Cadernos PROMUSPP, São Paulo, v.2 n.3, jul/set. 2022



SEGREGAÇÃO E INJUSTIÇA ESPACIAL
NA FORMAÇÃO DE CIDADES




> Enrique Grünspan Staschower: Arquiteto, Mestre em Filosofia IEB/USP, doutorando em Mudança Social e Participação Política pela EACH/USP. Docente Pesquisador do Centro Universitário Fundação Santo André e Universidade Anhanguera. Membro do Conselho Municipal de Política Urbana (CMPU) e Conselho Municipal de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arquitetônico, Urbanístico e Paisagístico de Santo André (COMDEPHAAPASA). https://orcid.org/0000-0002-7989-5155 - E-mail: estaschower@gmail.com



Resumo

Na perspectiva de estimular o debate sobre a construção de cidades, este Discussion Paper discute a formação das nossas cidades, enquanto reflexo espacializado da nossa sociedade. Objetiva-se a busca de alternativas capazes de superar o abismo da exclusão, da hierarquização e da espoliação urbana, enquanto sequelas colonialistas, que se expressam através de descontinuidades, segregações e injustiças sociais. Fundamentam-se os conceitos de segregação e injustiça espacial através de diversas fontes de pensadores. A partir da narrativa histórica da evolução urbana, baseada nos processos de industrialização, valemo-nos do diálogo entre os teóricos Flávio Villaça e Lúcio Kowarick, para questionar as perspectivas de remediação propostas nas regulações da gestão urbana, presentes nas legislações Federais e Municipais, de forma a promover equidade de representação e acesso espacial.

Palavras-chave: Segregação, Injustiça Espacial, Indústria, Espoliação


Abstract

To stimulate the debate on the construction of cities, this Discussion Paper discusses the formation of our cities, as a spatialized reflection of our society. The objective is to search for alternatives capable of overcoming the abyss of exclusion, hierarchy and urban spoliation, as colonialist sequels, which are expressed through discontinuities, segregations, and social injustices. The concepts of segregation and spatial injustice are based on different sources of thinkers. From the historical narrative of urban evolution, based on industrialization processes, we make use of the dialogue between the theorists Flávio Villaça and Lúcio Kowarick, to question the perspectives of remediation proposed in the regulations of urban management, present in Federal and Municipal legislation, of in order to promote equity of representation and spatial access.

Keywords: Segregation, Spatial Injustice, Industry, Dispossession.

Resumen

Con la finalidad de estimular el debate sobre la construcción de ciudades, este Discussion Paper discute la formación de nuestras ciudades, como un reflejo espacializado de nuestra sociedad. El objetivo es buscar alternativas capaces de superar el abismo de la exclusión, la jerarquización y el despojo urbano, como secuelas colonialistas, que se expresan a través de las discontinuidades, la segregación y la injusticia social. Los conceptos de segregación e injusticia espacial se basan en diferentes fuentes de pensadores. A partir de la narrativa histórica de la evolución urbana, a partir de los procesos de industrialización, utilizamos el diálogo entre los teóricos Flávio Villaça y Lúcio Kowarick, para cuestionar las perspectivas de remediación propuestas en las normas de gestión urbana, presentes en la legislación Federal y Municipal, de con el fin de promover la equidad de representación y acceso espacial.

Palabras llave: Segregación, Injusticia Espacial, Industria, Despojo.




Introdução

Podemos entender que grande parte das cidades brasileiras poderiam ser, a priori, descritas formalmente como descontínuas, desiguais e fragmentadas; elas apresentam-se esparsas distanciando trabalho e moradia, obrigando seus habitantes a deslocamentos diários, consumindo saúde, dinheiro e energias - principalmente daqueles que pouco as dispõem. Essas cidades apresentam-se divididas e injustas, expressas através de segregações e injustiças sociais e territoriais.

Nossas cidades conformam-se em lógicas de aglomeração – expressas em centralidades plenamente atendidas, plenas de estruturas e tecnologias, porém, com baixa densidade populacional – que se contrapõem às lógicas de dispersão - com baixa densidade de oferta de infraestruturas e equipamentos urbanos, com alta densidade populacional. Conforma-se um modelo centro - periferia, que não se dá somente na esfera geográfica, mas nas diversas manifestações, práticas e nos desequilíbrios sociais, econômicos e culturais, que se manifestam na conformação urbana. (BRENNER, 2018)

Trata-se, ora por aqui, de abrir, através deste texto, uma discussão1 sobre as possibilidades de superação dos processos de segregação e injustiça espacial, presentes nas cidades brasileiras, constituídos em práticas político-culturais, impostas através do aparato estatal, que representam a preponderância de um grupo hegemônico que busca esconder, suprimir, cancelar ou marginalizar a representação espacial de grupos subalternos.

