Cadernos PROMUSPP, São Paulo, v.2 n.4, out/dez, 2022



Da gravura e pintura etnográfica
à fotoetnografia no Brasil



> Carlos Eduardo de Castro: Historiador, fotógrafo e mestrando em Sociedade, Cultura e Fronteiras (PPGSCF) pela Unioeste. https://orcid.org/0000-0002-3944-1642

> Prof. Dr. Fabio Lopes Alves: Doutor em Ciências Sociais, com pós-doutorado em Educação pela Universidade Federal de São Paulo. Professor no Programa de Pós-Graduação em Sociedade, Cultura e Fronteiras (Mestrado e Doutorado) da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. https://orcid.org/0000-0002-2114-3831

> Carlos Eduardo de Castro Júnior: Jornalista e documentarista – PUC São Paulo. https://orcid.org/0000-0002-3375-0698




Resumo

Este artigo traça um panorama histórico sobre a etnografia imagética no Brasil, desde o trabalho dos cronistas do período colonial (séculos XVI, XVII e XVIII) e do Brasil Império, à concepção e a prática da Fotoetnografia (Achutti, 1997), como metodologia aplicada à antropologia visual.

Palavras-chave: antropologia visual, fotoetnografia, antropologia, etnografia

Summary

This article outlines a historical overview of imagery ethnography in Brazil, from the work of chroniclers from the colonial period (16th, 17th and 18th centuries) and from the Empire of Brazil, to the conception and practice of Photoethnography (Achutti, 1997), as an applied methodology to visual anthropology.

Keywords: visual anthropology, photoethnography, anthropology, ethnography

Resumen

Este artículo esboza un panorama histórico de la etnografía de la imaginería en Brasil, desde el trabajo de los cronistas del período colonial (siglos XVI, XVII y XVIII) y del Imperio de Brasil, hasta la concepción y práctica de la Fotoetnografía (Achutti, 1997), como una metodología aplicada a la antropología visual.

Palabras claves: antropología visual, fotoetnografía, antropología, etnografía

Résumé

Cet article propose un survol historique de l’ethnographie de l’imagerie au Brésil, depuis le travail des chroniqueurs de la période coloniale (XVIe, XVIIe et XVIIIe siècles) et de l’Empire du Brésil, jusqu’à la conception et la pratique de la photoethnographie (Achutti, 1997), comme une méthodologie appliquée à l’anthropologie visuelle.

Mots-clés: anthropologie visuelle, photoethnographie, anthropologie, ethnographie




Um breve olhar sobre a gravura e a pintura etnográfica entre os séculos XVI e XIX no Brasil

O primeiro registro textual sobre o território que hoje denominamos Brasil foi a carta escrita por Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal, D. Manuel I, dando conta do achamento das terras e descrevendo sua natureza e as características de seus moradores (Caminha, 2019). Nos anos subsequentes à chegada dos primeiros europeus, outros vieram e, “por motivações diversas, estiveram ou viveram por um período nestas terras e registraram o que observaram, descrevendo as paisagens e ambientes, bem como os povos originários e suas culturas” (de Castro, 2022). Estes viajantes e escritores tornaram-se cronistas do Brasil colônia.

De acordo com de Castro (2022), Jean de Lery, um padre huguenote francês que viveu no Rio de Janeiro na segunda metade do século XVI, sob o projeto da ‘França Antártica’, escreveu “Histoire d’un voyage fait en la terre du Bresil, dite Amerique”, que consiste em uma narrativa minuciosa sobre o que conheceu e experienciou nos anos em que viveu no Brasil. Seu trabalho é deveras importante, pois apresenta a descrição de aspectos da fauna e flora locais, bem como da cultura tupinambá, etnia com a qual conviveu no período em que esteve no Brasil. Numa das passagens da obra relata um diálogo que teve com um indígena a quem nomeou velho tupinambá, e que permite aos pesquisadores uma análise de aspectos das mentalidades e da cultura dessa etnia na segunda metade dos quinhentos.

Ademais, de Castro (2022) cita André Thevet, frade franciscano, que também era cosmógrafo e escritor, e chegou ao Rio de Janeiro com a expedição do comandante francês Nicolau Durand de Villegagnon. Em seu retorno à Europa publicou “Singularidades da França Antártica”, cujas ilustrações, desenhadas à mão por Thevet, podem ter sido as mais remotas etnografias imagéticas produzidas na colônia, em torno do ano de 1557.

