neocolonização da própria cultura em uma sociedade globalizada.

Os autores que defendem um pensamento crítico ao que chamamos legados intangíveis, como seria o soft power, fazem uma dura crítica da relação causal que se estabelece entre realizar uma Copa do Mundo de Futebol Masculino da FIFA e ter suas agendas atendidas nas demandas internacionais – vide a intenção do Brasil em ter uma cadeira como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU. Mostrando que sediar este evento envolve mudanças nos mais diversos aspectos do país, desde mobilidade urbana e habitação, até políticos e jurídicos. O gasto de bilhões de dólares, o suposto lucro e uma audiência massiva não representam, por si só, o sucesso do evento, podendo resultar em enormes fracassos, como análises feitas em Pequim, Sochi, África do Sul, Brasil e Rio de Janeiro.

A FIFA tornou-se um ator global nas relações internacionais que possui uma estratégica agressiva, autoritária e fraudulenta, como modus operandi nas escolhas e agendas para realizar o seu evento. E acredito que a prisão em 2014 dos dirigentes da FIFA em plena Copa do Mundo do Brasil foi um passo importante para descortinar a pose de boa senhora que esta entidade propagava, a FIFA é uma empresa transnacional, onde se busca o lucro dos parceiros e dirigentes, faz-se acordos sem accountability e não se responsabiliza pelos direitos humanos nas suas intervenções. Gosto de denominar a FIFA como um furacão, FIFA’s Hurricane, que vai em um lugar, deixa marcas de destruição por onde passa – populações sem moradias, descaso público, mortes dos trabalhadores e gentrificação – e quando questionada, coloca a culpa no governo local, afirma que tudo estava em contrato e vamos para a próxima “vítima”, quer dizer, sede.

Estas afirmações podem parecer em um primeiro momento ideológicas, sem fundamento teórico, para aqueles que pensam assim sugiro a leitura de textos de reconhecimento internacional para percebermos o quanto a FIFA e seus parceiros estão fazendo um desfavor ao futebol, como o artigo de John Horne (2017) sobre a contestação política e os abusos na área de direitos humanos; Tim Hill (2018) no seu texto que critica esta forma do futebol se apresentar no mundo contemporâneo; Alan Tomlinson (2014) discute falta de governança e transparência na FIFA; Jean-Loup Chappetel (2018) discute a necessidade de regulação dos agentes esportivos internacionais, como COI e FIFA; Emmanuel Bayle (2018) faz um paralelo com Nixon na sua denominação de um ‘FIFAgate’, referência aos escândalos recentes de corrupção na FIFA. Estes são apenas exemplos na área acadêmica. Outras iniciativas de grupos da sociedade civil também atuam na intenção de conter a corrupção da FIFA e proteger o Futebol enquanto patrimônio cultural, estes grupos construíram articulações internacionais, como: (a) Play the Game; (b) Against Modern Football; (c) Sport for the Peace; (d) Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa.



4. A Copa do Mundo da FIFA nos BRICS

África do Sul em 2010, Brasil em 2014 e Rússia em 2018 foram as sedes dos últimos mundiais de futebol masculino. Cada nação queria utilizar para si a visibilidade do evento para fomentar as suas agendas nas três esferas: doméstico, regional e global. Podemos afirmar que os interesses estratégicos de organizar uma Copa do Mundo de Futebol, possui uma esfera mnemônica no plano da cultura, lazer e turismo, possui uma áurea de recordações, principalmente para aqueles que tem como marcador de tempo as copas do mundo.

Está forma de pensar a relação entre: o futebol, o Brasil e a Copa se transformaram em 2013, quando tivemos as jornadas de junho no Brasil, um pouco antes de começar a Copa das Confederações.

Estudo importante para entender inclusive o rechaço da população à realização da Copa das Confederações e a Copa do Mundo da FIFA no Brasil é o estudo de Ângela Alonso de 2017.

O artigo publicado na CNN de Anthony Pereira aborda estas questões, como também, os receios que pairaram na realização da Copa do Mundo de 2014.