1 Um “Discussion Paper” caracteriza-se por conter uma análise preliminar sobre um tema em desenvolvimento, permitindo e subsidiando uma discussão acadêmica entre pares..




Fundamentação

Consideramos que a ação formadora ou construtiva das cidades, não poderá ser condicionada à ação pública do Estado, que não atuará como ente público, mas enquanto representante da elite que a conforma, a partir dos interesses do capital que a sustenta. Conforma-se assim, a atuação de um dos seus agentes espaciais, o mercado imobiliário, enquanto produtor de espaços urbanos, na sua ação enquanto Aparelho Ideológico do Estado, exercendo de forma sustentável, o poder do Estado, visando a preservação da hegemonia daqueles que o representam. (Motta, Serra. 2014; Alves, 2010; Althusser, 1974)

Enquanto o poder público exerce sua ação, na atuação e gestão dos seus representantes de classe, o mercado imobiliário lhe daria suporte promovendo espacialmente sua superioridade e hegemonia, através da obstrução e segregação das classes periféricas, de maneira a impor sua cultura de harmonia espacial, consolidando-se territorialmente pelos privilégios.

No modelo de capitalismo periférico, onde o Brasil se insere, submetendo-se ao capitalismo central, baseado no sistema mundo de disputas por hegemonias, através de transferências desiguais. Entretanto, no Brasil, esta distribuição desigual, agrava-se quando seus aparelhos ideológicos, apesar de se apresentar como modernos e verdadeiramente democráticos, ainda preservam um forte viés colonial, escravista e patrimonialista, quando seus mecanismos de exploração das classes subalternas, formam um continuum desde a colônia e império, reapropriados na implantação da industrialização, ao início do séc. XX .

Desta maneira, o Estado brasileiro, através da atuação da burguesia, conforma-se, simbólica e efetivamente, como agente garantidor de privilégios, expressos através da máquina pública, em arranjos institucionais, administrativos, normativos, legislações, atribuições ou parcerias, capazes de manter negócios e perpetuar a desigualdade, a segregação e a espoliação nas cidades. (Fernandes, 2006).




Desenvolvimento histórico

A início do séc. XX, o processo de urbanização brasileira acelera, de modo que, hoje, ao início do séc. XXI, nossas cidades acolhem quase 80% da população brasileira. Este processo decorre de uma concentração urbana, promovida por uma industrialização, ainda que de início tardio, se comparada aos países europeus, que a deflagraram quase uma centena de anos antes. Entretanto, a característica de implantação desta primeira fase de industrialização se fará pela inserção da experiência no comércio, adquirida por uma aristocracia agrária ao longo do séc. XIX, permitindo-lhe um “entesouramento” capitalista, que seria aplicado neste novo meio de produção. (Fernandes, 2066)

A indústria, definiu como a sociedade se apropria da natureza e, consequentemente, conforma o meio ambiente através dos seus critérios de abastecimento, produção e consumo, enquanto fiadora de um desenvolvimento, baseado na racionalização do trabalho, dos espaços, das sociabilizações e, que culminaram, na segregação espacial urbana.

Este processo de industrialização, que segundo Ferreira (2005) é uma “industrialização de baixos salários”, promove segundo Maricato (1996 e 2000) a “urbanização com baixos salários”, onde as contradições da forma de trabalho, originárias do processo colonial se aprofundaram, na dominação advinda do trabalho escravo.

