Cadernos PROMUSPP, São Paulo, v.2 n.4, out/dez, 2022


                                                                            Ensaio

As veias abertas e o coração pulsante da periferia do capital: política e ciência como campos de disputa epistemológica



> Alana Fagundes Valério: Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Mudança Social e Participação Política da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo - USP. Mestra em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná - UENP. Advogada e Professora Universitária. E-mail: alanafagundesvalerio@usp.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5435-9874.



Resumo

Este trabalho buscou, a partir de diálogos entre as teorias crítica, decolonial e feminista amefricana, discutir a relação entre ciência e política, a partir de uma perspectiva não-hegemônica, onde a modernidade-colonialidade possam ser superadas na busca por alteridade científica. Foi exposto como processos políticos oriundos do centro do capitalismo moderno - a Europa - impactaram, especialmente, o campo da epistemologia. A partir da discussão sobre a colonialidade como tecnologia de dominação e do capitalismo como estrutura de poder fundados na modernidade, o presente ensaio aponta para a necessidade de novas epistemologias, a partir da presença de corpos que trazem a experiência da periferia do capital - os territórios colonizados - para a superação de premissas epistemológicas excludentes e segregadoras, responsáveis pela manutenção das desigualdades e do sistema capitalista vigente. O trabalho foi desenvolvido a partir de uma análise crítica do fenômeno da modernidade-colonização e teve como método a revisão bibliográfica.

Palavras-chave: Feminismo amefricano. Epistemologia. Corpos não-hegemônicos. Modernidade. Decolonialidade.


The open veins and the beating heart of the periphery of capital:
politics and science as fields of epistemological dispute

Abstract

This work sought, from dialogues between critical, decolonial and African feminist theories, to discuss the relationship between science and politics, from a non-hegemonic perspective, where modernity-coloniality can be overcome in the search for scientific alterity. It exposed how political processes originating from the center of modern capitalism - Europe - impacted, especially, the field of epistemology. Starting from the discussion about coloniality as a technology of domination and capitalism as a structure of power founded in modernity, this essay points to the need for new epistemologies, based on the presence of bodies that bring the experience of the periphery of capital - the territories colonized - to overcome exclusionary and segregating epistemological assumptions, responsible for maintaining inequalities and the prevailing capitalist system. The work was developed from a critical analysis of the phenomenon of modernity-colonization and had as method the bibliographic review.

Keywords: Feminism amefrican. Epistemology. Non-hegemonic bodies. Modernity. Decolonity.


Las venas abiertas y el corazón pulsante de la periferia del capital:
la política y la ciencia como campos de disputa epistemológica

Resumen

Este trabajo buscó, a partir de diálogos entre teorías feministas críticas, decoloniales y africanas, discutir la relación entre ciencia y política, desde una perspectiva no hegemónica, donde la modernidad-colonialidad pueda ser superada en la búsqueda de la alteridad científica. Se expuso cómo los procesos políticos originados en el centro del capitalismo moderno -Europa- impactaron, especialmente, en el campo de la epistemología. A partir de la discusión sobre la colonialidad como tecnología de dominación y el capitalismo como estructura de poder fundado en la modernidad, este ensayo apunta para la necesidad de nuevas epistemologías, a partir de la presencia de cuerpos que traen la experiencia de la periferia del capital - los territorios colonizados- para superar supuestos epistemológicos excluyentes y segregadores, responsables del mantenimiento de las desigualdades y del sistema capitalista imperante. El trabajo se desarrolló a partir de un análisis crítico del fenómeno de la modernidad-colonización y tuvo como método la revisión bibliográfica.

Palabras clave: feminismo americano. Epistemología. Cuerpos no hegemónicos. Modernidad. Decolonialidad.


Les veines ouvertes et le cœur pulsant de la périphérie du capital:
politique et science comme champs de différend épistémologique

Résumé

Ce travail a cherché, à partir de dialogues entre théories critiques, décoloniales et féministes africaines, à discuter du rapport entre science et politique, dans une perspective non hégémonique, où la modernité-colonialité peut être dépassée dans la recherche de l’altérité scientifique. Il a été exposé comment les processus politiques provenant du centre du capitalisme moderne - l’Europe - ont eu un impact, en particulier, sur le domaine de l’épistémologie. Partant de la discussion sur la colonialité comme technologie de domination et le capitalisme comme structure de pouvoir fondée dans la modernité, cet essai souligne la nécessité de nouvelles épistémologies, fondées sur la présence de corps qui apportent l’expérience de la périphérie du capital - les territoires colonisé - pour surmonter les hypothèses épistémologiques d’exclusion et de ségrégation, responsables du maintien des inégalités et du système capitaliste dominant. Le travail a été développé à partir d’une analyse critique du phénomène de la modernité-colonisation et a eu comme méthode la revue bibliographique..

Mots-clés: féminisme américain. Épistémologie. Corps non hégémoniques. La modernité. Décolonialité




Introdução

Em contextos periféricos a complexidade das teorias que compõem a epistemologia costuma tornar o seu contato com a sociedade difícil, uma vez que foram pensados por sujeitos que não dialogam com os corpos, espaços e tempos de quem esteve, na narrativa ocidental, à margem do discurso da modernidade. O discurso da modernidade pode ser visto como um avanço histórico para o capitalismo, mas, para quem vive nas margens, é um discurso “autocentrado, eurocêntrico e universalista” (Dussel, 1993, p. 35). O diálogo não ocorre por questões oriundas da dinâmica dominador-dominado que permeia as relações sociais e, consequentemente, a política e a ciência.

Há uma influência da narrativa eurocentrada na construção de uma “narrativa mundial”. E isso resulta no contato com a epistemologia a partir de autores europeus e esses conceitos foram pensados a partir de contextos geográficos, temporais e sociais bem diferentes dos da América. A dinâmica instituída durante a expansão marítima iniciada em 1492, que resultou na colonização do continente Americano, cristalizou-se como uma dinâmica colonial, naturalizada, em que há um centro (Europa) e as margens (as antigas colônias).

