Cadernos PROMUSPP, São Paulo, v.2 n.3, jul/set. 2022



Descolonização e continuidade do predomínio dos interesses econômicos ocidentais em África: os casos da atual Líbia e da atual República Democrática do Congo.




> Felipe Antonio Honorato: Doutorando em Mudança Social e Participação Política pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP). É pesquisador no Grupo de Estudos e Pesquisa em História Oral e Memória (GEPHOM / EACH - USP). ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3732-6533



Resumo

Após o processo de roedura, o continente africano se viu quase que totalmente dominado pelo capitalismo imperialista colonial, comandado principalmente pelas grandes potências coloniais da Europa Ocidental. A Segunda Guerra Mundial foi um marco importante para o desencadeamento dos diversos movimentos de independência que aconteceram em África durante o curso da segunda metade do século XX; a descolonização, que significou a obtenção de independência política por povos que até então ocupavam territórios coloniais, em sua maioria, no entanto, não significou a obtenção, também, de independência econômica perante o ocidente. Este trabalho objetiva, através de uma revisão bibliográfica, investigar dois processos específicos de descolonização em África que acabaram por significar a continuidade do predomínio dos interesses econômicos ocidentais: as independências da atual Líbia e da atual República Democrática do Congo (RDC).

Palavras-chave: República Democrática do Congo; Líbia; Descolonização afro-asiática; África; Neocolonialismo.


Abstract

After the gnawing process, the African continent found itself almost totally dominated by the colonial imperialist capitalism, commanded mainly by the great colonial powers of Western Europe. The Second World War was an important milestone for the triggering of the various independence movements that took place in Africa during the course of the second half of the 20th century; decolonization, which meant the attainment of political independence by peoples who had hitherto occupied colonial territories, for the most part, however, did not also meant the attainment of economic independence from the West. This work aims, through a bibliographic review, to investigate two specific processes of decolonization in Africa that ended up signifying the continuity of the predominance of western economic interests: the independence of present-day Libya and the present-day Democratic Republic of Congo (DRC).

Keywords: Democratic Republic of Congo; Libya; Afro-Asian decolonization; Africa; Neocolonialism.

Resumen

Después del proceso de roer, el continente africano se encontró casi totalmente dominado por el capitalismo imperialista colonial, comandado principalmente por las grandes potencias coloniales de Europa Occidental. La Segunda Guerra Mundial fue un hito importante en el detonante de los distintos movimientos independentistas que tuvieron lugar en África a lo largo de la segunda mitad del siglo XX; Sin embargo, la descolonización, que significó el logro de la independencia política de los pueblos que hasta entonces habían ocupado territorios coloniales, no significó también en su mayor parte el logro de la independencia económica de Occidente. Este trabajo pretende, a través de una revisión bibliográfica, indagar en dos procesos específicos de descolonización en África que acabaron significando la continuidad del predominio de los intereses económicos occidentales: la independencia de la actual Libia y la actual República Democrática del Congo (RDC).

Palabras llave: República Democrática del Congo; Libia; Descolonización afroasiática; África; Neocolonialismo.

Résumé

Après le processus de rongement, le continent africain s’est retrouvé presque totalement dominé par le capitalisme impérialiste colonial, commandé principalement par les grandes puissances coloniales d’Europe occidentale. La Seconde Guerre mondiale a été une étape importante dans le déclenchement des différents mouvements d’indépendance qui ont eu lieu en Afrique au cours de la seconde moitié du XXe siècle ; la décolonisation, qui signifiait l’accession à l’indépendance politique des peuples qui occupaient jusqu’alors les territoires coloniaux, ne signifiait cependant pas aussi, pour l’essentiel, l’accession à l’indépendance économique vis-à-vis de l’Occident. Ce travail vise, à travers une revue bibliographique, à investiguer deux processus spécifiques de décolonisation en Afrique qui ont fini par signifier la continuité de la prédominance des intérêts économiques occidentaux: l’indépendance de l’actuelle Libye et l’actuelle République Démocratique du Congo (RDC).

Mots-clés: République Démocratique du Congo; Libye; décolonisation afro-asiatique; Afrique; Néocolonialisme.




1. Introdução

O presente artigo tem como objetivo, através de uma revisão bibliográfica, investigar dois processos específicos de descolonização em África que acabaram por significar a continuidade do predomínio dos interesses econômicos ocidentais: as independências da atual da atual Líbia e da atual República Democrática do Congo (RDC). Ele combina dados parciais resultantes de dois projetos de pesquisa: “Líbia: uma análise do colonialismo presente na externalização de fronteiras praticada pela governança migratória da União Europeia”, desenvolvido durante minha participação no grupo de trabalho sobre migrantes e refugiados da rede de jovens pesquisadores da Cátedra Jean Monnet / FECAP, sob orientação do professor Cícero Krupp da Luz1; e “Le Soir, Le Monde, Folha de São Paulo: análise de abordagens sobre a diáspora congolesa”, tese de doutorado que estou elaborando como aluno do Programa de Pós-graduação em Mudança Social e Participação Política da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP), sob orientação da professora Valéria Barbosa de Magalhães.

1 As atividades da rede de jovens pesquisadores da Cátedra Jean Monnet / FECAP foram desenvolvidas entre 2020 e 2021.




2. Colonialismo: uma breve introdução

Como definiu Marc Ferro (2017), o colonialismo é uma doutrina política que nasce no século XVI, baseada na ocupação de terras estrangeiras por nações terceiras; para Mbuyi Kabunda Badi (2012, p. 91), ele é sinônimo de dominação política, exploração econômica e genocídio cultural. Tal doutrina política vai durar quase 500 anos, tendo o início de seu declínio sido marcado pelo fim da Segunda Guerra Mundial, quando começa o longo e heterogêneo processo de descolonização afro-asiático. É possível dividir este fenômeno de tão longa duração em 4 fases, sendo a primeira delas o colonialismo mercantil.