Outra forma de segregação se dava impedindo o acesso e compra de terra, para pobres, escravos e imigrantes, mesmo em pequenas frações de terra, como consequência da Lei de Terras de 1850, que sobre valorava terras devolutas, buscavam afastar a possibilidade de trabalho agrícola independente. (Christillino, 2006)

Na atual Região Metropolitana de São Paulo, formaram-se indústrias verticalizadas, ao final do séc. XIX e nas primeiras décadas do séc. XX, implantadas em amplas áreas, congregavam no mesmo espaço todas as etapas produtivas, desde insumos, produção, embalagens, energia e aproveitamento de subprodutos. A sua apropriação e submissão de espaços, dependia da linha férrea, dos cursos d’água; porém, mais ainda, necessitava de mão de obra barata e excedente – que orbitava as fábricas em vilas operárias, loteamentos recém-abertos e residências autoconstruídas, à espera de equipamentos urbanos de saúde, educação, cultura, lazer, transporte etc., a ser providos em futuro – aprofundava-se a divisão social do trabalho, herdada do modelo agroexportador colonial, somando-se a ela a segregação territorial entre uma cidade legal e outra ilegal. (Staschower, 2019)

Sucede, a esta fase inicial da industrialização, um modelo de produção industrial integrador, onde indústrias em rede sustentam uma indústria “montadora de partes”, baseada em multinacionais - a indústria automobilística. Forma-se a aliança de interesses entre o capital internacional e capitalista nacional – este contato entre diversos exporá uma democracia restrita, onde as benesses são distribuídas em benefícios de poucos privilegiados, articulados frente à sujeição às economias centrais, buscando se equilibrar e relativizando suas vantagens. A busca deste equilíbrio, através da desorganização das classes subalternas, não permitirá a completude modernizadora de uma democracia plena. (Limoeiro-Cardoso, 1985)

Nesta segunda fase da industrialização, aqueles espaços e equipamentos fundamentais à instalação da sua primeira fase, como córregos e linhas férreas, são abandonados – como consequência, o transporte ferroviário é sucateado e córregos tamponados - submetem-se ao novo modelo de transporte, cuja lógica de uso baseia-se em uma mobilidade egoísta abastecida por combustíveis fósseis. Reforça-se, nesta nova lógica, a localização das indústrias, às margens de autopistas e rodovias, para assim reforçar e reproduzir seu modelo de mobilidade, na necessidade constante de deslocamentos sobre pneumáticos, para abastecê-las, operá-las e administrá-las.

Implanta-se também um modelo de deslocamento, priorizando, na cidade de São Paulo, avenidas radiais, assentadas sobre fundos de vale, já que seus custos de desapropriação e instalação seriam irrisórios, se comparados à implantação de avenidas sobre áreas perenes, com edificações consolidadas, abastecidas de infraestruturas, equipamentos urbanos e serviços. Estes córregos, seus vales e suas vertentes conformavam áreas inundáveis ou de risco, abrigando classes subalternas, sem acesso ao mercado de moradias, conformando uma vida “à margem” – afastados da dinâmica urbana, sob a pressão do capital imobiliário que atende seus interesses às áreas nobres e valorizadas. As parcas alternativas, oferecidas do Estado, a esta população deslocada, configura uma segregação, legitimadora da exclusão, já que consolida o lugar dos ricos e dos pobres na cidade. (Burnett, 2008)

Este modelo segregacionista e rodoviarista de cidade, onde o fluxo hegemônico e contínuo de veículos sobrepõe-se ao deslocamento de um volume cada vez maior de habitantes. Assim retroalimenta-se a ilegalidade, quando a cidade atrai novos moradores, com a promessa de empregos, porém sem alternativas de acesso à moradia legal, oferece-lhes oportunidades de espaços à margem, porém próximos a estes empregos. Desta forma, os encortiçados, periferizados ou favelados submetem-se à moradia de risco – em áreas, que, de momento, não despertam interesse em um mercado imobiliário, ancorado na reprodução especulativa de seu “banco de terrenos”, já que seus interesses são cíclicos, por conta da dinâmica dos “booms habitacionais” que se dá em soluços de repetição periódica. (Burnett, 2008)

Soma-se à precarização urbana, também, o aprofundamento das desigualdades históricas no acesso à renda, à educação e à saúde, expressas em trabalhos temporários e degradantes, tornando a sobrevivência um desafio constante, à procura de saneamento básico e transporte. Estas desigualdades, características do capitalismo periférico, torna impossível uma democracia plena – que oscila em busca de uma autocracia ou ditadura. (Fernandes, 2006)

A ação do Estado, durante o período da ditadura militar, se dá pela instalação de conjuntos habitacionais de baixo custo nas periferias. Estes conjuntos adequam-se ao modelo do capitalismo brasileiro, por manter um “estoque” precarizados de operários, mantendo baixos os valores de reprodução da força de trabalho. Assim, ao relegar os encortiçados e favelizados às periferias da cidade, em terrenos baratos, onde extensos e monótonos edifícios compartimentados, exigem desgastantes deslocamentos moradia-trabalho, reproduzem, despersonalizado, o modelo industrial de produção em série.