Essa dinâmica colonial foi, por muitos séculos, silenciada, para que fosse construída uma ideia de “humanidade homogênea” (Krenak, 2019, p. 24), pautada em um modelo de “homem universal”, historicamente atrelado a perspectiva dominante de humano (o corpo masculino, heteronormativo, cisgênero, eurocêntrico etc.). O conceito de homem universal foi a resposta científica à crise vivida durante o feudalismo, e pedra fundante do capitalismo no séc. XVI na Europa e na América (Federici, 2017, p. 21), que autorizou a acumulação primitiva de forma violenta e excluiu da noção de humano todo corpo que não correspondia aos parâmetros, com destaque para o corpo feminino, que no centro do capitalismo “sempre foram tratadas como seres socialmente inferiores, exploradas de modo similar às formas de escravidão” (Federici, 2017, p. 27).

Enquanto a Europa se “modernizava” às custas da exploração colonial e sexual do trabalho, a partir do século XV, a ciência moderna nascia a partir da investigação científica da natureza de Francis Bacon, moldada no método de interrogatório da Inquisição Católica (Merchant, 1980, pp. 168-172; Federici, 2017, p. 366;). Nascia assim, a relação íntima entre ciência e política na modernidade.

A política moderna, pautada na dinâmica violenta dominador-dominado, influenciou a ciência moderna e seu desenvolvimento, impactando suas epistemologias. Como se verificará ao longo desse trabalho, há processos histórico-sociais intrínsecos à modernidade que pouco são abordados quando se fala das epistemologias criadas nesse período. Entre esses processos destaca-se a colonialidade como tecnologia de dominação, o capitalismo como estrutura de poder e a eugenia como prática estatal (nesse sentido, a Constituição Brasileira de 19341 pode ser vista como um exemplo de como a teoria eugenista, até então aceita pela comunidade científica, foi adotada como política pública de estado).

A chegada dos europeus no território americano e as narrativas de terror criadas para justificar a escravização dos povos originários consolidaram-se em teorias científicas que legitimaram a catequização e exploração dos povos ameríndios das Américas, uma vez que não eram “iguais” ao colonizador. Merchant (1980, p. 127) aponta que o paradigma da ciência moderna substituiu a visão de mundo “orgânico”, sensível, para uma visão instrumental em que a natureza e os corpos não hegemônicos são “recursos permanentes”. A caça às bruxas na Europa, assim como o genocídio indígena, tornaram-se mecanismos de controle dos corpos justificáveis. Tal dinâmica se estendeu e foi aperfeiçoada com o tráfico de pessoas negras nos séculos seguintes, tornando-se, de fato, uma tecnologia em que a dinâmica de subalternização entre colonizador e colonizado pautou-se nas marcas da diferença atribuídas aos corpos afro-latino-americanos.

É essa mesma lógica a responsável pelo epistemicídio dos corpos dissidentes (Carneiro, 2011, p. 93). A compreensão da modernidade como um mito é o primeiro passo para entender o fenômeno da colonização como um “período de trevas” para a América, especialmente na América Latina, assim como a Inquisição o foi para as mulheres na Europa da Idade Média:

Os destinos das mulheres na Europa e dos ameríndios e africanos nas colônias estavam tão conectados que suas influências foram recíprocas. A caça às bruxas e as acusações de adoração ao demônio foram levadas à América para romper a resistência das populações locais, justificando assim a colonização e o tráfico de escravos ante os olhos do mundo. (Federici, 2017. p. 357)

É a partir desse quadro que o presente ensaio pretende demonstrar o entrelace entre política e ciência e como tal relação impacta na construção de novas epistemologias. Nesse sentido, o papel das pensadoras feministas das Américas é importante, pois descentralizam as narrativas da experiência do eu hegemônico para a perspectiva de quem está na margem, (diante das hierarquias de poder impostas pelo capitalismo, modernidade e colonialidade), enriquecendo as críticas ao status quo.

O ensaio pretende analisar como a presença de corpos não hegemônicos nos espaços de saber públicos - ciência e política (com ênfase nos corpos femininos e racializados), pode colaborar para a construção de uma sociedade pautada em uma ética pós-colonial. Esses espaços englobam a política e a ciência. Infelizmente, ainda vige pelas bandas da América - seja ela do norte, central ou do sul, aspectos originários da acumulação primitiva que fundaram o capitalismo, como a violência estrutural e o epistemicídio (Carneiro, 2005), pois são fundantes das instituições modernas e suas relações de poder.

Pensando em tornar a discussão sobre epistemologia contemporânea emancipadora, o presente ensaio busca apresentar algumas provocações sobre a relação entre ciência e política e como as marcas da diferença (gênero, etnia, sexualidade, classe, dentre outros), podem colaborar consubstancialmente para construção de novas epistemologias, fazendo da “teoria como lugar de cura” (hooks, 2017, p. 85). O ensaio se divide em três tópicos, em que, inicialmente, discute-se o mito da modernidade como tecnologia de dominação - a tecnologia que abriu as veias da América. Em seguida, é abordado como a política e ciência se conectam, e por fim, como o movimento feminista amefricano2 tem colaborado para mudanças significativas na epistemologia, a partir da experiência vivida na periferia do capital.




1. As veias foram abertas por quem?

Os rastros da colonização resultaram no racismo e sexismo estrutural e institucional. Essas discriminações que estruturam as dinâmicas da sociedade capitalista fazem com que pessoas que não correspondam ao modelo de “eu hegemônico” (Carneiro, 2005, p. 28), vivam relações assimétricas com as estruturas da sociedade. Esse eu-hegemônico pode ser compreendido também como “cidadão universal”, previsto no art. 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada pela Organização das Nações Unidas em 1948. Essa assimetria foi legitimada pelas narrativas dos colonizadores europeus sobre as comunidades que viviam na América, (Dussel, 1993, p. 19) e impulsionou a produção de conhecimento pautada na colonialidade e suas faces (colonialidade do ser, saber, da natureza, de gênero e sexualidade). Na dinâmica social, mitos como o da democracia racial e da fragilidade feminina são reproduzidos a larga escala e reforçam a ideia de naturalização das discriminações.