O receio era compartilhado por outros jornais estrangeiros, como, CNN, BBC, Daily Mail, New York Times, The Guardian, Le Monde.

Daily Mail no dia 30 de junho de 2013 retrata o descontentamento dos brasileiros na final da copa das confederações.

Manifestantes contrários ao governo marcharam domingo perto do estádio do Maracanã antes da final da Copa das Confederações, desabafando sua raiva sobre os bilhões de dólares que o governo brasileiro está gastando em grandes eventos esportivos ao em vez de serviços públicos (Barchfield2, 2013, tradução livre).

2 https://www.dailymail.co.uk/sport/football/article-2352100/Confederations-Cup-2013-Protests-result-tear-gas-missiles.html. Consulta realizada em setembro de 2022.

Em Editorial de 18 de junho de 2013 a BBC faz ampla cobertura dos protestos no Brasil com as agendas, entre elas #nãovaitercopa.

É certo que durante a Copa do Mundo, pelas regras de mudanças legislativas impostas pela FIFA, particularmente a Lei Geral da Copa, houve maior controle nos protestos por meio da violência e controle prévio de grupos organizados e movimentos sociais, uma série de medidas como uma legislação antiterrorismo colocou estes grupos na ilegalidade.

No caso brasileiro a Copa do Mundo de 2014 como propaganda do Brasil no exterior (soft power) mostrou uma democracia fragilizada, com políticos que violaram o pacto democrático e um avanço de uma agenda conservadora (Almeida, 2019).

Na África do Sul a questão da superação do apartheid e a representação do pan-africanismo deram o tom dos discursos dos dirigentes sul-africanos nas reportagens dos veículos internacionais, eram estas as demandas da África do Sul, a Copa do Mundo da África. Por exemplo, o The Guardian em 13 junho de 2010, em reportagens de David Smith, aponta os problemas da África e a pouca atenção da mídia em diversas guerras civis ocorrendo no continente.

Enquanto a febre do futebol toma conta da nação, o terror e a fome na África não são registrados. Pouca atenção aos novos ataques contra os agricultores no Zimbábue pode ser explicada pelo fascínio pela primeira Copa do Mundo da África. Os ataques receberam pouca atenção nos meios de comunicação internacionais, onde todos os olhos estavam voltados para o vizinho do Zimbábue ao sul, na contagem regressiva para a primeira Copa do Mundo de futebol da África. Tal é o fascínio intenso com a competição na África do Sul que não possuem agenda para outras notícias (Smith3, 2010, tradução livre).

3 https://www.theguardian.com/world/2010/jun/13/zimbabwe-farmers-south-africa. Consulta realizada em setembro de 2022.

Como no Brasil, a África do Sul teve que reformar suas leis para a adaptação aos encargos da FIFA, com tribunais que foram especialmente estabelecidos para lidar com situações envolvendo os interesses da FIFA. Marina Hyde no The Guardian em 20 junho de 2010 fez uma excelente reportagem sobre as ações draconianas do governo da África do Sul para acalmar os ânimos da FIFA sobre a violência urbana nas cidades sedes.

O documentário Trade Mark 2010 do jornalista Rudi Boon apresenta este cenário. Newton (2009) apresenta o processo de remoção para construção de estruturas ligadas a copa do mundo, projeto N2 in Cape Town, com 20 mil pessoas desalojadas.

A Rússia em 2018 sediou o mundial da FIFA, diferente dos eventos anteriores, já havia se consolidado desde 2013, com os protestos no Brasil, um jornalismo mais preocupado com a ações da FIFA. Outro ponto que merece destaque foi a prisão de dirigentes do alto escalão da FIFA em 2014 e 2015, fazendo uma varredura na entidade. A copa da Rússia inicia-se com toda discussão da corrupção da entidade e recaí sobre a Rússia a falta de transparência do processo de escolha e a relação Putin e FIFA.