Exemplos destes Conjuntos Habitacionais, como a Cidade Tiradentes, iniciada na década de 1970, no limite Leste da cidade, com cerca de 40.000 unidades, produzidas e financiadas pelo BNH (Banco Nacional da Habitação), criado em 1964, que a partir de 1966 seria o único gestor do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço), como contribuição compulsória dos salários, em substituição à estabilidade de emprego. Entende-se assim, que a moradia de baixa renda dependeria da rotatividade de empregos, culminando por estimular a superexploração de salários, promovendo e aprofundando ainda mais as desigualdades.

Desta forma, a ação estatal minimizará pressões sobre as áreas legalizadas da cidade, com suas edificações consolidadas, abastecidas de todas as infraestruturas, equipamentos urbanos e serviços, mantendo a grande massa de trabalhadores distantes de qualidades, não somente da moradia, mas dos empregos, do lazer, da educação, da saúde e de uma urbanidade. O Estado demonstra-se frágil e distanciado das demandas sociais, priorizando as soluções requeridas pelo capital, transformando necessidades básicas em produtos comercializáveis pelo mercado – desequilíbrios fomentados através da distribuição e apropriação de infraestruturas e serviços.




Argumentação teórica

Este desequilíbrio entre as ofertas de infraestruturas e serviços urbanos, caracteriza um modelo de segregação urbana, que não se dá por uma disputa de localizações, mas um enfrentamento de classes, assim definido por Flávio Villaça (2001) como o promotor da segregação de classes sociais, onde as classes dominantes se concentram em determinadas áreas da cidade controlando a sua forma e estrutura através de mecanismos:

A lógica da desigualdade acentua-se no controle do tempo, no sistema de transportes, considerado por Villaça como “o mais importante fator explicativo da organização do espaço urbano e do papel da dominação social que se processa por meio dele” (Villaça, 2011 p.53). Portanto, para o autor, a mobilidade reforça a injustiça espacial ao produzir a periferização precária da população, no espraiamento do espaço urbano, com carências de infraestruturas, em um modelo rodoviarista excludente, apoiada na aliança do poder público à especulação imobiliária, capaz de produzir loteamentos clandestinos ou irregulares; glebas ocupadas sem planejamento; habitações precárias na periferia; cortiços e favelas que, se instaladas em encostas e fundos de vale, transformam-se em áreas de risco sanitário e ambiental – somando-se à degradação social.

Entretanto, a metodologia analítica de Villaça (2011), que observa as relações espaciais, onde se concentram áreas de pobreza ou riqueza, conformam a espacialização da economia, capaz de superar a dicotomia clássica de centro-periferia, não explica de per si os modelos econômicos promotores.

Portanto, complementa-se, aqui, uma análise dos espaços de trabalho e convivência, enquanto promotores de desgastes econômicos, que Lúcio Kowarick (1979) chamará de superexploração e espoliação, no âmbito de trabalho, emprego e renda, como consequência das injustiças e desigualdades urbanas.

Kowarick (1979) chama a atenção à participação do Estado enquanto promotor de infraestruturas que permitam gerar bens de consumo necessários à reprodução do trabalho, dentro do modelo de acumulação, por ele determinado. Desta forma, como consequência da ação do Estado, a conjunção da pauperização, decorrente da exploração do trabalho, com os excedentes de vastos contingentes sociais, somada à espoliação urbana, conformam:

“[...} somatória de extorsões que se opera através da inexistência ou precariedade de serviços de consumo coletivo que se apresentam como socialmente necessários em relação aos níveis de subsistência e que agudizam ainda mais a dilapidação que se realiza no âmbito das relações de trabalho.” (Kowarick, 1979 p. 59)

Conforma-se, assim, um modelo excludente de acesso aos benefícios, que, conforme vimos anteriormente, transparecem no acesso à moradia de interesse social, que, construídas para prover lucro aos seus construtores, mesmo com financiamentos, não alcançam aqueles que precisam sair das condições mínimas de habitabilidade presentes nos cortiços, favelas ou ocupações.