A privatização da terra, assim como as guerras a partir do séc. XV no continente europeu são marcos do início do capitalismo e ocorreram concomitantemente com as expansões coloniais na América e na África. As lógicas de cercamento das terras e da eliminação do inimigo (Federici, 2017, pp. 130-147) resultaram em uma crise demográfica e econômica equiparadas à vivida durante a Peste Negra (1345-1348) na Europa, que se tornava o centro do capital. Trabalhadores que até então viviam a lógica da economia de subsistência, foram expulsos de terras produtivas e mortos em conflitos por solo, comida e dinheiro. Iniciou–se, assim, a acumulação primitiva/originária, que “desempenha na economia política aproximadamente o mesmo papel do pecado original na teologia” (Marx, 2017, p. 785).

Se a acumulação primitiva se equipara ao pecado original, como preleciona Marx, o papel da mulher na sociedade não era exatamente o mesmo que o delimitado pela Teologia a partir da Idade Moderna. As mulheres, no período pré-capitalista, eram vistas como sujeitos produtivos na estrutura política e social, pois desempenhavam atividades importantíssimas para a manutenção da comunidade. Eram parteiras, curandeiras, cozinheiras, cuidadoras, agricultoras, artesãs, além de reprodutoras, e a diferença sexual entre homens e mulheres não era razão para a exclusão dessa parcela de corpos da estrutura social até então.

Foi com a ascensão do capitalismo que o processo de degradação social das mulheres ocorreu, com a estatização do controle de seus corpos para o fim único de produção de força de trabalho. Desse modo, “ao tornar o papel reprodutivo da mulher um substituto de seu papel produtivo, a sociedade potencia a determinação sexo, distanciando, na esfera social, a mulher do homem” (Saffioti, 2013, p. 134), de modo que se observa até a contemporaneidade. E, “ao negar às mulheres o controle sobre seus corpos, o Estado privou-as da condição fundamental de sua integridade física e psicológica, degradando a maternidade à condição de trabalho forçado” (Federici, 2017, pp. 181-182), as mulheres tornaram-se, com o aval da política, um recurso natural, assim como minérios, terras, água etc., na medida em que foram reduzidas à atividade reprodutora e, portanto, “coisificadas”:

O aparecimento do capitalismo se dá, pois, em condições extremamente adversas à mulher. No processo de individualização inaugurado pelo modo de produção capitalista, ela contaria com uma desvantagem social de dupla dimensão: no nível superestrutural, era tradicional uma subvalorização das capacidades femininas traduzidas em termos de mitos justificadores da supremacia masculina, e, portanto, da ordem social que a gerara; no plano estrutural, à medida que se desenvolviam as forças produtivas, a mulher vinha sendo progressivamente marginalizada das funções produtivas, ou seja, perifericamente situada no sistema de produção. (Saffioti, 2013, pp. 65-66)

As mulheres que não cediam a essa nova forma de divisão sexual do trabalho, em que eram vistas como não-trabalhadoras, foram perseguidas e aniquiladas sob a justificativa de que eram bruxas e hereges. Aparece, pela primeira vez, a execução de técnicas de tortura que, posteriormente, seriam utilizadas pela ciência como “método científico”. O Estado, pela primeira vez, fomentou a promoção e divulgação de discursos de inferiorização das mulheres e de quem as auxiliasse. O medo foi a principal arma na atuação da Inquisição da Igreja Católica até o séc. XVII (Federici, 2017, p. 371) e instituído como política de estado desde então. A “caça às bruxas” voltou-se às figuras tidas como curandeiras, místicas, ou seja, as não-dominadas. Essas figuras eram as principais responsáveis pelo cuidado medicinal rudimentar e saberes ancestrais. Com a extinção dessas personagens sociais, o vácuo de poder deu espaço para que os homens dominassem também esse lugar.

Surgem, nesse período, os primeiros experimentos que resultaram um século depois, no que se conhece como método científico, que se sustenta na “visão mecanicista da natureza, que surgiu com o início da ciência moderna” (Federici, 2017, p. 364). Coincidentemente ou não, a política Inquisitorial dos Estados-nações europeus de controle dos corpos instituída em desfavor das mulheres também foi implementada aos corpos colonizados, como forma de exploração e de terror. As formas de política pré-existentes na América foram substituídas pelas dinâmicas colonizador-colonizado/senhor-escravo/europeu-não europeu/etc. Todas as dinâmicas exemplificadas giram em torno de uma “dominação baseada no patrimônio” (Saffioti, 2013, p. 231) e demonstram como a colonialidade, processo intrínseco à modernidade, tornou-se uma tecnologia de dominação.

Todo o processo histórico narrado até aqui sustenta o mito da modernidade. Os mitos não surgiram como “senso comum” repentinamente, são resultado de práticas nas quais “a sociedade costuma lançar mão para impedir ou retardar a emancipação de uma categoria social que se impõe a tarefa da libertação” (Saffioti, 2013, p. 179). Dentre essas práticas está a construção da narrativa histórica da perspectiva do corpo3-colonizador - aqui no singular, mas representa todos os europeus (espanhóis, portugueses, holandeses, franceses, ingleses etc.) que chegaram na América e fizeram dela capital de giro (Galeano, 2010, p. 7-12), sob a justificativa do “signo da imaturidade” atribuído ao continente (Dussel, 1993, p. 19). A crítica a este fenômeno histórico partiu de Quijano (1992), Dussel (1993), Mignolo (2003;2009), dentre outros, que o denominaram como mito da modernidade.

Esse mito sustenta-se na repetição romantizada sobre a chegada dos europeus no continente americano a partir da perspectiva do colonizador, reproduzindo-se assim como mito. Usa-se a expressão “descobrimento da América” para relatar o fenômeno que tornou a América Latina a primeira periferia da Europa moderna (Dussel, 1993, pp. 16; 23), como se a chegada dos europeus fosse a salvação dos ameríndios. O mesmo fenômeno também foi responsável pela constituição das subjetividades a partir do paradigma da racionalidade moderna (Quijano, 1992, p. 12), silenciando as vozes dissidentes e resistentes ao arbítrio colonial europeu em todo o continente americano, de norte a sul.