Os jornalistas e a academia, do ocidente, iniciaram uma grande cobertura sobre o ‘FIFAgate’, New York Times descreveu com minucias no seu editorial as acusações baseadas na investigação do FBI que começou em 2011 apontando corrupção generalizada na FIFA nas últimas duas décadas - envolvendo a disputa pelo direito de sediar as Copas da Rússia (2018) e Catar (2022). Em 2015 a alta cúpula da FIFA foi presa em Zurique, abrindo ao mundo o maior escândalo no mundo do futebol.

A Rússia que tem muita dificuldade de impor a sua agenda no ocidente, teve que lidar com a sociedade civil internacional pedindo transparência e governança na FIFA e seus parceiros. Algo que a própria Rússia não possuí. Outro ponto, importante, é toda uma discussão sobre o aumento exponencial dos gastos dos países sede para a realização do evento, houve um aumento enorme dos gastos com os BRICS e uma desproporcionalidade com o Catar.

Tabela 2 - Custos da Copa do Mundo, valores retirados das reportagens da Revista Exame e comparados com os dados do The Guardian, atualizados para valores de 2020.

Como pode ser concebido que nações com maiores problemas de IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) são as que mais “investiram”/gastaram na Copa do Mundo da FIFA? De que forma os BRICS e o Catar foram utilizados para inflacionar o megaevento?

A Copa da Rússia é a Copa do Putin, assim que o New York Times denomina o evento. Após o discurso de Putin, na abertura fala de fraternidade entre os povos, novamente o New York Times faz um balanço da fraternidade buscada pelo “ditador russo”:

Então a Rússia demonstrou uma noção bem diferente de fraternidade: anexar a Criméia, apoiar uma insurgência separatista no leste da Ucrânia, fornecer a bateria de mísseis que abateu o voo da Malaysia Airlines e apoiar um sangrento ditador, Bashar al-Assad, na Síria. Vários críticos do Kremlin no exterior morreram ou adoeceram em circunstâncias misteriosas, enquanto dezenas de ativistas em casa foram presos ou suas organizações foram fechadas. A Rússia transformou a “propaganda gay” em mídia social ilegal (Macfarquhar4, 2018, tradução livre).

4 https://www.theguardian.com/world/2010/jun/13/zimbabwe-farmers-south-africa. Consulta realizada em setembro de 2022.

Jornais estrangeiros estabeleceram um diálogo bem diferente durante a Copa do Mundo da Rússia, seja pela força de Putin no cenário mundial, ou seja, pelo controle interno das questões domésticas, mas não há dúvida que houve uma blindagem por parte do governo das notícias vinculadas no período da Copa. Diferentemente do Brasil e da África do Sul que as mídias internacionais trataram dos problemas de distribuição de renda, violência urbana, gastos públicos, transparência, violência policial, corrupção, gentrificação, na Copa do Mundo da Rússia, estes mesmos jornais discutiram sua política bélica e expansionista.

A Rússia, e Putin, particularmente, souberam blindar o evento, demonstrando o que queriam mostrar, lembrando o esforço alemão nos Jogos Olímpicos de Berlim.

A FIFA comercializa seu produto, Copa do Mundo FIFA de Futebol Masculino, dentre inúmeros pontos para vender este produto está o soft power, que traduzido para o Sul Global é propaganda, durante um longo tempo o país hospedeiro do FIFA’s Hurricane estará na mira da mídia mundial e poderá celebrar seus acordos comerciais em uma conjuntura neoliberal.

Os BRICS, pelo seu sentimento de déficit de representatividade e interesse de ampliar sua força e poder no jogo geopolítico mundial, alimentaram a Hidra’sFIFA. Na mitologia, a Hidra é um dragão com cabeças de serpente, com duas características principais, para comparar à FIFA, a primeira é seu veneno que era letal apenas exalando-o (nos BRICS deixaram um rastro de corrupção, de desalojados, de violência aos direitos humanos e de obscuridade). A segunda característica é que a cada cabeça de serpente cortada outra renasce (a FIFA envolve seus parceiros e sua cúpula em um jogo de corrupção e poder que parece não haver fim nas investigações dos escândalos gerados nas últimas duas décadas).