Em meados do século XVI há uma evolução nas técnicas de navegação que permitem ao europeu ir além da navegação de cabotagem: acontecem inovações importantes na aerodinâmica das velas dos barcos e o uma evolução considerável na cartografia - o mar é “inventariado” (Courtin, 1989); data deste momento histórico, também, a invenção da bússola (Ferro, 2017). A partir dessas inovações e desdobramentos políticos, econômicos e sociais específicos de cada país que se tornou uma potencial colonial neste momento histórico, há uma onda de anexações territoriais e grandes expedições marítimas que criarão grandes impérios coloniais, dando início ao colonialismo mercantil (Ferro, 2017).

O colonialismo mercantil dará origem a uma economia colonial que terá como seus pilares a escravidão e a exploração dos recursos dos territórios ocupados (Ferro, 2017). Nesta primeira fase do colonialismo, que vai do século XVI ao século XVIII, as áreas de ocupação estavam majoritariamente no dito “novo mundo”, as Américas (Honorato, 2020); haviam colônias em África e na Ásia, mas essas possessões, ao menos no caso africano, eram costeiras e de pequena extensão (Schwarcz & Gomes, 2019). As grandes potências mundiais eram, então, Portugal e Espanha, que detinham sob seu controle a maior parte destas terras estrangeiras ocupadas. As justificativas para subjugação de outros povos, não brancos, e para a ocupação, exploração e espoliação de terras além mar eram de ordem religiosa (Ferro, 2017) - acredita-se, por exemplo, que o negro não tinha alma.

A terceira fase do colonialismo será denominada capitalismo imperialista colonial, ou fase imperial do colonialismo. Ruy Moreira, discorrendo sobre o nascimento da geografia, traz que:

“As décadas finais do século XIX marcam a passagem do capitalismo à sua fase superior: o imperialismo. E o nascimento do imperialismo traduzir-se-á, no plano da política internacional, como uma intensa luta entre as potências imperialistas pela divisão dos continentes em zonas de influência. Dessa forma, a entrada do capitalismo em nova fase trará profundas transformações geográficas, no plano da realidade e, conseqüentemente, no plano do saber” (Moreira, 2009, p. 05).

Segundo Milani (2011, p. 10), “O período que se estende entre a segunda metade do século XIX e a Primeira Guerra Mundial de 1914 é o do Capitalismo Monopolista e o da expansão imperial”. Os países do centro do capitalismo passam, entre os séculos XVIII e XIX, pelas Revoluções Industriais. Fenômeno descrito por Celso Furtado (1966, p. 04) como “rápido e inusitado crescimento das forças produtivas”, serviu como alicerce para que a civilização europeia se tornasse a primeira civilização de âmbito mundial (Furtado, 1966). A ciência experimental, criada no próprio continente europeu na primeira metade do XVII, serviu como base para que uma grande quantidade de evoluções técnicas e tecnológicas fossem atingidas (Furtado, 1966), levando ao “inusitado crescimento das forças produtivas” que, por sua vez, impulsionou o capitalismo (Milani, 2011): neste período foi inventado, dentre outras coisas, o cimento Portland, a dinamite, o telégrafo e o barco a vapor (Milani, 2011).

As potências europeias, assim como os Estados Unidos da América e o Império Japonês, se viram na necessidade buscar novos mercados consumidores e novas fontes de matérias primas: agora se produzia mais, em menos tempo e se tinha uma capacidade maior de escoamento da produção (Hourani, 2021). A solução encontrada fora, então, a ocupação, exploração e espoliação de África e do sudeste asiático:

“Manter os povos não industrializados distantes da lógica da economia-mundo era perder uma fonte inesgotável de matéria-prima e trabalhadores braçais baratos. Mais do que isso, era excluir do consumo de excedentes e supérfluos, grande parte da população mundial” (Milani, 2011, p. 35)

Foi preciso mudar aquela relação equitativa, no campo diplomático, e estritamente comercial, que havia com África e com o sudeste asiático até então. Ruy Moreira, novamente, apresenta um fundamento que ilumina como se deu tal processo:

“A escalada imperialista não poderia ser mais bem organizada. Assim como o capital introduzira a ciência nos processos produtivos, na produção industrial em particular, incorpora-a agora também institucionalmente aos seus projetos de espoliação territorial em escala mundial” (Moreira, 2009, pp. 06-07)

Durante o século XIX, a presença europeia ocidental em África, que se restringia até então a pequenas provisões costeiras, caso já explicado anteriormente, foi, paulatinamente, se espalhando pelo interior do continente. Tal processo, “no qual regiões africanas foram progressivamente colocadas sob o controle direto ou indireto de alguma nação europeia” (Mariano, 2022), se acelerou a partir da década de 1880 (Mariano, 2022) e foi denominado, por Joseph Ki-zerbo, como processo de roedura (Sociedade em rede: o presente como história, 2021).

A roedura do continente africano foi impulsionada (i) pela expansão do capitalismo e o consequente crescimento do interesse dos europeus pela África, (ii) por uma série de invenções materializadas durante as revoluções industriais, e (iii) pelo descobrimento do potencial de navegação da bacia do Rio Congo por parte do ocidente (Wesseling, 1998).

Para ratificar oficialmente as fronteiras determinadas no longo processo de roedura, foi convocada a Conferência de Berlim, que aconteceu de novembro de 1884 a fevereiro de 1885.