Isso porque, ao mesmo tempo em que se consolidava a dominação colonial europeia justificada na modernidade, enquanto política, construiu-se o paradigma universal de conhecimento (Quijano, 1992, p. 14), no campo científico e o que viria a ser chamado de “ego moderno”, (Dussel, 1993, p. 23). Tanto o paradigma de conhecimento quanto o ego moderno apoiam-se na dualidade sujeito-objeto, onde o outro (ainda que humano), é reduzido à condição de inferioridade e tem suas existências ignoradas, ou seja, cria inexistências (Santos, Meneses, 2018, pp. 10-13), em outras palavras, a existência passa a ser alimentada pelo desejo do que falta, uma grande oportunidade para o aprimoramento do capitalismo moderno. O resultado desse complexo fenômeno é o pensamento ocidental promotor da fetichização da diferença colonial (Miglievich-Ribeiro, 2014, p. 69). Ao autodeclarar-se “descobridor” do território, o corpo-colonizador negou a alteridade aos outros corpos, evidenciando essa lógica de apagamento desde o princípio da modernidade.

Sobre o tema, Mignolo explicita:

The argument that follows cuts across the current distinction between the renaissance and the early modern period. While the concept of Renaissance refers to a rebirth of classical leacies and the constitution of humanistic scholarship for human emancipation and early modern emphazises the emergence of a genealogy that announces that modern and the posmodern, the dark side of renaissance underlines, instead, the rebirth of the classical tradition as a justification of colonial expansion and the emergence of genealogy (the early colonial period) that announces the colonial and the postcolonial. (2003, p. vii)

A negação da alteridade científica fica evidente quando se pensa que a noção universal de humano imposta pela cultura ocidental/europeia é de um corpo único e todo aquele que não se enquadra nesse perfil, é tratado com a “violência civilizadora” (Dussel, 1993, p. 84), ou seja, domado/disciplinado/domesticado. Contudo, se a noção do que é a ciência é um campo de disputa (Walsh, 2001, p. 65), quem resiste à opressão colonial pode contribuir, a partir da crítica às estruturas vinculadas à hegemonia capitalista imperialista (Walsh, 2001, pp. 69-70). Nota-se que não é preciso “jogar fora” todo o processo de aperfeiçoamento do método científico desenvolvido até a contemporaneidade. Mas é preciso identificar as práticas racistas, sexistas e classistas que foram cristalizadas pela ciência e pela política. A esse movimento se atribuiu o nome “giro decolonial” - o rompimento com a ética colonizadora-moderna, encabeçado por autores latinos como Quijano, Mignolo e Dussel, e desencadeou, no fim do século XX, o questionamento sobre a relação entre as práticas políticas e científicas fundadas na modernidade-colonialidade e a epistemologia oriunda dessas práticas.

No tocante a esta indagação, o movimento feminista anticapitalista e amefricano das Américas, com destaque para Angela Davis, Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro, também têm contribuições significativas ao lugar reservado aos corpos periféricos na ciência e na política, pois interseccionam três marcadores indissociáveis: gênero, raça e classe. As três autoras ajudam a expor a matriz colonial de poder reforçada nos dias de hoje pelos cientistas que não se propõem a romper epistemologicamente com o imperialismo e o capitalismo (Mignolo, 2009, p. 179). Não reconhecer que o racismo e o sexismo estruturais permeiam a política e a ciência, é negar o processo histórico da América. De acordo com Davis (2019, pp. 97; 135; 198, 210), o capitalismo é permanentemente mantido com ajuda do patriarcado e do racismo e eles se mantêm nas estruturas da sociedade de forma cristalizada.

Lélia Gonzalez, sobre a experiência brasileira, destaca:

O que se opera no Brasil não é apenas uma discriminação efetiva; em termos de representações sociais mentais que se reforçam e se reproduzem de diferentes maneiras, o que se observa é um racismo cultural que leva, tanto algozes como vítimas, a considerarem natural o fato de uma mulher em geral e a negra em particular desempenharem papéis sociais desvalorizados em termos de população economicamente ativa. (2020, p. 42)

É imperioso notar, a partir das considerações de Gonzalez, que a mulher negra das margens do capitalismo, como no caso do Brasil, é triplamente oprimida. Não é valorizada como sujeito de direitos em quaisquer dos recortes que se observe: enquanto mulher, é objetificada. Enquanto pessoa pobre e negra, também. E não há dúvidas, esse domínio é ratificado a cada questionamento sobre suas potencialidades. Sueli Carneiro, também colabora na reflexão ao expressar que:

A branquitude como sistema de poder fundado no contrato racial, da qual todos os brancos são beneficiários, embora nem todos sejam signatários, pode ser descrita no Brasil por formulações complexas ou pelas evidências empíricas, como no fato de que há absoluta prevalência da brancura em todas as instâncias de poder da sociedade: nos meios de comunicação, nas diretorias, gerências e chefias das empresas, nos poderes Legislativos, Executivo e Judiciário, nas hierarquias eclesiásticas, no corpo das universidades públicas ou privadas etc. (2011, p. 91)

As veias da América, do sul ao norte, foram abertas por quem reprimiu os modos de ciência, política, participação e de significação dos corpos diferentes do corpo-colonizador (Quijano, 1992, p. 12). O mesmo corpo-colonizador que fundou as universidades e a democracia moderna, também exterminou e subjugou as mulheres, os povos indígenas e a diáspora africana, e se mantém nos espaços de poder. A modernidade instituiu a classe da sub-humanidade (Krenak, 2019, p. 21) e manteve os corpos negros, indígenas, femininos etc. da periferia do capital distantes da política e da ciência por, pelo menos, cinco séculos, fomentando mitos e extraindo toda a sua força de trabalho.




2. Os corpos não-hegemônicos e as epistemologias contemporâneas

A presença e a “paixão da experiência” (hooks, 2017) de corpos oprimidos na política e na ciência pode ser uma peça-chave para que a colonialidade do ser e do saber, dentre outras modalidades da colonialidade, sejam, de fato, afastadas. Esse afastamento pode dar lugar às reflexões que da Améfrica Ladina (Gonzalez, 2020), provém, para a construção de uma ecologia dos saberes que integre a experiência da comunidade (Krenak, 2019, p. 24) como fonte de informação e contribuição significativa para superação das premissas discriminatórias da modernidade-colonialidade.