Antes de Léry e Thevet, um soldado mercenário alemão, chamado Hans Staden, viveu por nove meses e meio como prisioneiro dos tupinambá num aldeamento denominado Ubatuba, localizado na região de Angra dos Reis. Ao retornar a sua cidade natal, Hesse, em Homberg, Alemanha, Staden publicou suas memórias, cujo título é “Hans Staden: Duas viagens ao Brasil”, obra na qual relata suas desventuras em terras brasileiras, e “descreve elementos da fauna e da flora local e detalhes da cultura tupinambá, especialmente relacionados às guerras contra os inimigos e aos rituais antropofágicos” (de Castro, 2022). Europeu e cristão, Staden, interpretou de maneira desvirtuada os costumes, as relações simbólicas, as crenças e etc., dos indígenas com os quais conviveu. Assim, foi a partir de suas narrativas deformadas que um gravurista alemão ilustrou sua obra, produzindo o seu trabalho com base nos referenciais próprios de alguém que nunca colocou os pés no continente americano, assim como aconteceu com o ilustrador da obra de Jean de Léry. Conforme afirmou de Castro (2022), “reproduziram os indígenas com feições caucasianas, seus arcos e flechas de acordo com o arquétipo europeu, e os animais exóticos oriundos do Novo Mundo em conformidade com o próprio imaginário” (p. 02).

Destarte, os relatos produzidos por estes cronistas foram impregnados pela visão de mundo européia da época, que os levou a uma interpretação limitada, quando não, distorcida, sobre as sociedades e a cultura dos povos originários brasileiros. E, quanto às gravuras que ilustravam as obras de Léry e Staden, os referenciais viciados dos gravuristas se justapunham às interpretações equivocadas dos cronistas. Portanto, esta arcaica ‘etnografia’ imagética deve ser analisada com muita cautela pelos pesquisadores.

Na primeira metade do século XVII, chegou ao Recife o conde Maurício de Nassau, um homem erudito que inaugurou um novo olhar para as Américas. Segundo Oliveira (2005),

Artistas e cientistas foram trazidos às ruas lamacentas e mal-ajambradas de um porto distante da costa brasileira, pelo simples capricho de um nobre ilustrado que pretendia mostrar aos investidores conterrâneos a viabilidade de um empreendimento tão arriscado e, também, segundo o espírito da época, trazer a civilização àquelas terras ainda praticamente incógnitas. O trabalho desses homens trazidos ao Brasil por Nassau frutificou em mapas, livros, quadros a óleo, gravuras e uma massa de conhecimento científico sobre os trópicos que se tornou o primeiro conjunto uniforme de informações geográficas, botânicas, zoológicas e étnicas sobre a América que mereciam certa credibilidade na Europa da Idade Moderna, apesar de suas motivações comerciais (p. 03).

Desta forma, vieram para cá os naturalistas Piso e Marcgraf, e os pintores Franz Post e Albert Eckhout, que foram responsáveis pelos mais relevantes registros imagéticos do Brasil no século XVII. A tarefa destes pintores e ilustradores, que acompanhavam as missões científicas, era a de registrar as paisagens, a fauna, a flora, as populações locais e seus modos de vida. Segundo Valladares (1981, p. 28), Eckhout, que era pintor e desenhista, tinha um domínio excepcional sobre o desenho do modelo vivo, portanto, foi quem mais se dedicou ao registro etnográfico dos habitantes da capitania de Pernambuco.

Contudo, uma questão que se põe é: podemos chamar estes documentos de etnografia? Conforme Chikangona-Bayona, sob a perspectiva etnográfica havia limitações nas obras daqueles viajantes e artistas, pois, embora registrassem detalhes de artefatos e enfeites com precisão buscando uma autenticidade no relato, ficava clara a limitação de seu conhecimento sobre os usos e funcionalidades de tais artefatos no seio das comunidades. Além disso, confundiam artefatos de culturas diferentes. Dessa maneira, tal “etnografia seria insípida, pois os artistas não tinham contato e informação com o índio representado, já que também não era seu interesse” (Chikangona-Bayona, 2008, p. 604).