Os recentes megaeventos nos BRICS (inclusive China e Índia) demonstraram: (a) despejos de populações pobres sem um processo de compensação; (b) abuso dos trabalhadores principalmente de imigrantes; (c) mudanças nos direitos civis e cerceamento dos movimentos sociais; (d) ameaças, intimidação e prisão de jornalistas engajados de mídias livres.

Este é o retrato dos BRICS como sede dos Jogos Olímpicos de Verão, Jogos Olímpicos de Inverno, Copa do Mundo da FIFA e Commonwealth Games.




Seção 4 – Exórdio ao Catar

O Catar é um país peninsular árabe cuja paisagem abrange um deserto árido e um longo litoral no Golfo Pérsico repleto de praias e dunas. Também na costa, fica a capital Doha, conhecida pelos arranha-céus futuristas e pela arquitetura ultramoderna inspirada no antigo design islâmico, com exemplos como o Museu de Arte Islâmica, feito de calcário.

A Copa do Mundo da FIFA no Catar 2022 foi um dos principais impulsionadores para promover importantes mudanças na infraestrutura do país, bem como para transformar a imagem do Catar. No entanto, apesar da grande riqueza de suas reservas de Petróleo e Gás, vários desafios sociais que historicamente afetam o país começaram a surgir devido à maior cobertura da mídia internacional, ameaçando as expectativas de legados positivos deixados na imagem do país a partir do evento.

O Catar ao enfrentar diferentes pressões feitas por grandes marcas internacionais patrocinadoras do evento que agora veem sua imagem ameaçada por sucessivas polêmicas em que o país se envolveu ameaçam retirar seus apoios e investimentos (Russo, 2022).

Além do desafio de investir na construção de estradas, ferrovias, linhas de metrô, portos, aeroportos, estádios e toda uma estrutura de apoio ao turismo como hotéis, restaurantes e outros atrativos turísticos, o país também precisaria vencer a desconfiança de ambos países ocidentais e do Oriente Médio (Financial Times, 2017), como os Emirados Árabes Unidos, concorrente regional da indústria de turismo e eventos. O sucesso nessa tarefa permitiria ao Catar o seu soft power.

No entanto, a sociedade Catari está neste momento tendo que lidar com várias demandas como direitos humanos, direitos dos migrantes, direitos LGBTQIA+ e direitos das mulheres (Henderson, 2014).

Junto com a estratégia de grandes investimentos internos e externos desde 2006, quando o Catar sediou os Jogos Asiáticos, o país vem apostando no turismo de eventos como um dos maiores promotores da imagem de seu destino.

Ao longo dos anos, o país tornou-se referência regional para eventos corporativos e de lazer como conferências, feiras temáticas, festivais, além, é claro, de competições esportivas. Além do direito de sediar a Copa do Mundo de 2022 e a Copa Árabe de 2021, nos últimos anos o país também teve outras experiências como o Mundial de Natação (2014), Mundial de Handebol (2015), Mundial de Ciclismo de Estrada (2016), e a Copa do Mundo de Ginástica (2018), além de fazer parte do circuito Mundial de Tênis, Golfe e MotoGP todos os anos. Até março de 2022, o Catar tinha 87 anúncios ativos para eventos internacionais ocorridos entre 2021 e 2022 em seu site oficial.

A estratégia de atrair atletas estrangeiros para nacionalização e para competir pelo país está sendo visto por outros países como falta de fair play. No campo esportivo, a estratégia de naturalização é muito utilizada, metade da seleção de futebol do Catar não nasceu no Catar.