A segregação do corpo dominado e do corpo dominador é uma estratégia adotada desde o período de colonização. A divisão sexual, racial e econômica dos corpos é uma “reinterpretação da teoria do lugar natural de Aristóteles” (Gonzalez, 1982, p. 15). Para desfazer a naturalização da segregação, a inclusão de vozes dissidentes no campo acadêmico e político é um passo imprescindível para o rompimento do paradigma até então vigente. As diferentes representações e visões de realidade têm ganhado espaço e escancarado a dominação colonial. Essa mudança se deve pela inserção de corpos periféricos nos espaços que eram exclusivamente compostos por corpos brancos e privilegiados. No Brasil, as ações afirmativas desenvolvidas a partir dos anos 2000, como a política de cotas étnico-raciais e sociais nas universidades, concursos públicos e, mais recentemente, o financiamento de candidaturas políticas de corpos não-hegemônicos são exemplos de uma mudança paradigmática que teve início no século XX.

Um dos autores que se destaca pela influência na ciência e política contemporânea é Franz Fanon, que trouxe à tona como as marcas do corpo consideradas não-hegemônicas (as marcas da diferença) afetam a constituição dos sujeitos, seus desejos e ausências, a partir do que ele denomina como “alienação colonial” (Fanon, 2008, p. 104). Essa alienação colonial é a dinâmica que expõe a noção fragmentada de humanidade da modernidade-colonialidade e do capitalismo que desconsidera o corpo e as marcas da diferença e como resposta a isso, propõe uma concepção pluriversal de corpo em oposição a universalidade moderna, pois:

No mundo branco, o homem de cor encontra dificuldades na elaboração de seu esquema corporal. O conhecimento do corpo é unicamente uma atividade de negação. É um conhecimento em terceira pessoa. Em torno do corpo reina uma atmosfera densa de incertezas. (...) Este não se impõe a mim, é mais uma estruturação definitiva do eu e do mundo – definitiva, pois entre meu corpo e o mundo se estabelece uma dialética efetiva. (Fanon, 2008, p. 104)

Fanon tem inspirado pesquisadores contemporâneos a contestarem a subserviência ao modelo moderno de ciência ao expor o apagamento violento do corpo não-hegemônico durante todo o processo de “modernização”. Ao trazer a experiência vivida pelo seu corpo diante do corpo-colonizador, usando da linguagem científica para fins anticoloniais, sua análise sobre as estruturas opressoras demonstrou as tensões entre as múltiplas instâncias que o atravessam.

Na mesma toada, Silvia Federici expõe como o corpo foi transformado em máquina de trabalho pelo capitalismo e como as mulheres foram reduzidas à condição de não-humanas, na medida em que tiveram sua força destruída por meio da “caça às bruxas”:

A acumulação primitiva não foi, então, simplesmente uma acumulação e uma concentração de trabalhadores exploráveis e de capital. Foi também uma acumulação de diferenças e divisões dentro da classe trabalhadora, em que as hierarquias construídas sobre o gênero, assim como sobre a “raça” e a idade, se tornaram constitutivas da dominação de classe e da formação do proletariado moderno. (2017, p. 119)

Lélia Gonzalez, a partir de sua experiência como corpo não-hegemônico, também relata o fenômeno do racismo e sexismo no Brasil com cientificidade, sem deixar de considerar os marcadores da diferença como tecnologias de dominação. Ao relatar a cristalização da ideologia do branqueamento como política, aduz:

A lógica que rege nosso sistema de classificação social, herdado de Portugal, é tal que determina “um lugar para cada coisa, cada coisa em seu lugar”. Ou, como DaMatta observou: “O homem branco está sempre unido e em cima, enquanto o negro e o índio formam as duas pernas da nossa sociedade, estando sempre embaixo e sendo sistematicamente abrangidos (ou emoldurados) pelo homem branco”. (Gonzalez, 2020, p. 170)

No século XXI, só é possível traçar críticas à dinâmica da modernidade-colonialidade e suas epistemologias com o apoio de autores que evidenciam os marcadores da diferença como fatores relevantes na constituição dos sujeitos. As informações produzidas por pesquisadores não-hegemônicos confirmam a potência da presença de corpos dissidentes nos espaços públicos para as mudanças epistemológicas sobre a modernidade-colonialidade. A forma como se desenha a relação entre a periferia e o centro do capital, assim como a relação entre política e ciência foi, como aponta Gonzalez, foi enquadrada pelo homem branco para que funcionassem da maneira que se observa até a contemporaneidade. Ao romper o silêncio dos subalternos e colocar o corpo como espaço de resistência, e assim, a ciência e seus pesquisadores são convidados a um “estado permanente de invenção” (Oiticica, 2011, p. 14), com o intuito de desierarquizar conhecimentos.

Esse convite parte dos questionamentos das teorias críticas decoloniais/anticoloniais e feministas quanto às categorias de análise gênero, etnia, raça, sexualidade etc., já que se tratam de categorias também modernas, coloniais, capitalistas e segregadoras em si mesmas (pois são dualistas e universalistas). Essas categorias escancaram a tecnologia de dominação que disciplina os corpos (biopoder e biopolítica), em favor do capitalismo (Foucault, 1987, p. 132) nas relações sociais:

Foi elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, que só pôde ser garantido à custa da inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio de um ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos. Mas o capitalismo exigiu mais do que isso; foi-lhe necessário o crescimento tanto de seu esforço quanto de sua utilizabilidade e sua docilidade; foram-lhe necessários métodos de poder capazes de majorar as forças, as aptidões, a vida em geral, sem por isto torná-las mais difíceis de sujeitar [...].(Foucault, 1987, p. 132).