Segundo Aline Barbosa Pereira Mariano (2022):

“Alemanha e França, de forma conjunta, decidiram previamente quais seriam os três pontos que iriam nortear os debates em Berlim: a liberdade de comércio na bacia e no estuário do rio Congo; a liberdade de navegação nos rios Congo e Níger; e as formalidades que deveriam ser cumpridas para que novas ocupações na costa da África fossem consideradas efetivas”

Ao fim da conferência, ficou decidido que as bacias dos rios Congo e Níger seriam de livre navegação, e que, para novas possessões ou protetorados, era obrigatório o envio, por parte do pleiteante, de notificação aos demais países signatários da ata, para viabilizar possíveis reivindicações (Mariano, 2022).

Se durante o período do capitalismo mercantil as justificativas para ocupação, exploração e espoliação de terras estrangeiras, e escravização de povos não brancos eram de ordem religiosa, agora, nesta nova fase do colonialismo, que abrange os séculos XIX e XX e recebe o nome de capitalismo imperialista colonial, segundo nomenclatura da africanista brasileira Leila Leite Hernandez (Barbosa, 2014), a ciência assume o papel da religião: primeiro, foi a geografia, através das sociedades geográficas, que de 1870 a 1920 viveram uma fase

“definida por um intuito de incorporar os conhecimentos acumulados e articulá-los num formato de tratamento metódico e analítico de cunho dominantemente de conquista, a partir de quando as atividades das Sociedades e os interesses de dominação imperialistas se encontram [...]” (Moreira, 2009, p. 07)

As sociedades geográficas, já nas últimas décadas do século XIX, entram em declínio: a geografia perdeu seu espaço dentro da logística colonial; isto por razão do ganho de prestígio científico da biologia, da etnografia e da antropologia, que passaram a fornecer, às grandes potências estrangeiras, teorias evolucionistas, de superioridade racial e cultural que justificavam seus “propósitos filantrópicos” de invadir terras estrangeiras e dominar populações autóctones para levar até eles “a civilização” (Moreira, 2009).

Se o período de expansão do capitalismo imperialista colonial se deu do fim do século XIX até o fim da Primeira Guerra Mundial, seu auge ocorre justamente entre o fim do primeiro conflito mundial e a Segunda Guerra Mundial.




3. O capitalismo imperialista colonial na atual Líbia

A Líbia é uma nação africana localizada no norte do continente. Seu território, a norte, é banhado pelo Mar Mediterrâneo e pelo Golfo de Sidra, e, nas demais direções, faz fronteira com Tunísia, Argélia, Níger, Chade, Sudão e Egito (Giordani & Borges, 2017). Porção preponderante do país se encontra no deserto do Saara (Lano, 2019), o que, segundo Giordani e Borges (2017), explica o fato de sua população de 6,5 milhões de habitantes estar concentrada no litoral. O clima é majoritariamente árido e semi-árido (Giordani & Borges, 2017); o território, em parte, é composto por terreno rochoso e arenoso (Lano, 2019), o que causa uma escassez de áreas férteis.

Quarto país mais extenso de África, a Líbia também possui a quarta maior reserva de petróleo do mundo (Giordani & Borges, 2017), tornando-se, então, a partir da década de 1950, uma nação estratégica que chamou a atenção de diversas potências internacionais.

Segundo Angela Lano (2019, pp. 135-136):

“O território da Líbia consiste em três áreas: Tripolitânia, Cirenaica e Fezzan; a Tripolitânia é formada pela fértil Esplanada do Jifara e pelo Jabal al-Nefusa; na parte oriental encontramos a Cirenaica e ao sul o Fezzan; quinhentos quilômetros de deserto conhecido como o de Sirte se alastram em direção à costa do Mediterrâneo, e por muito tempo representaram uma barreira que separava o país entre leste e oeste, fomentando regionalismos e divisões”

Ainda de acordo com a autora:

“[...] as tradições culturais e econômicas da Tripolitânia eram orientadas para a área ocidental do Magrebe, com a qual compartilhava sua história romana; a Cirenaica, como resultado da colonização grega, estava voltada para o leste; o Fezzan permaneceu um pequeno território seminômade pouco autônomo que interagia principalmente com a África subsaariana” (Lano, 2019, p. 136)

Tais citações evidenciam que: “[...] nos níveis geográfico, histórico, cultural e econômico”, cada uma das três regiões do país tem “laços, interesses e orientações diferentes, e muitas vezes opostos” (Lano, 2019, p. 136).

Em 1551, o Império Turco-Otomano invade e toma o que hoje se entende por Líbia (Giordani & Borges, 2017). A presença Turco-Otomana só vai terminar após a Primeira Guerra Mundial (Giordani & Borges, 2017), com o fim do Império Turco-Otomano, dando origem à Turquia contemporânea, e uma posterior divisão de seus antigos territórios entre as metrópoles coloniais. O processo de contração do território pelas potências europeias, no entanto, começa décadas antes.

Alemanha e Itália, países que haviam se unificado fazia pouco tempo, além da Bélgica, entraram no advento colonial tardiamente, tendo que ocupar os espaços no continente africano que as demais metrópoles coloniais ainda não haviam ocupado. Apesar de cercados por territórios coloniais franceses, as três unidades territoriais que atualmente formam a Líbia foram deixadas de lado pela França, e também pelo Reino Unido e os demais: o terreno desértico, que ainda não tinha tido suas riquezas minerais desveladas, não despertava o interesse de ninguém (Lano, 2019). A Itália unificada via o Mar Mediterrâneo como o “Mare Nostrum” dos tempos do Império Romano, e, para o espírito nacional italiano da época, por esta razão, existia um território no norte de África que, naturalmente, deveria ser italiano - a Tunísia (Lano, 2019). A Tunísia, no entanto, é ocupada, no início da década 1880, pela França; resta, então, ao colonialismo italiano, a atual Líbia (Lano, 2019). Assim sendo, este foi o caminho feito pelos italianos:

“Desde o final de 1881, [...] a Itália iniciou uma campanha diplomática para trazê-las sob seu controle, portanto foi iniciada uma política de reaproximação com a França, com a promessa que a Itália manteria distância dos territórios coloniais franceses, em troca de uma promessa equivalente da França em relação a Tripolitânia, Cirenaica e Fezzan. Foi o Banco de Roma a preparar uma “penetração pacífica”, expandindo seu controle sobre o comércio, a indústria, a agricultura e estabelecendo filiais em Trípoli, Benghazi, Misrata e outras cidades. A Líbia tornou-se a “Quarta sponda” italiana” (Lano, 2019, p. 138)

Com o fim da Primeira Guerra Mundial e o já citado esfacelamento do Império Turco-Otomano, a Itália formaliza seu controle sobre a Líbia (Giordani & Borges, 2017). Os italianos, no entanto, enfrentaram forte resistência à ocupação por parte de alguns grupos líbios no mínimo até o início da década de 1930 (Lano, 2019). Tal resistência foi organizada principalmente pelos Senussi. É da seguinte forma que Giordani e Borges (2017, p. 103) descrevem este grupo:

“[...] no século XIX, que emergiu um movimento religioso de resistência, também islâmico, mas que pregava uma forma puritana e solidária do Islã, dando ao povo instrução e assistência material e criando entre eles um senso de unidade: a ordem Sanussi. Essa ordem conquistou muitos adeptos - majoritariamente na Cirenaica - e adquiriu conotações políticas com o tempo [...]”

Assim como outros casos ocorridos em África no mesmo período, acreditava-se que o domínio sobre o território estrangeiro tinha fins “filantrópicos”:

“[...] em essência, a Itália acreditava que, com uma política “sábia” tanto de melhoria do solo quanto dos modernos meios mecânicos e de difusão de colheitas industriais, teria feito grandes fortunas, e teria contribuído extensivamente para o desenvolvimento do território” (Lano, 2019, p. 139)

Tal crença, no entanto, escondia uma série de outros motivos que justificavam o interesse italiano no território norte-africano: Lano (2019, p. 140), destaca, entre outras coisas, a necessidade de abrir novos mercados e o acesso a novas fontes de matéria-prima, interesses comuns a todas as potências coloniais do período, além de interesses específicos do caso italiano, como “o deslocamento dos camponeses italianos pobres, a “questão agrária e o latifúndio” do sul da Itália””.

A administração colonial italiana na Líbia:

“[...] uniu as três regiões em um mesmo sistema administrativo, reprimiu a população e fez grandes investimentos em infraestrutura, criando portos, ferrovias, estradas e projetos de irrigação; porém, deixou os cidadãos que ali se encontravam desprovidos de qualquer treinamento administrativo, técnico ou agrícola” (Giordani & Borges, 2017, p. 103)

Após Benito Mussolini emergir ao poder, em 1922, o colonialismo italiano, nas mãos de um governo facista, assumiu nuances ainda mais violentos:

“o Conde Volpi, o novo governador-geral na Líbia do governo fascista, e o Marechal Badoglio começaram uma violenta campanha para ocupar a Tripolitânia; na Cirenaica, a oposição de al-Mukhtar tornou o avanço italiano muito mais difícil. Em 1929, o Marechal Badoglio se tornou governador geral e o Marechal Rodolfo Graziani tornou-se comandante supremo no campo: os dois se tornaram famosos pela crueldade contra os líbios: execuções em massa, envenenamento de água, fechamento de poços, abate de rebanhos de ovelhas, cabras, camelos, e campos de concentração no deserto; qabilas inteiras foram postas nos campos e dizimadas” (Lano, 2019, p. 141)

A administração colonial italiana só produziu efeitos institucionais e econômicos duradouros na Tripolitânia (Giordani & Borges, 2017). Nesta região, em períodos anteriores a 1911, houve a colaboração de nativos com a invasão italiana (Lano, 2019). Em Trípoli, ricas famílias de comerciantes muçulmanos e judeus defenderam interesses e ajudaram tropas italianas a ocuparem a cidade (Lano, 2019). Nas demais regiões líbias, a oposição encabeçada pelos Sanussi barrou o amplo avanço do projeto colonial italiano (Giordani & Borges, 2017). Foi durante a Segunda Guerra Mundial que esta oposição teve sua grande chance de eliminar a presença da Itália no território líbio: a Ordem Sanussi se juntou com nacionalistas da Tripolitânia e lutou do lado dos Aliados e contra a Itália no conflito - os europeus faziam parte dos países do Eixo2 (Giordani & Borges, 2017). Os países do Eixo saíram perdedores da guerra, e, como consequência disto, os italianos perderam a posse sobre sua colônia, que foi entregue, até 1949, a uma administração franco-inglesa (Giordani & Borges, 2017):

2 Compunham os países do Eixo a Alemanha Nazista, a Itália, o Japão, além de Bulgária, Hungria, Finlândia, Romênia e Eslováquia (Enciclopédia do Holocausto, s.d.).

“Com a rendição das forças do Eixo na Tunísia em maio de 1943, a Grã-Bretanha estabeleceu uma administração militar na Cirenaica e na Tripolitânia, enquanto tropas francesas na guarnição do Lago Chade tinham ocupado o Fezzan, em janeiro do mesmo ano; em 1947, com o Tratado de Paz, a Grã-Bretanha garantiu-se a administração da Tripolitânia e da Cirenaica, enquanto a França ganhou o Fezzan, em “gestão de confiança” e a Faixa de Aouzou foi devolvida à sua colônia do Chade” (Lano, 2019, p. 144)

Neste ano, a Organização das Nações Unidas (ONU), através de sua Assembléia Geral, determina a independência da Líbia (Giordani & Borges, 2017), uma vez que Estados Unidos, França, Grã-Bretanha e União Soviética não conseguiram chegar a um acordo sobre seu destino final (Lano, 2019). Segundo a resolução de 21 de novembro de 1949 da ONU, o país estaria apto para a independência no final de 1951 (Lano, 2019); uma assembleia nacional representando as três províncias líbias promulgou a Constituição, que foi tornada pública em 07 de outubro de 1951 (Lano, 2019).




