Cadernos PROMUSPP, São Paulo, v.3 n.1, jan/abr, 2023



Análise de ondas migratórias através de práticas esportivas e de lazer: a Copa dos Refugiados e Imigrantes1



1 > GUILHERME SILVA PIRES DE FREITAS: Doutorando em Mudança Social e Participação Política
pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP).
ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-8833-3672. Email: guilhermespfreitas@usp.br;

> MARCO ANTONIO BETTINE DE ALMEIDA: Professor Associado III da Escola de Artes, Ciências
e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP). ORCID:
https://orcid.org/0000-0003-0632-2943.
Email:
marcobettine@usp.br.



Resumo

Esta pesquisa tem como principal objetivo compreender como atividades de esporte e lazer podem funcionar como elemento de integração social para refugiados na sociedade brasileira, principalmente no estado de São Paulo. Para entender esta situação utilizou-se a Copa dos Refugiados e Imigrantes, evento de futebol amador organizado e disputado pelos refugiados, como objeto central de pesquisa. Além da promoção do esporte, o torneio também fortalece as redes entre os refugiados e reforça suas identidades como migrantes. Através de entrevistas semiestruturadas, realizadas em 2023 com participantes do evento e analisadas a partir da metodologia do Discurso do Sujeito Coletivo, a pesquisa buscou entender como o esporte foi um elemento essencial para a integração destes sujeitos na sociedade brasileira e como o evento ajudou a criar e fortalecer vínculos entre os membros de diferentes comunidades migrantes.

Palavras-chave: Refúgio; Migração; Identidade; Copa dos Refugiados e Imigrantes; Esporte e Lazer.

Abstract

This research’s main objective is to understand how sport and leisure activities can function as an element of social integration for refugees in Brazilian society, mainly in the state of São Paulo. To understand this situation, the Refugees and Immigrants Football Cup, an amateur football event organized and played by refugees, was used as the central object of research. In addition to promoting sport, the tournament also strengthens networks among refugees and reinforces their identities as migrants. Through semi-structured interviews, carried out in 2023 with event participants and analyzed using the Collective Subject Discourse methodology, the research sought to understand how sport was an essential element for the integration of these subjects into Brazilian society and how the football event helped create and strengthen bonds between members of different migrant communities.

Keywords: Refuge; Migration; Identity; Refugee and Immigrant Football Cup; Sports and leisure.

Resumen

El principal objetivo de esta investigación es comprender cómo el deporte y las actividades de ocio pueden funcionar como elemento de integración social de los refugiados en la sociedad brasileña, principalmente en el estado de São Paulo. Para comprender esta situación, se utilizó como objeto central de investigación la Copa de Refugiados e Inmigrantes, un evento de fútbol aficionado organizado y jugado por refugiados. Además de promover el deporte, el torneo también fortalece las redes entre los refugiados y refuerza sus identidades como migrantes. A través de entrevistas semiestructuradas, realizadas en 2023 con participantes del evento y analizadas mediante la metodología del Discurso del Sujeto Colectivo, la investigación buscó comprender cómo el deporte era un elemento esencial para la integración de esos sujetos en la sociedad brasileña y cómo el evento ayudó a crear y fortalecer vínculos entre miembros de diferentes comunidades de inmigrantes.

Palabras clave: Refugio; Migración; Identidad; Copa de Refugiados e Inmigrantes; Deportes y Ocio.

Résumé

L’objectif principal de cette recherche est de comprendre comment les activités sportives et de loisirs peuvent fonctionner comme élément d’intégration sociale des réfugiés dans la société brésilienne, principalement dans l’État de São Paulo. Pour comprendre cette situation, la Coupe des Réfugiés et Immigrants, un événement de football amateur organisé et joué par des réfugiés, a été utilisée comme objet central de recherche. En plus de promouvoir le sport, le tournoi renforce également les réseaux entre réfugiés et renforce leur identité en tant que migrants. À travers des entretiens semi-structurés, réalisés au 2023 avec les participants à l’événement et analysés à l’aide de la méthodologie Collective Subject Discourse, la recherche a cherché à comprendre comment le sport était un élément essentiel pour l’intégration de ces sujets dans la société brésilienne et comment l’événement a contribué à créer et à renforcer les liens entre les membres des différentes communautés de migrants.