A lógica da ciência e política moderna é antagonicamente diferente da multiplicidade das experiências humanas, pois, enquanto modernidade se firma nas dicotomias: certo/errado, mente/corpo, dentro/fora, eu/outro, centro/periferia, a experiência da vida é bem mais diversa, plural. Essa dicotomia é fundante do corpo-colonizador (corpo-colonizador = eu-hegemônico; corpo-colonizado = não-hegemônico). Essa cisão é uma das contradições da modernidade e nas últimas décadas, pesquisadores da periferia do capital têm reivindicado a legitimidade do que se pensa a respeito da ciência e política. Nesse sentido:

Os conhecimentos são como orixás, forças cósmicas que montam nos suportes corporais, que são feitos de cavalos de santo; os saberes, uma vez incorporados, narram o mundo através da poesia, reinventando a vida enquanto possibilidade. Assim, ato meu ponto: a problemática do saber é imanente à vida, às existências em sua diversidade. (Rufino, 2019, p. 9)

A forma como a epistemologia é abordada pelos pesquisadores não-hegemônicos pode mudar a percepção sobre o que é política e ciência, e assim, outras teorias do conhecimento emergirem. A teoria decolonial, que ganha mais espaço nos debates públicos, é uma demonstração do impacto dos pesquisadores não-hegemônicos na academia. A insurgência de reconhecer a diferença e a diversidade e transmutá-la de uma condição hierarquizadora para emancipadora, de forma a legitimar a produção de saberes não-ocidentais. É um movimento de resistência potencializado a partir do entrecruzamento das opressões vividas, e pode auxiliar a “reconhecer as estreitas fronteiras que moldaram o modo como o conhecimento é partilhado” (hooks, 2017, p. 63), a partir da experiência, encarnada no corpo, como menciona Rufino, e não um amontoado de informações soltas, sem conexões e afetos.

Trazer a experiência para o centro da política e da ciência, como forma de exercer a práxis de um lugar comum, é abrir a oportunidade para outras epistemologias. Parar de virar as costas para os saberes produzidos na periferia do capitalismo, como há quinhentos anos (Macas, 2005, p. 38), é subverter as práticas que resultam em controles sociais do capitalismo-modernidade-colonialidade. Ao falarem de seus lugares, corpos não-hegemônicos fazem com que “realidades que foram consideradas implícitas dentro da normatização hegemônica” (Ribeiro, 2017, p. 34), sejam problematizadas e o “desengancho epistemológico da colonialidade do poder” (Curiel, 2018, p. 46), seja, de fato, materializado.




3. O coração da periferia do capital pulsa: o feminismo amefricano

A violência simbólica, física e psicológica perpetuadas pela modernidade atingiram muitos corpos, mas a intersecção das categorias de análises pautadas nas marcas da diferença abriu pontes que evidenciaram como a manutenção dessas categorias isolam os grupos não-hegemônicos e estabelecem hierarquias entre os mesmos. A interseccionalidade - método de análise que considera as marcas da diferença como categorias epistêmicas de dominação que se comunicam (Bidaseca, 2017, P. 60), possibilita o trânsito entre grupos que até não dialogavam, como é o caso do movimento feminista e o movimento negro, por exemplo. Isso porque, as pessoas responsáveis pela inserção desse método de análise nas discussões acadêmicas foram autoras americanas do norte ao sul e resultou em uma onda de reflexões potentes no lugar onde as feridas, assim como as veias, estavam abertas.

O movimento feminista se espraiou no século XX e continua sua expansão no século XXI, mas agora com críticas quanto a relação intrínseca entre o capitalismo e a ausência de corpos que performam o feminino e dissidentes nos espaços públicos, como a política e a ciência. É importante reafirmar que a não-hegemônia de corpos que performam o feminino está nos corpos dissidentes, e não no movimento feminista liberal. Como pontua Bidaseca (2017, p. 20) a perspectiva liberal do movimento feminista, de que basta a autonomia sexual e laboral para que se conquiste a emancipação, é insustentável, uma vez que representa um feminismo hegemônico e esse não existe, pois ainda que se considere uma resposta ao eu-hegemônico, reproduz sistematicamente as mesmas opressões aos corpos femininos não-hegemônicos, já que “qualquer hierarquização das funções femininas nas sociedades capitalistas reforça as dificuldades de integração da mulher na sociedade” (Saffioti, 2013, p. 97), e tal condição é ainda mais prejudicada quando se observa a contradição do papel da mulher sob outras intersecções.

Na ordem escravocrata colonial brasileira, a contradição do papel da mulher negra é, sem dúvidas, um aspecto que minou o processo de constituição da sociedade, política e da ciência produzida aqui. Destaca-se o trabalho de Lélia Gonzalez, nesse sentido. A intersecção entre gênero, raça, classe e sexualidade, dentre outras categorias trazidas por Lélia, permite a transposição de dicotomias e hierarquias e apresenta novos modos de análise que podem contribuir e transformar os espaços de produção de saberes. Gonzalez expõe a negação do estatuto humano ao homem e a mulher negra e a fetichização de seus corpos. A negação do status de humano que ocorreu no período da colonização se mantém mesmo com a Lei do Ventre Livre, de 1871, a Lei Áurea, em 1888, e a Constituição Federal de 1988, que repudia o racismo, nos termos do art. 4º, inciso VIII. Entende-se aqui a negação do estatuto humano como a antiética da produção capitalista que nega a liberdade jurídica inventada pelo próprio sistema capitalista burguês (Saffioti, 2013, p. 97) e aduz Hasenbalg, nesse sentido que:

Com relação ao racismo, além dos efeitos das práticas discriminatórias, uma organização social racista também limita a motivação e o nível de aspirações do negro. Quando são considerados os mecanismos sociais que obstruem a mobilidade social ascendente do negro às práticas discriminatórias dos brancos devem ser acrescentados os efeitos derivados da internalização pela maioria da população negra de uma auto-imagem desfavorável. Esta visão negativa do negro começa a ser transmitida nos textos escolares e está presente numa estética racista veiculada permanentemente pelos meios de comunicação de massa, além de estar incorporada num conjunto de esteriótipos e representações populares. Desta forma, as práticas discriminatórias e a violência simbólica exercida contra o negro reforçam-se mutuamente de maneira a regular as aspirações do negro de acordo com o que o grupo social dominante impõe e define como os “lugares apropriados” para as pessoas de cor. (1982, p. 91)