4. O capitalismo imperialista colonial na atual República Democrática do Congo

A atual República Democrática do Congo (RDC) é um país de proporções continentais localizado na África Central, região dos grandes lagos africanos: maior país da África subsaariana e segundo maior país de África, atrás apenas da Argélia, é o 11º maior país do mundo (Silva, 2012). É muitas vezes referida como RDC, a abreviação do nome, ou Congo - Kinshasa, uma forma de desambiguação da vizinha República do Congo, ou Congo - Brazzaville, que integrava a antiga África Equatorial Francesa.

De 1885 a 1960 a nação foi colônia da Bélgica. Neste período, belgas aplicaram na então colônia um sistema de ocupação, exploração e espoliação que, essencialmente, pode ser dividido em duas etapas históricas: de 1885 a 1908, quando o território se chamou Estado Livre do Congo, e de 1908 a 1960, quando a colônia foi nomeada Congo Belga (Vanthemsche, 2012). Ambas etapas guardam particularidades que distinguem o sistema colonial aplicado no Congo de qualquer outro dentro do capitalismo imperialista colonial, e que influenciaram, de forma derradeira, o histórico migratório do país.

O Estado Livre do Congo foi uma propriedade particular do Rei Leopoldo II e, oficialmente, o Estado belga não estava envolvido no empreendimento colonial (Vanthemsche, 2014). Organizar um sistema de ocupação, exploração e espoliação de um território estrangeiro era algo extremamente custoso. Mesmo sendo Leopoldo II uma pessoa riquíssima, sua colônia pessoal acumulou seguidos prejuízos financeiros em sua primeira década de vida (Vanthemsche, 2006). A partir de 1895, no entanto, a exploração de marfim e principalmente a de borracha, obtida a partir de uma variedade de cipó, tornaram o Estado Livre do Congo altamente lucrativo para o monarca (Vanthemsche, 2006).

Se em um primeiro momento a idéia de ter uma colônia foi encarada de forma cética pelas elites políticas e econômicas belgas, a partir da virada do século XIX para o século XX, observando os lucros que Leopoldo II estava obtendo com a borracha e o marfim, o colonialismo passou a não ser mais mal visto no país europeu.

Em 1908 a colônia passou para as mãos do governo belga, modificando seu nome para Congo Belga. A passagem do controle da colônia para o Estado Belga causou três consequências específicas:

I. Após a criação do Congo Belga, a espoliação das riquezas congolesas passou a ser feita através do chamado “portfólio congo”. O portfólio era uma um conjunto de empresas paraestatais – o que, no Brasil, entendemos como empresas de capital misto – baseadas nos antigos sistemas de concessões de Leopoldo II. Fazia parte deste portfólio, por exemplo, o Banco Central congolês. Kent (2011) traz que:

“As entidades paraestatais, incluindo a Administração Fluvial e o Banco Central, eram geridas por conselhos de administração a partir de Bruxelas, e em 1958 encontravam-se avaliadas em 37,5 mil milhões de francos. Os rendimentos do Portefólio foram de mil milhões de francos em 1959, mas não foram tomadas quaisquer medidas visando a sua transferência para o governo independente” (Kent, 2011, p. 41).

Além do Estado, que tinha participação de até 50% em todas estas companhias (Merriam, 1963), cinco corporações privadas se tornaram as grandes parceiras do governo belga no empreendimento da espoliação do Congo Belga:

“As cinco grandes firmas eram a Brufina, que controlava o Banco de Bruxelas além de certas organizações industriais; a Unilever, através de sua subsidiária belga, Huilever, agindo sobre produtos vegetais; Cominière, corporação agrícola e de mineração; o Banco Empain com grandes interesses no do transporte e a Société Générale que detinha interesses vários além de direitos de mineração” (Merriam, 1963, pp. 44-45).

Merriam (1963, p. 44) destaca que o poderio dessas cinco empresas era tão grande que “em 1952 noticiou-se que cinco companhias arrendatárias controlavam aproximadamente 70% de todos os negócios no Congo”;

II. Com isto, as atividades mineradora e industrial acabaram por substituir a exploração da borracha e a extração do marfim (principais fontes de dividendos durante o Estado Livre do Congo) como grandes atividades econômicas desenvolvidas na colônia;

III. Em uma tentativa de se desprender da imagem negativa deixada pela administração de Leopoldo II do Estado Livre do Congo (por causa do excesso de violência, que incluía, por exemplo, constantes mutilações de mãos de colonizados) (Honorato & Paiva, 2020), houve a instalação de um estado de bem social que era o mais extenso de África: existia um sistema de previdência social que previa auxílio doença e pensões por aposentadoria para todos os africanos trabalhando no Congo (Merriam, 1963); o posho obrigava todos os empregadores da colônia a fornecerem a seus trabalhadores cobertores, calções, agasalhos e alimentação sadia (Merriam, 1963); escolas primárias e de formação profissional se espalharam pelo país (consolidando o poderio da igreja católica dentro do empreendimento colonial belga, uma vez que ela era responsável pela maioria das escolas de ensino primário no Congo Belga), ampliando o número de pessoas alfabetizadas e de técnicos qualificados; além disso, ainda havia uma oferta considerável de empréstimos para aqueles que desejavam comprar imóveis e o Fundo de Bem-Estar Indígena (Merriam, 1963).