Como resultado, reproduz-se a exclusão quando grande parte da população convive em uma informalidade ou ilegalidade, de trabalho e moradia - agravada durante a pandemia de COVID-19 - morando em favelas, com precárias instalações sanitárias, demonstrando a persistência de uma sociedade incapaz de superar as contradições coloniais, já que a maioria dos informais / ilegais são negros, pardos, mestiços ou indígenas. A ausência de tratamento isonômico por parte dos administradores e órgãos públicos denota a segregação e racismo ambiental. Conforma-se a banalidade burocrática do mal (Arendt, 1999).

A ação do Estado, enquanto legitimador das ações do capital, do capitalismo periférico e neo-liberalizante, também se apresenta como garantidor dos interesses destes representantes econômicos, que, segundo complementa Matheus Santos, busca:

“arranjos institucionais e administrativos, relações sociais, processos de produção e de trabalho e, principalmente, a elaboração de concepções mentais do mundo que possibilitam uma relação harmoniosa dos superexplorados, com o Estado e exploradores e a recepção amistosa dessas organizações privadas multinacionais.” (Santos, 2018 p. 30)

Entende-se que tanto Villaça, como Kowarick atribuem ao Estado responsabilidade pelas ações de segregação e espoliação, promovendo a injustiça espacial, através do suporte à atribuição de infraestruturas, organização dos modelos de deslocamento e pela localização das moradias para as classes subalternas. Através de uma disseminação de ideologia capaz de estabelecer a ordem social que normalize estas ações, de forma a manter as formas de acumulação e circulação do capital.

Assim, a desigualdade promovida traduz-se em uma latente violência cotidiana, onde os espaços urbanos retratam uma sociedade baseada na persistência dos valores patriarcais, herdados do escravismo, promovendo o clientelismo autoritário, de um Estado, arbitrário, que não é capaz de prover valores democráticos nas suas ações, tratando as classes subalternas como sub-cidadãos. (Kowarick, 2000)

O contexto nacional reflete as ações internacionais neoliberais do início do séc. XXI, em sequência à abertura econômica da década anterior, sob o Consenso de Washington, que levaram ao avanço das privatizações e desregulamentações de programas sociais e estratégicos, somados à reestruturação produtiva, criaram a necessidade de buscar nos gestores públicos soluções às grandes contradições e vazios urbanos - consequências da reestrutura urbana -capturando-os à retórica neoliberal de competitividade. Assim, instala-se a disputa de novos modelos de negócio, capazes de tornar as cidades atrativas ao capitalismo globalizado – articulando administração pública, sociedade civil e capital, de modo a potencializar sua concorrência na captura de investimentos globais. (Castells & Borja, 1996)

Cabe discutir estas ações nas cidades do Brasil, quando a visão neo-liberalizante do empresariamento da gestão urbana se une à ideologia elitista do mercado imobiliário, expresso na busca de lucro a qualquer custo, aliando-se ao Estado na produção de infraestruturas, fazendo-se valer desta associação para valorizar o solo urbano – mormente em sistemas viários que privilegiem o deslocamento individual, ou na escolha e localização das linhas e estações do Metrô (no caso de São Paulo). Assim, criam-se áreas supra valoradas urbanas, hierarquizando bairros em enclaves condominiais, centros de compras ou condomínios clube. Desta forma, a perversa lógica da valoração do solo urbano aprofunda os abismos da injustiça espacial, através da exclusão, hierarquização, espoliação e segregação.

Fica evidente a relação nefasta que se reproduz na fratura social e na segregação socioespacial – que já se antevia, no último quartel do séc. XX, quando em diversos círculos profissionais e políticos surgem discussões para a criação de uma Política de Desenvolvimento Urbano. Estas discussões progrediram, sendo levadas à Assembleia Constituinte, culminando pela inserção na Constituição Federal de 1988, através dos artigos 182 e 183, buscando diretrizes de uma possível política urbana, fundamentada no Bem Coletivo, na Segurança, no Bem-estar e no Equilíbrio Ambiental – ou seja, garantindo a Função Social das cidades para atender: Moradia, Circulação, Lazer e Trabalho.