Para a Gonzalez, especialmente, esse fenômeno “reencena o mito da democracia racial” (2020, p. 80) ao colocar a figura da mulher negra em um pedestal por quatro dias, durante os desfiles das escolas de samba, e nos outros trezentos e sessenta e um, trancar esses corpos ao arquétipo da mucama da senzala. É a reafirmação do lugar da mulher negra como prestadora de serviços sexuais e de serviços domésticos. É a reafirmação do fenômeno do mito da democracia racial como tecnologia. Ou, o “racismo por denegação” (Gonzalez, 2020, p.130), uma forma ideológica de branqueamento sustentada na modernidade-colonialidade, que constrói a “consciência” - esse lugar da modernidade que valida as relações sociais dentro da alienação colonial, e nega a memória, pois é o espaço do ancestral, daquilo que se faz na experiência e que emerge nas práticas do cotidiano. Sobre o assunto, explica a autora:

Como consciência a gente entende o lugar do desconhecimento, do encobrimento, da alienação, do esquecimento e até do saber. É por aí que o discurso ideológico se faz presente. Já a memória, a gente considera como o não-saber que conhece, esse lugar de inscrições que restituem uma história que não foi escrita, o lugar da emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção. Consciência exclui o que memória inclui. Daí, na medida em que é o lugar da rejeição, a consciência se expressa como discurso dominante (ou efeitos desse discurso) numa dada cultura, ocultando a memória, mediante a imposição do que ela, consciência afirma como a verdade. (Gonzalez, 2020, pp. 78-79)

Lélia Gonzalez também é responsável por desenvolver um conceito que colabora para a compreensão quanto às fronteiras que se cruzam entre os povos originários e da diáspora africana que resistiram no continente americano. A amefricanidade é, para Gonzalez, uma categoria político-cultural que responde ao racismo sustentado pelo imperialismo, pois “politicamente é muito mais democrático, culturalmente muito mais realista e ideologicamente muito mais coerente nos identificarmos a partir da categoria de amefricanidade e nos autodesignarmos amefricanos” (2020, p. 137). A Amefricanidade é uma proposta inédita e foi apresentada por uma mulher negra, latinoamericana, nascida no Brasil e com formação interdisciplinar. É um projeto libertador e revolucionário que impacta a ciência e se concretiza na periferia do capital. É a teorização das encruzas entre corpo, gênero, raça, sexualidade, classe etc., a partir da experiência de quem está tentando exercer uma “justiça epistêmica” (Bidaseca, 2017, p. 60) ao ocupar os espaços públicos e se fazer compreendido por outros públicos, além muros da universidade.

O feminismo amefricano, assim como a teoria decolonial, pretende desfazer a crença de que apenas a visão eurocentrada de mundo condiz com a realidade da sociedade global. Tal posição também é notada em outras autoras como Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus, bell hooks, dentre outras pensadoras não-hegemônicas, em que também observa-se o atravessamento da experiência de suas vidas ao desenvolvimento de suas escritas. Esses corpos encontraram na escrita um lugar para se entenderem como corpos-pesquisadores-sujeitos, pois “escrever pressupõe um dinamismo próprio do sujeito da escrita, proporcionando-lhe a sua auto-inscrição no interior do mundo” (Evaristo, 2005, p. 4). Desta forma, ao ocuparem os espaços essas presenças, assim como um coração, pulsam vidas para além da dor da condição subalterna que permeia a existência na periferia do capitalismo:

As mulheres da classe trabalhadora, em particular as de minorias étnicas, enfrentam a opressão sexista de um modo que reflete a realidade e a complexidade das interconexões propositais entre opressão econômica, racial e sexual. Enquanto a experiência das mulheres brancas de classe média com o sexismo incorpora uma forma relativamente isolada dessa opressão, a experiência das mulheres da classe trabalhadora obrigatoriamente situa o sexismo no contexto da exploração de classe - e as experiências das mulheres negras, por sua vez, contextualizam a opressão de gênero nas conjunturas do racismo. (Davis, 2017, p. 37)

Isso porque “nesta cultura capitalista, o feminismo e a teoria feminista rapidamente se transformam numa mercadoria que só os privilegiados podem comprar” (hooks, 2017, p. 98), mas práticas como as das pensadoras amefricanas, são, acima de tudo, combustível contra a dominação e alienação que tanto isola a ciência e política à papéis pouco transformadores. As produções intelectuais das pensadoras amefricanas têm um caráter político, na medida em que buscam uma mudança sistêmica nas formas de participação e representação dos corpos não-hegemônicos.

No que se refere à participação e representação política, especialmente, nota-se um árduo caminho a ser trilhado. Diferentemente da ciência, que já conta com expoentes da periferia do capital ganhando espaço e notoriedade, o âmbito político ainda é um espaço inóspito para a mulheres, sobretudo mulheres de grupos étnico-raciais minoritários. Ainda que hoje pessoas não hegemônicas possam votar e serem eleitas, busca-se uma representação política de forma ativa e substantiva (Pitkin, 1967, p. 155), em que haja congruência entre as ações do representante e os anseios das pessoas representadas. Nesse sentido, é importante destacar que “a representação política revela no seu cerne uma tensão, cujo tratamento teórico encontra expressão nítida na controvérsia mandato-independência” (Lavalle, 2015, p. 306), mas essa controvérsia não é excludente, ou seja, não se trata de assumir um papel de sobreposição de um diante do outro, e sim, traduz-se no paradoxo dos papéis que representante e representada exercem, concomitantemente, no mundo.

A Constituição Federal brasileira de 1988 foi a primeira que, de fato, instituiu o sufrágio universal (sem restrições a pessoas analfabetas e sem residência fixa). Contudo, contou com a presença de 26 deputadas na Assembleia Constituinte de 1987, onde apenas 01 era mulher negra e da classe trabalhadora e nenhuma senadora. Segundo os dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE)4, na eleição de 2022, o número de candidaturas femininas alcançou 34% do total de candidaturas, e dentre elas 53% eram candidatas pretas e pardas. Mesmo assim, o Congresso Nacional ainda representa a perspectiva da modernidade-colonialidade em sua composição e ação. Não foram eleitas mulheres pretas e pardas para o Senado Federal. A Câmara dos Deputados contará com uma bancada feminina composta por 86 pessoas, onde 31% delas são mulheres pretas e pardas e 2,47% de mulheres indígenas. Isso corresponde a 21% do total de cadeiras da Câmara dos Deputados.