5. Neocolonialismo: uma breve conceitualização

As potências coloniais da Europa Ocidental utilizaram soldados africanos em larga escalada para engrossar suas fileiras de combatentes na Segunda Guerra Mundial: dois milhões de africanos lutaram no conflito, sendo setecentos mil somente no exército inglês (Khapoya, 2015). A participação na guerra influenciou, de quatro formas principais, a luta por independência de diversos povos africanos. Primeiro, forneceu extensa e valiosa experiência no teatro de operações a muitos africanos que, posteriormente, lutaram em guerras de independência continente afora (Khapoya, 2015). Em segundo lugar, propiciou o contato e troca de ideias entre africanos de diversas partes de mesmos territórios, permitindo uma articulação e difusão de ideais independentistas e derrubando barreiras étnicas (Khapoya, 2015). Em terceiro lugar, a falta de gratidão demonstrada pelos europeus para com os africanos que lutaram bravamente em nome de suas metrópoles coloniais, assim como já havia acontecido após a Primeira Guerra Mundial, causou grande desagrado e marcou, ainda mais, as diferenças existentes entre colonizadores e colonizados: enquanto os soldados africanos não foram recompensados de forma alguma, muitos soldados ingleses, por exemplo, receberam pedaços de terra quase de graça nas próprias colônias (Khapoya, 2015). O quarto e último ponto, talvez, o mais significativo, foi de ordem psicológica. O cotidiano no front de batalha, em que europeus brancos e povos colonizados não brancos conviveram juntos, serviu para demonstrar o equívoco das teorias de superioridade racial que estruturaram todo o processo colonial de ocupação, exploração e espoliação de povos e terras estrangeiras: o africano viu que o europeu tinha emoções e capacidades idênticas às dele (Khapoya, 2015). Não à toa, a Segunda Guerra Mundial foi um marco inicial do longo e heterogêneo processo de descolonização afro-asiático, que se estendeu por mais, mais ou menos, quatro décadas.

Segundo Badi (2012, p. 91):

“[...] a descolonização durou o espaço dos discursos e das festas pela independência, sendo imediatamente substituída pelo neocolonialismo, uma nova forma de dominação indireta e/ou invisível, diferente do colonialismo físico”3

3 Tradução do autor. Versão original: “[...] la descolonización duró el espacio de los discursos y de las fiestas para la independencia, al ser sustituida inmediatamente por el neocolonialismo, nueva forma de dominación indirecta y/o invisible, diferente del colonialismo físico” (Badi, 2012, p. 91)

Em África, o neocolonialismo tem sido aplicado de três formas principais: neocolonialismo realista, que seria influência das antigas metrópoles coloniais em seus respectivos antigos territórios coloniais (Badi, 2012); neocolonialismo ultra, que é a dominação ou influência de uma potência sem passado colonial no continente, como ocorre atualmente com os Estados Unidos e a China (Badi, 2012); e a endocolonização, que configura-se como o colonialismo interno, promovido pelas burguesias compradoras locais (Badi, 2012).




6. Prevalência econômica ocidental na África neocolonial: o caso da Líbia

A força política da Cirenaica prevaleceu (Lano, 2019) e, com o processo de independência tutelado pela ONU, ficou decidido que a Líbia se tornaria uma federação constitucional de monarquia hereditária, com um parlamento bicameral (Giordani & Borges, 2017); segundo Lano (2019, p. 148), justamente por causa desta influência política da Cirenaica no processo, “Benghazi deveria ser aceita como co-capital, junto com Trípoli”.

Para comandar o país, foi escolhido, por vontade das potências internacionais, Muhammad Idrislo al-Sanusi, da ordem Sanussi (Giordani & Borges, 2017). O rei Idris enfrentou diversos problemas durante seu governo: regionalismos, lutas por posições políticas, questões relacionadas à federação (Lano, 2019), além do empobrecimento e subpovoamento das regiões que formavam o país (Giordani & Borges, 2017). Assim Lano (2019, p. 150) descreve o governo do soberano:

“Numa tentativa de evitar qualquer oposição e tentativas de revolta, Idris aboliu os partidos, proibiu as manifestações, fechou os jornais independentes e eliminou qualquer oposição organizada ao seu governo. [...] Os cargos de governo eram dados discriminatoriamente e removidos de acordo com amizades e inimizades, e as eleições eram controladas por meio da corrupção”

Ainda sobre a administração de Muhammad Idrislo al-Sanusi, Giordani e Borges (2017, p. 104) destacam que ela “manteve um alto grau de autonomia das províncias, cada uma possuindo seu próprio parlamento, suas próprias leis e seu próprio orçamento”. Tal panorama só se modifica em 1963, quando foi feito um processo de unificação política formal das três unidades territoriais que formavam o país (Giordani & Borges, 2017), tendo sido o sistema de governo federal extinto (Lano, 2019), sendo substituído por um governo central.

No campo das relações internacionais, o rei Idris aplicou, como era esperado, uma orientação pró-ocidente (Lano, 2019). Isto porque além de ter sido escolhido rei a partir de um processo tutelado pela ONU sobre os auspícios das potências internacionais, em diversos pontos a Líbia era dependente do ocidente: comércio, ajuda externa, assistência técnica e presença de especialistas europeus (Lano, 2019). Uma das principais fontes de renda do país no período era a presença de bases militares britânicas e estadunidenses no território (Lano, 2019), aumentando ainda mais a dependência ocidental.

Durante a década de 1950, o interesse ocidental e a dependência líbia do ocidente crescem: são descobertas no país norte africano grandes reservas de petróleo (Giordani & Borges, 2017). Estas reservas se mostram extremamente estratégicas às potências internacionais: “[...] escoavam e transportavam o produto [o petróleo] sem necessitar do Canal de Suez, contornar o Cabo da Boa Esperança ou atravessar mais de um país neste processo” (Giordani & Borges, 2017, pp. 104-105). A exploração do petróleo era feita pelo grupo apelidado de “as sete irmãs” - cinco petrolíferas estadunidenses (Exxon, Mobil, Texaco, Gulf e Chevron) e duas petrolíferas britânicas (Shell e British Petroleum (BP)) (Pensamento Verde, 2014) - e obedecia a um sistema vantajoso aos interesses internacionais: a lei que regulamentou a prática, de 1955, determinava que apenas 50% da renda do produto ficava para a Líbia (Lano, 2019); a venda da commodity não se refletiu em melhorias na vida da população.