De acordo com de Castro (2022, p. 03), considerando que “o registro etnográfico deve ser o mais detalhado, preciso e objetivo possível, é plausível discutir o trabalho desses artistas especialmente com relação à sua subjetividade, ponderando que a pintura não é um registro fiel à realidade”, contudo, assim como o desenho, era um dos escassos recursos de documentação existentes para a época.

Quase dois séculos mais tarde, chegando com a Missão Francesa ao Brasil, Jean-Baptiste Debret se destacou na produção de uma etnografia imagética brasileira. Em sua obra “Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil”, o pintor publicou parte do trabalho em aquarela que produziu durante os quinze anos em que viveu no país. Os temas mais recorrentes retratados pelo artista são a cidade do Rio de Janeiro e seus arrabaldes, aspectos cotidianos da vida urbana, os povos originários e a população negra, seja escravizada ou forra. De acordo com Schwarcz e Varejão (2014, p. 157), Debret se converteu no etnógrafo e uma espécie de memorialista dos tempos de Dom João VI.

Um personagem emblemático na história da etnografia imagética brasileira foi Hercules Florence. Nascido na França, veio para o Brasil bastante jovem. Chegou ao Rio de Janeiro em 1824, aos 20 anos. De acordo com Andrade (2015), candidatou-se ao posto de pintor para aquela que prometia ser a mais ambiciosa expedição científica do Novo Mundo, comandada pelo barão Von Langsdorff. Florence foi recrutado como pintor, desenhista e topógrafo da missão, no entanto, também se tornou o seu cronista. Viajou pelo interior do Brasil entre 1825 e 829 e produziu uma etnografia relevante sobre povos indígenas brasileiros. Andrade (2015) destaca que os desenhos e pinturas de Florence se notabilizavam pelo rigor documental. Contudo, não foi só em seu trabalho etnográfico que o francês se notabilizou. Conforme Kossoy (2012), ainda que vivesse em um país desprovido de recursos tecnológicos, a inventividade de Hercules Florence fez-se notória. Em 1833, idealizou e colocou em prática o processo fotográfico no Brasil, isto é, praticamente na mesma época que Niépce, Daguerre e Talbot apresentavam seus inventos na Europa. Destarte, Florence teve grande relevância para a etnografia e para a fotografia brasileira.

Desde o início da colonização desenhistas, pintores e gravuristas produziram uma etnografia imagética do Brasil que, ainda que primária e desprovida dos critérios da observação científica, tornaram-se documentos de grande relevância para a historiografia. De acordo com Gama (2020), as mais antigas fotografias etnográficas brasileiras foram produzidas no século XIX por fotógrafos como Arsenio da Silva e Marc Ferrez. Contudo, foi só no século XX que se inaugurou uma antropologia visual de fato, e o cinema e a fotografia foram suas plataformas fundamentais à época.




2.2 A Antropologia Visual e a fotografia

No início do século XX, a antropologia deixa de ser essencialmente um trabalho de gabinete e passa a dar importância à existência concreta dos povos estudados (Achutti, 1997, p. 23). Isto é, os antropólogos saem de seus gabinetes e se lançam ao trabalho de campo, ao exercício antropológico do estranhamento/familiarização, a partir do encontro de povos e de culturas distintas a serem pesquisados. O pesquisador compreende que ele mesmo deve ir a campo. “Pela primeira vez, o teórico e o observador finalmente se reúnem” (Achutti, 2004, p.77).

Um destes pesquisadores foi Bronislaw Malinowski, que em 1914 desembarcou em Nova Guiné, empreendendo uma expedição pelas Ilhas Mailu e Trobiand. De acordo com Samain (1995), para tal trabalho ele recebeu,

uma tenda e dois aparelhos fotográficos: um Graflex e uma Zeiss Kodak Anastigmat F. 6.5 (diafragma pouco luminoso), rolos de películas, placas no formato de 1/4. Trabalhará mais tarde com essas duas câmaras e uma teleobjetiva. Malinowski não é um amante da fotografia. Ele prefere desenhar e, sobretudo, escrever. Dito isso, suas máquinas fotográficas o acompanham quase sempre ao longo de suas andanças. (p. 30)

Ainda que Malinowski tivesse dificuldades no manejo da câmera, sua obra “Os argonautas do Pacífico ocidental” é o marco inaugural da antropologia visual. Contudo, Samain (1995) reflete que ao se tratar de uma história da antropologia visual, não deveríamos restringi-la a imagens inseridas nas monografias da área da antropologia, considerando que não há fotografia que não seja antropológica em sua essência. Destarte, é emergente que a antropologia se debruce no legado deixado por grandes fotógrafos do passado e atuais.