A noção de universalização, validada pela ciência, como mencionado nos itens anteriores, mais uma vez encontra problemas para se manter num modelo democrático real, pois como bem cita Davis (2016, p. 236): “o processo de produção capitalista pressupõe a existência de um conjunto de trabalhadoras e trabalhadores exploráveis”, e a manutenção pessoas em condições de exploração e massificação é imprescindível para manutenção da supremacia branca e masculina, que continua predominando. E como desdobramento, o acesso aos espaços públicos acaba por ser limitado aos que, nomeando-se como representantes de toda a coletividade, fazem de seus mandatos manifestações claras dos interesses hegemônicos. Deste modo:

Na situação da mulher não se expressa, pois, apenas a contradição que diz respeito a uma igualdade de status jurídico em contraposição com a desigualdade gerada pela divisão da sociedade em classes sociais, mas, ainda, pela contradição inerente ao privilegiamento de fato e de direito dos representantes do sexo masculino numa sociedade que se havia instituído em nome da igualdade (pelo menos jurídica) de seus membros. (Saffioti, 2013, p. 108).

A necropolítica (Mbembe, 2018), adotada pelo sistema político capitalista neoliberal, fortalece a ausência de corpos não hegemônicos em espaços públicos, ainda que normas jurídicas “garantam” a possibilidade. A política, assim como a ciência, pode ser transformada a partir de uma gestão participativa alinhada com o coração da periferia do capital: os corpos que resistiram até aqui. Esse coração é decolonial e feminista amefricano porque é a partir das experiências desses corpos que as tecnologias refinadas da modernidade-colonialidade-capitalismo podem ser questionadas, e assim, desfeitas, para que novas epistemologias possam ascender, assim como novos sonhos.




Conclusão

Ao questionar o referencial teórico eurocêntrico, imperialista, capitalista, moderno e dualista, oriundo do eu-hegemônico, foi inevitável rever não só as bibliografias escolhidas como também as intenções que levam os estudantes a examinarem determinados corpos-pesquisados. O corpo experiencia tudo, seja ele pesquisador ou pesquisado. O real é vivido no corpo. E, desse modo, parece que indicar o corpo no eixo central da interação entre pesquisado e pesquisador é uma possibilidade de desfazer hierarquias, reforçadas na relação entre sujeito e objeto, colonizador e colonizado, porque o corpo é o comum.

As veias foram abertas há mais de cinco séculos e ainda assim não pararam de pulsar. Ainda bem. Ao longo de todo esse período, seja no eixo sul ou norte das Américas, corpos não-hegemônicos têm denunciado que a lógica de mundo do corpo-colonizador extermina seus saberes. As ações de inserção de grupos periféricos no espaço público, com destaque para a ciência e a política, traz à tona o escárnio com que esses corpos são tratados diante do eu-hegemônico, desfazendo mitos até então cristalizados na sociedade.

A colonialidade do ser, saber, da natureza e de gênero/sexualidade é exposta a cada cena chocante registrada pela mídia de massa e validada pela narrativa moderna-colonial como natural. Quantas violências sofrem cotidianamente os corpos não-hegemônicos nos espaços públicos institucionais? Inúmeras. Quantos corpos não-hegemônicos ocupam espaços da ciência e da política? Poucos. Basta ligar a televisão na tv aberta, abrir a lista de congressistas eleitos e buscar os corpos docentes e discentes das universidades e essas informações estarão visíveis a qualquer pessoa.

As marcas da diferença criadas pela modernidade como tecnologia de dominação só reforçam que é no corpo, na experiência vivida por quem é oprimido, que se encontram as saídas para o que, por muitos séculos, foi promovido como “desenvolvimento”. A modernidade não é o desenvolvimento da humanidade, e sim, a idealização do eu hegemônico de um mundo que não existe, em um universo pouco conhecido, em que seus desejos fálicos o fazem atravessar a atmosfera e constatar que a terra não é plana, de novo. Se a modernidade-colonialidade se apoia na dualidade sujeito-objeto no campo do método científico e essas são zonas ontológicas distintas, as práticas anticoloniais e amefricanas são peça-chave para que haja, de fato, alteridade científica na produção de conhecimento, e desfaça-se, aos poucos, noções distorcidas de liberdade, pois este não é um substantivo, e sim, um verbo.



1 Art 138 - Incumbe à União, aos Estados e aos Municípios, nos termos das leis respectivas: b) estimular a educação eugênica; g) cuidar da higiene mental e incentivar a luta contra os venenos sociais. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, (1934). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.htm Acesso em: 30 nov. 2022.

2 A partir das abordagens decolonial, interseccional e psicanalítica, Lélia Gonzalez aponta, ao longo de sua obra, que a produção dos corpos não-hegemônicos localizados na América são imprescindíveis para a compreensão da formação da identidade, da política e ciência produzidas aqui. O feminismo aqui denominado de amefricano tem como referência a noção de amefricanidade de Lélia Gonzalez (2020). A amefricanidade é, para a autora, uma categoria político-cultural do pensamento feminista que abrange toda a América, do norte ao sul.

3 A escolha pela palavra corpo pretende enfatizar a perspectiva fenomenológica na qual os corpos - materialidade - são os protagonistas das ações, por meio da performatividade (BUTLER, 2019, p. 34), e desse modo, abrangem-se presenças que não se enquadram nos enunciados pautados morfologicamente na diferença sexual (masculino/feminino).

4 Tribunal Superior Eleitoral. Perfil das candidaturas. Disponível em: https://sig.tse.jus.br/ords/dwapr/seai/r/sig-candidaturas/g%C3%AAnero?p11_menu=GENERO&clear=RP&session=234021233217643. Acesso em: 05 dez. 2022.




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