Porém, os dois artigos, não conformam uma ação política por parte dos municípios, portanto seria necessário regulamentar os preceitos constitucionais, de forma a atender as funções sociais. Assim, em 10 de julho de 2001, promulga-se a Lei Federal 10.257 - Estatuto da Cidade.

Este primordial instrumento de gestão urbana, debruça-se sobre uma política de desenvolvimento, expansão urbana e de gestão da cidade (criada no Estatuto da Cidade) através do Plano Diretor - onde as regulações da gestão urbana sobre a propriedade e destinação da terra urbana, não edificada, subutilizada ou não-utilizada, de modo a cumprir a função social da cidade – constante no art. 39:

“...a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no Plano Diretor, assegurando o atendimento das necessidades quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas”. (BRASIL, 2001 LF 10.527 – EC - negrito nosso)

O Plano Diretor torna-se, a partir daí, em uma obrigação para municípios acima de 20 mil habitantes. No entanto, sua formulação deve se dar de forma participativa:

“gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano” (BRASIL, 2001 LF 10.527 – EC, Artigo 2º, II- negrito nosso)

pretendia-se que, através dele, romper-se-iam as políticas urbanas anteriores, cujo padrão era tecnocraticamente centralizador, realizado por técnicos, incorporadores, construtores e proprietários de terras somando, elaborando extensos planos cujo teor tecnocrático alienava novos atores, interesses renovadores e amplas agendas.

Dessa forma, o Plano Diretor toma um caráter renovador, devido às expectativas de reformulação de políticas públicas de forma a torná-lo participativo e capaz de transformações inclusivas nas cidades, acima de 20.000 habitantes – atribuindo à sociedade civil um poder reivindicatório de participação e transformação.

Entretanto, surge uma falsa ilusão do Plano Diretor, enquanto “tábua de salvação” ou “messias urbano” conforme é apontado por Villaça (2005), nas suas observações na elaboração do PD de São Paulo em 2004, criticado como “a salvação da cidade” (p. 13), capaz de “intervir em tudo, reparar tudo, sem qualquer seletividade” (p. 23). Estas críticas fundamentam-se em um extenso levantamento empírico, onde o autor, acompanhando o processo participativo em subprefeituras do setor sudoeste da cidade e nos extremos leste e oeste da cidade, constata a escassa participação popular e dificuldade de superação das diferenças entre setores políticos, técnicos e subalternos. Villaça constata as restrições e desestímulo na participação popular por membros que não dominam os termos técnicos ou jurídicos apresentados - tanto na legislação, como nos debates, dentro das audiências públicas, que são partes imprescindíveis à formulação, antes da apreciação pelas Câmaras Municipais.

Entretanto, Villaça (2005) verifica, durante seu estudo, uma baixa participação nas audiências, com um máximo de 50 pessoas, assim transformando-as em mera formalidade. Atribui este desinteresse e alheamento às práticas sociais de apagamento e exclusão. Caberia a argumentação, que estas práticas, apontam as classes hegemônicas atuando enquanto Aparelho Ideológico do Estado, com pressões sobre o Legislativo Municipal, sobre o Executivo, através da imprensa – a ponto de o autor concluir : “os debates públicos seriam apenas a ponta do iceberg, ou seja, o que não aparece é muito maior do que aquilo que aparece” (p 50). Para finalizar :

“Em termos relativos os debates públicos em torno do Plano Diretor representam um avanço democrático muito pequeno. Em primeiro lugar porque, como antigamente havia pouquíssima participação popular, diante de um zero, qualquer crescimento é infinito. Em segundo, porque em termos de pressão política sobre os governantes, a da minoria foi enorme e a da maioria foi limitadíssima” (Villaça, 2005 p.53)

Ainda, destaca Villaça (2005), a participação das “empreiteiras” como grupo de interesse na apresentação de projetos (imobiliários, viários etc.), representadas pelo SECOVI2, de forma a inserir obras de seu interesse nos planos:

2 Sindicato das Empresas de Compra, Venda, Locação e Administração de Imóveis Residenciais e Comerciais de São Paulo. Intitula-se “o maior sindicato do mercado imobiliário da América Latina” “faz história desde 1946 e cumpre seu compromisso com o Estado de São Paulo por meio do desenvolvimento do setor urbano ao lado de parceiros públicos, corporativos e da grande mídia. É por isso que sua atuação é tão forte em questões como melhorar a oferta de moradia, trabalho, emprego, lazer e segurança.” https://www.secovi.com.br/ <acesso em 13 out. 2022