Voltando a Malinowski, Samain (1995) destaca que o primor do seu trabalho consiste em ter evidenciado o inter-relacionamento entre a fotografia e o texto no fazer antropológico, bem como no discurso científico em geral.

Outro trabalho de grande relevância para a Antropologia é Balinese Character, de Mead e Bateson. De acordo com Alves e Samain (2004), o material é composto por 25 mil clichês fotográficos e muitos cadernos de campo, nos quais Mead registrou detalhadamente “o contexto de produção e de realização dessas tomadas” (p. 52).

Conforme Achutti (1997), Mead e Bateson promoveram a ideia de que as imagens fotográficas “são ‘textos’, afirmações e interpretações sobre o real” (p. 25). Mead afirmou que era responsabilidade da antropologia inventariar costumes em extinção, no entanto, criticou o fato desta ciência ser dependente demais do texto e defendeu o potencial da antropologia visual neste processo de inventariação da cultura.

Portanto, Mead destaca o papel fundamental da imagem para a etnografia. Em seu trabalho, as fotografias cumpriram um papel maior do que o de mera ilustração ao texto etnográfico, abrindo um novo campo de comunicação na Antropologia. De acordo com Alves e Samain (2004), Bateson e Mead tinham ciência de que imagem e texto não eram equivalentes, no entanto, quando combinados podem produzir um resultado sui generis: se complementarem. Perceberam que ao abrirem mão do potencial descritivo da imagem seria necessária “uma coleção de livros para tentar evocar, em longas e cansativas descrições verbais, condutas e comportamentos culturalmente estereotipados e, antes de mais nada, de natureza visual” (p. 70).

Destarte, alguns antropólogos entenderam a importância da imagem, assim como da linguagem visual, para a atividade etnográfica. Dentre eles se destaca Sylvia Caiuby Novaes, que realizou um trabalho com os Bororo do Mato Grosso entre 1970 e 2000. Caiuby (2012) afirma que “é o uso documental da fotografia, sua possibilidade de registro que mais interessa à maioria dos antropólogos que dela fazem uso” (p.13). Em seus 30 anos de trabalho com os Bororo, Caiuby produziu um acervo de 3.000 fotografias e, segundo a própria autora, iniciou pesquisando a cultura material da aldeia. No ano seguinte, ao retornar à comunidade, levou fotografias feitas no ano anterior e que revelou para presenteá-los. Caiuby (2012) reflete que oferecer à comunidade as imagens que fizera se demonstrou uma ótima estratégia, pois, estimulou diálogos que se mostraram fundamentais ao processo de pesquisa, permitindo depoimentos relevantes, bem como a colocação de questões e o esclarecimento de dúvidas.

Assim, compreende-se que a função da fotografia para a antropologia não se restringe à documentação fotográfica, visto que bem como despertar e trazer memórias à tona, favorecendo o fazer antropológico.

De acordo com Achutti (1997), os propósitos teóricos e o olhar antropológico proporcionam ao fotógrafo um crescimento intelectual ao “realizar a documentação fotográfica de realidades sócio-culturais” (p. 37). Afirma que a prática da “Documentary photography” combinada aos conceitos da antropologia é predecessora da denominada antropologia visual.

Partindo deste olhar para a fotografia e a antropologia visual ou, da fotografia a serviço da antropologia, nasceu a ideia da Fotoetnografia, que é o conceito que discutiremos no próximo tópico.




2.3 A Fotoetnografia

No ano de 1996, Luiz Eduardo Robinson Achutti, fotógrafo e antropólogo, publicou sua dissertação de mestrado pela UFRGS, sob orientação da antropóloga Ondina Fachel Leal, cujo título é “Fotoetnografia: Um estudo de Antropologia Visual sobre cotidiano, lixo e trabalho em uma vila popular na cidade de Porto Alegre”. Esta dissertação propunha uma nova metodologia a qual o autor batizou de Fotoetnografia. Publicou-a como livro no ano seguinte pela Tomo Editorial.