7. Prevalência econômica ocidental na África neocolonial: o caso da República Democrática do Congo

À despeito de toda estrutura social oferecida, a administração colonial não garantia aos congoleses o direito de reunião e associação, muito menos a liberdade de imprensa. Apenas em 1959 o rei belga assinou decretos modificando as disposições da Carta Colonial no que tange a imprensa e ao direito de reunião e associação; na prática, a mudança foi nula: Segundo Merriam (1963, p. 60) o decreto relativo à “liberdade de imprensa”, em seu segundo dos cinco artigos que continha, “autorizava o Governador Geral ou seu delegado a proibirem a introdução e circulação no Congo de periódicos [...] que pudesse perturbar a ordem pública”; Merriam (1963, p.61) também indica que o segundo artigo do decreto que tratava sobre o direito de reunião e associação “autorizava o Governador Provincial, depois de emitir uma comunicação prévia, a dissolver qualquer organização cujas atividades, a seu critério, pudessem comprometer a ordem pública”, sendo que, em caso de emergência, “funcionários de menor categoria estavam autorizados à mesma prática”.

No tocante aos direitos civis e políticos, outros dois fatores eram pontos sensíveis dentro da população congolesa: até 1947, não havia estritamente a participação de nenhum congolês nas decisões políticas tomadas sobre a colônia; esta situação se modificou quando, no citado ano, dois nativos foram nomeados para o Conselho Governamental – número que saltou para oito em 1951 (Merriam, 1963); em 1957, houveram algumas cidades onde o voto direto para a escolha de conselheiros municipais foi introduzido (Merriam, 1963); a questão racial também era latente, uma vez que brancos evitavam o convívio social com negros, haviam leis que permitiam castigos físicos e delimitavam as posições que congoleses poderiam alcançar dentro do serviço público (Merriam, 1963), bem como os bairros das cidades congolesas eram segregados – existiam os bairros das populações brancas e os bairros das populações negras (Merriam, 1963); apenas em 1957 o ódio racial foi abolido por lei e em 1958 a primeira família negra se mudou para o setor branco de Leopoldville (Merriam, 1963). Todos esses fatores sociais e políticos citados formaram o contexto que resultou na luta pela independência congolesa.

No ano de 1955 o pesquisador belga Van Bielsen publicou um estudo em que defendia um processo de independência gradual do Congo Belga, para o qual a Bélgica deveria – o mais rápido possível – começar a formar um quadro de congoleses preparados a assumirem o Estado independente, que deveria elaborar uma constituição federal que respeitasse toda sua pluralidade étnica (Munanga, 2008). Segundo a estimativa de Bilsen, este processo deveria levar trinta anos para ser concluído de forma efetiva.

As ideias de Van Bielsen reverberaram na colônia, desdobrando-se na divulgação de dois manifestos: um grupo de jovens profissionais congoleses e que tinham como ponto de convergência o periódico “Consciência Africana” divulgaram um manifesto se opondo à dominação colonial e ao discurso do rei que incluía o Congo dentro de uma comunidade belgo-congolesa; semanas depois, a Abako, uma associação cultural Bacongo, publicou um segundo manifesto, exigindo a politização do Congo Belga através da pluralidade de partidos políticos (Munanga, 2008).

Em janeiro de 1959, uma confusão ocorrida em um encontro da Associação Cultural Abako (grupo influente na politização do Congo Belga) acabou com a Force Publique abrindo fogo contra uma multidão africana; o saldo foi de 49 africanos mortos e outros 101 feridos (Munanga, 2008). Isto serviu de gatilho para que aquele ano fosse marcado por uma série de manifestações, muitas delas terminadas em violência, em favor do fim do sistema colonial.

O efeito deste evento foi a convocação, por parte dos belgas, de uma mesa-redonda para negociação com todos os chefes políticos congoleses de 20 de janeiro a 20 de fevereiro de 1960, em Bruxelas. Os líderes congoleses foram irredutíveis quanto à independência, exigindo-a a curto prazo; os belgas aceitavam a independência política, mas o seu ideal de relações neocoloniais com o Congo não incluíam mudanças significativas na administração do portfólio Congo. No fim, todos foram surpreendidos quando a metrópole não só aceitou a independência, mas também determinou a data de 30 de junho de 1960 (Cornevin, 1972) como o dia da passagem do poder político para os congoleses – apenas três meses após o fim das negociações em Bruxelas. Munanga sugere que nada foi por acaso:

“A pressa se explica em parte pela pressão exercida pelos líderes congoleses, mas também por um cálculo maquiavélico orquestrado por uma ala da política belga e os representantes dos meios de negócios. Os líderes africanos queriam imediatamente sua independência; os meios políticos belgas de acordo com seu cálculo maquiavélico resolveram outorgar-lhes a independência no justo momento que eles não saberiam como e o que fazer com ela, pois não havia nenhum quadro administrativo africano experiente e competente. Bem! Não tendo um quadro administrativo experiente, o governo independente ia necessária e absolutamente precisar ainda por certo tempo do quadro administrativo colonial composto de brancos. A mesma dificuldade se colocava no plano militar que até então contava somente com o comando dos oficiais belgas. Estando a administração pública e o exército ainda inteiramente nas mãos dos colonizadores de ontem, os governantes de hoje não tinham outra saída a não ser curvar-se a uma situação de continuidade, ou seja, de uma independência fictícia e nominal. Mais do que isso, lembramos que na data de proclamação da independência em 30 de junho de 1960, o país tinha apenas nove jovens universitários inexperientes recém-formados que por mais competentes e voluntaristas que fossem não seriam numericamente suficientes para administrar um país tão grande territorialmente.” (Munanga, 2008, p. 92)