“[...] as pessoas que têm amigos no governo (e não são os pobres) são recebidas pelo governo, mostram “...seus projetos, as possibilidades de financiamentos internos e externos e conseguem convencer o governo que os projetos são prioritários... eles convencem que a obra tem de ser feita, inclusive levam o financiamento embutido”” (Villaça, 2005 p. 53)

Dentro deste mesmo sentido, mas não menos especulativa, ao usar grandes quantidades de capital financeiro do setor imobiliário, sob diversas formas, o uso de grandes áreas para a construção de “megaprojetos” (centros de distribuição ou empresariais, shopping centers, condomínios clube residenciais, arenas desportivas, megaeventos musicais, etc.) demandam a participação do Estado para a concretização desses empreendimentos, seja provendo infraestruturas especializadas, seja provendo sistemas viários ou mesmo desregulações tributárias para sua viabilização. A espetacularização das cidades, através destes megaprojetos permite aos administradores atuarem como facilitadores de investimentos privados, seja no âmbito local, seja na busca de competitividade internacional, reforçando a atratividade da cidade, para um modelo de parceria público-privada, tendo como objetivo político e econômico imediato de empreendimentos imobiliários pontuais e especulativos. (Harvey, 1996).




Perspectivas em discussão

Sob a óptica de uma reestruturação produtiva, com o empresariamento da gestão urbana, através de práticas administrativas, como Parcerias Público Privadas, Financeirização de Espaços Públicos etc., caracterizando um modelo urbano que busca integrar-se à competitividade empresarial, onde a atração de financiamentos externos capacita a geração de empregos e torna a cidade atrativa para um desenvolvimento capitalista interurbano, de modo a permitir que os governos e a administração urbana desempenhem um papel de mediação junto ao capital privado e a seus interesses estratégicos do desenvolvimento capitalista, em um viés neoliberal, onde um “capital flexível” flexibiliza legislações e regulações, como um empreendedorismo competitivo que, segundo Moura, trata-se de:Segundo Badi (2012, p. 91):

“um movimento de redefinição no papel e atuação dos governos locais, com a ênfase dada ao desenvolvimento de vantagens comparativas e à busca de uma maior eficiência da gestão urbana, visando à integração competitiva no mercado global.” (Moura, 1997, p.1761)

Ainda poderemos ter cidades equitativas e justas? Quando o espaço urbano deixará de reproduzir desigualdades? Como equalizar ações das classes hegemônicas estimulando a ampla participação subalterna?

Talvez tenhamos de reconhecer a necessidade de uma transformação – conscientemente - onde os resultados não serão imediatos. Teremos de rever a produção da cidade, considerando contenções às forças antagônicas às equidades e promotoras dos apagamentos, das exclusões e injustiças, atuando em “escovadas a contrapelo”3.

3 Conceito adotado por Walter Benjamin em “Tesis de filosofía de la história –Discursos interrompidos I”. 1940. Onde sugere a reescrita da história através do olhar da classe operária, como se a escovássemos a contrapelo (gegen den Strich)

Nesta transformação consciente, tomamos as palavras de Simionatto: “Há que se reconhecer que esse é um processo ... que exige persistência e pressão advindas do contrapoder popular.” (Simionatto, 2009 p.48)

A título de sumário, retomamos as abordagens de Villaça, na responsabilidade do Estado, enquanto promotor da segregação, através da desigualdade econômica e do exercício unilateral do poder político, expressos nas relações espaciais, que espacializam a economia na cidade. Somando-as às visões de Kowarick sobre a exclusão social, que decorre da conjunção da pauperização e da exploração do trabalho, capazes de tratar classes subalternas como sub-cidadãos, através das ações arbitrárias do Estado - hoje desprovido dos valores democráticos plenos.

Cabe, através deste Discussion Paper, promover um espaço de debates sobre as possibilidades de superação dos processos de segregação e injustiça espacial, e sobre o uso dos instrumentos presentes na legislação, Federal e Municipal. Esperamos, através deste diálogo, encontrar formas capazes de superar o abismo da exclusão, da hierarquização e da espoliação urbana – sequela da herança colonial, escravista e patrimonialista, que reverbera até o presente.




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