De acordo com Alves, Abreu, Schroeder e Silva (2022), a dissertação de Achutti contribuiu de maneira relevante para a antropologia visual. Antes de tudo, por ser um trabalho inédito, considerando que o autor criou um conceito original; depois, porque inaugurou um campo singular na antropologia visual; e por fim, definiu de maneira teórica e metodológica os caminhos para pesquisas em Fotoetnografia.

No ano de 2002, Achutti defendeu seu doutorado, pela Universidade de Paris VII Denis-Diderot. Avançando na teoria e na prática fotoetnográfica, produziu a tese intitulada “Fotoetnografia da Biblioteca Jardim”, para a qual foi orientado por Jean Arlaud. Este trabalho foi adaptado para um livro que foi publicado na França e no Brasil e que, em conjunto com a dissertação, “constituem em importantes manuais teórico-metodológicos de fotoetnografia. Tais trabalhos têm influenciado uma geração de pesquisadores, professores, alunos e até mesmo disciplinas são realizadas nessa perspectiva” (Alves, et al., 2022, p. 03). Diversos trabalhos, em diferentes campos, utilizaram e utilizam a Fotoetnografia como metodologia.

Em 2022, os professores Fábio Lopes Alves, Claudia Barcelos de Moura Abreu, Tania Maria Rechia Schroeder e a pesquisadora Luzia Batista de Oliveira e Silva organizaram um dossiê que celebrou os 25 anos da Fotoetnografia - completados em 2021 -, publicado no Cadernos Cajuína. Colaboramos com o dossiê, publicando o artigo “Uma Fotoetnografia dos Homens da Lama: Os caranguejeiros do Delta do Parnaíba-PI”, em que este autor

problematiza a trajetória da antropologia visual no Brasil, desde as gravuras produzidas a partir das narrativas dos cronistas do século XVI ao conceito da fotoetnografia, concebido por Achutti. Em seguida apresenta uma narrativa fotoetnográfica, realizada em 2013, sobre o trabalho dos que nomeamos “homens da lama”, que são os catadores de caranguejo da Ilha Grande, no Delta do Parnaíba Piauiense. (Alves, et al., 2022, p. 05)

Esta breve narrativa nos dá uma ideia da trajetória histórica da Fotoetnografia. Mas qual é o seu conceito? Numa primeira abordagem ao tema, Achutti (1997) reflete que a fotografia - sendo um exercício contínuo de recortar e enquadrar - requer um domínio técnico que, combinado ao olhar sensível e experimentado do antropólogo, cria condições para a produção de um trabalho fotoetnográfico expressivo como outra forma de narrativa, “que somada ao texto etnográfico, venha enriquecer e dar mais profundidade a difusão dos resultados obtidos” (p. 64).

De acordo com aquele autor, “a fotografia deverá deixar de ser uma técnica de capturar evidências, para vir a ser um meio sedutor de discorrer sobre convencimentos antropológicos’’ (Achutti, 1997, p. 62). Destarte, compreendemos que a Fotoetnografia consiste em colocar a técnica e a linguagem fotográfica a serviço do olhar do antropólogo para o trabalho de pesquisa de campo. E deve produzir uma narrativa que se some ao texto etnográfico. Neste sentido, a fotografia deixa de ser mera ilustração do texto e passa a exercer um papel determinante para o etnógrafo e a etnologia. Em “Fotoetnografia da Biblioteca Jardim”, Achutti (2004) reitera este conceito e afirma que “a narração fotoetnográfica não se deve sobrepor a outras formas de narrativas: ela deve ser valorizada na sua especificidade” (p. 108). Destarte, apreende-se que a Fotoetnografia não ‘compete’ nem se sobrepõe à linguagem textual ou oral, mas as complementam.