Em maio de 1960 foram realizadas eleições provinciais e nacionais no Congo (Munanga, 2008). Como havia sido determinado na Lei Fundamental, que fazia o papel de uma constituição provisória, o país teria um presidente e um primeiro-ministro, além de ser uma república parlamentar (Munanga, 2008). No seu primeiro pleito, o Congo elegeu Joseph Kasa-Vubu como seu presidente e Patrice Emery Lumumba, líder do Movimento Nacional Congolês (MNC), como seu primeiro-ministro (Munanga, 2008). A emergência ao poder de Lumumba, sua imagem de radical e o medo de que ele se aproximasse do comunismo, fez com belgas tomassem uma decisão drástica:

“[...] o nacionalismo de Lumumba fez-se acompanhar de ideias radicais e nacionalistas de esquerda, e é pouco provável que este visse com bons olhos a manutenção das relações econômicas coloniais, bem como a sua institucionalização nos acordos postos em prática sob a égide do Estado Livre de Leopoldo. Por conseguinte, assim que os resultados das eleições foram conhecidos, Ganshof van der Meersch, o ministro no Congo, foi incumbido da tarefa de nomear o formateur do novo governo, de acordo com a loi fondamentale belga na qual se baseava a Constituição do Congo. E, em vez de nomear Lumumba, o líder do principal partido, Van der Meersch, voltou-se para Joseph Kasavubu, o líder bacongo, que não foi capaz de assegurar o apoio necessário para formar um governo sem Lumumba. A estratégia anti-Lumumba foi posta em prática antes sequer de se poder verificar que este era comunista ou que estava a ser instrumentalizado pelo comunismo soviético” (Kent, 2011, p. 41)

Incentivada pela Bélgica, a província do Catanga iniciou um processo de separação do Congo oficializado em 11 de julho de 1960, data na qual Móis Tshombé, então governador da província, ratifica a intervenção belga na região (Munanga, 2008). Este fato deixou Patrice de mãos totalmente atadas, afinal aquela província representava 45% do produto interno bruto do recém-independente país.

Uma semana antes dos acontecimentos no Catanga, um motim nas forças armadas havia começado e tornado quase a totalidade das tropas em situação de insubordinação a Lumumba: os soldados exigiam a africanização dos quadros de comando da armada e a destituição do general belga Janssens (Munanga, 2008); Lumumba, para contornar a situação, propôs a promoção de todos os soldados para um cargo acima do que ocupavam, além de nomear Joseph Mobutu, congolês, Coronel Chefe do Estado-Maior. Infelizmente, a saída encontrada por Lumumba não foi suficiente (Munanga, 2008).

As crises no Catanga e no exército se espalharam pelo país: a Abako se virou contra o primeiro-ministro e Joseph Kasa-Vubu, líder do agora partido político, decretou a revogação do mandato de Patrice Lumumba e a dissolução do governo nacional. Lumumba, por sua vez, não aceita a medida do presidente Kasa-Vubu e o revoga do cargo; outras províncias, como o Kasai, seguem os passos do Catanga e declaram separação do Congo; Patrice Lumumba é capturado e enviado ao Catanga, onde é assassinado em 17 de janeiro de 1961 (Munanga, 2008).

Após a morte do primeiro-ministro Patrice Lumumba, o Congo eclodiu em rebeliões provinciais, alimentadas por mercenários e tropas belgas. A situação só foi se estabilizar em 1965, após a instauração de uma ditadura e da neutralização, em 1964, do presidente Joseph Kasa-Vubu: Joseph Mobutu, jovem militar Coronel Chefe do Estado-Maior nomeado por Lumumba emergiu como liderança em meio ao caos que tomou o país africano. Foi Mobutu quem promoveu um golpe militar que o colocou no comando do país (Evans, 1993), e nesta posição ele ficou por trinta e dois anos (instituindo a chamada Segunda República), período em que mudou o nome do país para República do Zaire, instaurando uma ditadura alinhada aos interesses das potências ocidentais que multiplicou seu patrimônio pessoal (Evans, 1993).




8. Considerações finais

Apesar de utilizarem processos de ocupação de terras estrangeiras diferentes e terem seus “impulsos coloniais” sido gerados por causas distintas, Itália e Bélgica entram no advento colonial em contexto semelhante: já no fim do século XIX, como retardatários no processo de roedura, ocupando espaços que, por uma razão ou outra, ainda não haviam sido apoderados pelas demais potências coloniais - a atual Líbia e a atual RDC, respectivamente. O processo de exploração e espoliação tocado por essas duas metrópoles vão se aproximar na violência, mas vão se distanciar em uma série de especificidades: o Estado Livre do Congo, por exemplo, foi um caso único no colonialismo, em que um indivíduo, sem ter uma organização privada ou um Estado lhe apoiando, se tornou o dono de uma colônia. A mesma distinção ocorrerá no processo de independência político das duas nações africanas em questão: a independência Líbia teve seu desdobramento diretamente relacionado ao resultado da Segunda Guerra Mundial e ocorreu logo na década de 1950, enquanto a emancipação congolesa só acontece quase uma década depois. Entretanto, a independência política de ambos os países terá o mesmo saldo final: a manutenção da predominância dos interesses econômicos ocidentais em seus territórios, que, por sua vez, será um desdobramento de um contexto geopolítico mais amplo - o ímpeto ocidental pela hegemonia na Guerra Fria.




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