Com a Copa do Mundo se aproximando em 2022, os olhos do mundo, e principalmente do Ocidente, continuam voltados para o Catar. Apesar de todos os esforços do país para modernizar sua sociedade (Human Dignity Trust, 2022), várias incertezas e desconfianças ainda pairam sobre a forma como o Catar (e a região) tem lidado com questões sensíveis de direitos humanos, que afetam diretamente alguns dos objetivos da ONU 2030 Objetivos de Desenvolvimento, especialmente no que diz respeito aos princípios que falam sobre pobreza, saúde e bem-estar social, igualdade de gênero, condições de trabalho, desigualdade social e justiça e instituições — questões que ainda têm muito a evoluir no país (Griffin, 2017).

Se pensarmos nas instituições do Catar, o primeiro contraste é o regime de governo não democrático que existe no país. Além disso, vários avanços ainda precisam ser vistos em questões como os direitos das “minorias” como igualdade de gênero, criminalização da comunidade LGBTQIA+, direitos trabalhistas dos trabalhadores migrantes. Apesar de ser um país muito rico, ainda é possível observar pobreza comparativa no Catar devido às desigualdades. Isso pode ser dito porque existem diferenças significativas entre os salários dos trabalhadores migrantes (mais de 90% da força de trabalho) e os nacionais do Catar (cerca de 10% da população, mas detentores da maior riqueza).

O Sistema Kafala de trabalho é considerado pelo Human Right Watch como escravidão moderna, os cataris são altamente dependentes dessa força de trabalho estrangeira para promover suas transformações desenvolvimentistas. Os trabalhadores veem principalmente dos países mais pobres do sul da Ásia, como Índia, Nepal, Filipinas, Bangladesh, Siri Lanka e Paquistão, muitos desses trabalhadores deixam suas casas e famílias em busca de melhores rendas e oportunidades de trabalho no campo doméstico ou na construção. No entanto, o sistema trabalhista do país, conhecido como Kafala, ou regime de patrocínio, é baseado principalmente no acordo contratual entre empregador e empregado. Segundo a Organização Internacional do Trabalho, um dos principais problemas do regime, introduzido pelas autoridades coloniais britânicas na década de 1950 é o fato de transferir para o empregador responsabilidades que normalmente são papel do governo. Em Reportagem do The Guardian em 2021 descobriu-se que cerca de 6.500 pessoas morreram nas obras da Copa, para fins de comparação tivemos 2 mortes na Africa do Sul, 10 mortes no Brasi, 60 mortes na Rússia.




Considerações Finais: FIFA 2.0 “The Empire Strikes Back”

Em outubro de 2016 a FIFA anunciou um pacote de reforma histórico que inaugurou uma nova era de governança global do futebol conhecida como FIFA 2.0. Apesar de décadas de lucratividade para seu evento mais visível, a liderança da FIFA estava sob intenso escrutínio após os escândalos de corrupção e suborno.

Ao selecionar a candidatura United 2026 (EUA, Canadá e México), a FIFA aparentemente foi além do expansionismo de mercado e das estratégias de redesenvolvimento urbano, buscando, em vez disso grandes conglomerados globais como o NAFTA (Ternes, Beissel, 2022).

Demonstrando o Fim de uma Era, a dos megaeventos esportivos em Nações Periféricas. Agora serão conglomerados econômicos e não mais Estados-Nação que irão promover os eventos.

A FIFA tinha como principal estratégia, antes da mudança para FIFA 2.0, explorar os valores materiais e simbólicos e criar um place branding para isso era preciso criar novos estádios e mudanças urbanas. Agora seu mercado é trading in luxury goods.

Com a marca United vende-se valores do mundo da vida como unidade global, paz, e diplomacia, consolidando a FIFA dentro do Sistema Dinheiro Mundial.

Atualmente, há poucos estudos sobre este place e trade da FIFA, os pesquisadores precisam analisar o impacto que a transição para FIFA 2.0 pode ter na organização, no jogo de futebol e nas relações transnacionais. Acredito ser importante para área conceituar a resposta da FIFA às crises, especificamente sua decisão de reestruturar seus objetivos organizacionais e modelo de negócios sob o rótulo FIFA 2.0.




Referências

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