Aquele autor afirma que

Um texto etnográfico de qualidade transcreve de forma bastante clara os fragmentos de realidade e os encadeamentos específicos necessários para os trabalhos de análises e de interpretações antropológicas. Personagens, etapas descritivas, sequência de acontecimentos e detalhes não devem ser misturados nem destacados de forma excessiva, perigando a prestar um desserviço às intenções do pesquisador. (Achutti, 2004, p. 96)

Destarte, a construção da narrativa fotoetnográfica também obedece a critérios específicos. Segundo Achutti (2004), ela deve ser constituída de imagens que possuam conteúdo individualmente, mas que quando relacionadas entre si produzam uma série de informações visuais. Característica essencial à uma Fotoetnografia é que estas fotografias em série sejam oferecidas ao olhar sem textos intercalados ou legendas, para que não desviem a atenção do interlocutor. Isto não descarta a relevância do texto escrito, ao contrário, a combinação do texto e da narrativa visual é desejável, contudo, devem ser apresentados separadamente ao leitor.

Achutti (2004) reflete que a “maioria dos trabalhos ditos de antropologia visual que utilizam a fotografia não exploram de maneira ideal o potencial do que se poderia chamar de uma poética fotográfica” (p. 108). Na prática antropológica prevalecem o caderno de campo e o texto escrito, e mesmo os trabalhos de antropologia visual comumente fazem concessões empilhando imagens e textos. Contudo, como a linguagem escrita e a visual são bastante distintas - e exigem diferentes operações mentais de quem lê - não é submetendo o leitor a passar de uma à outra constantemente, que se legitimará ou se valorizará a linguagem visual fotográfica.

O autor afirma que a imagem com legendas geralmente conduz a uma leitura intrincada, tanto quanto do texto, com o discurso teórico do autor, seguido de três ou quatro imagens. O resultado é a fadiga do espectador que não desfrutará da sequência da narrativa visual devido aos apelos textuais. Entretanto, um trabalho que combine texto e imagens, cada qual em seu espaço e momento apropriado, pode ser interessante. “Dessa forma, uma narrativa informa a outra, e as duas juntas informam o leitor” (Achutti, 2004, p. 110).

Em vista disso, entendemos que a Fotoetnografia exija um conhecimento sobre a técnica e a linguagem fotográfica, para a construção de uma narrativa fotográfica coesa e coerente. Por outro lado, o olhar do antropólogo também é necessário, pois, o exercício do estranhamento/familiarização é fundamental ao fotógrafo-pesquisador. É preciso, por exemplo, que ele se dispa de seus valores estéticos e tente captar a estética local, a mesma regra vale para os seus valores morais.




Referências

Achutti, L. E. R. Fotoetnografia da Biblioteca Jardim. Porto Alegre: Editora da UFRGS:Tomo Editorial, 2004.

Alves, A., Samain, E. Os argonautas do mangue. Campinas: Unicamp, 2004.

Alves, F.; Abreu, C.; Schroeder, T.; Silva, L. 25 anos de Fotoetnografia: balanço, desafios e perspectivas. Cadernos Cajuína, V. 7 N. 1 2022. Disponível em: https://cadernoscajuina.pro.br/revistas/index.php/cadcajuina/article/view/648/532, acesso 29/12/2022.

Andrade, R. O. Exposição reúne obra de Hercule Florence. São Paulo: Revista Fapesp, 2015. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/exposicao-reune-obra-de-hercule-florence/, acesso em 06/02/2023.

Caiuby Novaes, S. A construção de imagens na pesquisa de campo em antropologia. Iluminuras, 2012, vol. 13, no. 13: 11-29. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/iluminuras/article/view/36791. Acesso em: 28 dez. 2012.

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De Caminha, P. V. “ Carta a El-Rei Dom Manuel sobre o achamento do Brasil.” (1987).

Oliveira, C.M. O Brasil seiscentista nas pinturas de Albert Eckhout e Frans Janszoon Post: documento ou invenção do Novo Mundo? Portuguese Studies Review. https://www.researchgate.net/publication/221675172_O_Brasil_seiscentista_nas_pinturas_de_Albert_Eckhout_e_Frans_Janszoon_Post_documento_ou_invencao_do_Novo_Mundo - acessado em 17/12/2022.

Schwarcz, L. M.; Varejão, A. Pérola imperfeita: a história e as histórias na obra de Adriana Varejão. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2014.

Valladares, C. P. Albert Eckhout: Pintor de Maurício de Nassau no Brasil 1637/1644. São Paulo: Livroarte, 1981.