Mots-clés: Refuge; Migration; Identité; Coupe des Réfugiés et Immigrants; Sports et loisirs.


Introdução

Os fluxos migratórios são sem dúvida, um dos maiores temas discutidos e debatidos em diferentes esferas do conhecimento. Ação realizada pelo homem desde seus primórdios, o ato de migrar é um direito da humanidade como consta no artigo 13 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aplicada pela Organização das Nações Unidas no dia 10 de dezembro de 1948, em Paris (United Nations, 1948). Entre as diferentes classificações migratórias existem aquelas oriundas de deslocamentos forçados que vêm enfrentando um considerável aumento em anos recentes.

O último relatório anual do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), agência da Organização das Nações Unidas responsável pela causa do refúgio, apontou para o número recorde de 108,4 milhões de pessoas vivendo em situação de deslocamento forçado pelo mundo (Unhcr, 2023). A grande maioria, 62,5 milhões, é composta pelos deslocados internos, pessoas que deixam suas casas e se abrigam em outros locais dentro do próprio país em questão. Em segundo lugar aparecem os indivíduos que se deslocam internacionalmente, os refugiados. Eles somam 35,3 milhões de pessoas vivendo fora de seu país natal (Unhcr, 2023).

Segundo o Acnur uma pessoa em condição de deslocamento forçado seria alguém:

[...] com medo de ser perseguido por motivos de raça, religião, nacionalidade, pertencer a um grupo social ou ter opinião política específica, estar fora do país de sua nacionalidade e ser incapaz ou, devido para tal medo, não está disposto a se valer da proteção daquele país; ou que, não tendo uma nacionalidade e estando fora do país de sua antiga residência habitual como resultado de tais eventos, é incapaz ou, devido a tal medo, não está disposto a retornar a ele (Unhcr, 2010).
Desse total um impressionante número de 65% dos deslocados forçados externos do mundo, ou aproximadamente 23,1 milhões, pertencem a apenas quatro países: Síria (6,5 milhões), Ucrânia (5,6 milhões), Afeganistão (5,6 milhões) e Venezuela (5,4 milhões), todos Estados que passam por diferentes desafios como conflitos armados, crise econômica e perseguições políticas e étnicas (Unhcr, 2023). Outro dado importante para compreender o tamanho desta emergência humanitária é que 76% de todos os refugiados do mundo, cerca de 26,8 milhões, vivem em países pobres ou em desenvolvimento, caso da Turquia que acolhe 3,5 milhões de refugiados, em sua maioria oriundos da vizinha Síria (Unhcr, 2023).

O Brasil é signatário tanto do Estatuto do Refugiado das Nações Unidas de 1951, quanto do Protocolo Relativo ao Estatuto dos Refugiados das Nações Unidas de 1967, que aboliu as restrições temporais e geográficas passando a reconhecer refugiados em todo o mundo. No território brasileiro a entidade responsável por analisar solicitações de refúgio é o Comitê Nacional para Refugiados (Conare), que em seu último relatório, divulgado em junho de 2023, contabilizou 65.840 refugiados oriundos de dezenas de países vivendo em solo brasileiro, sendo 5.795 deles reconhecidos no decorrer de 2022 (Junger da Silva, Cavalcanti, Lemos Silva, Tonhati & Lima Costa, 2023). Chama a atenção o expressivo número de solicitações feitas por venezuelanos: 33.753 pedidos, cerca de 67% do total das solicitações (Junger da Silva et al, 2023). Segundo este relatório do Conare, a fronteira do estado de Roraima com o território da Venezuela é a principal porta de entrada destes indivíduos no Brasil, com 41,6% das solicitações de refúgio (Junger da Silva et al, 2023).

Com o crescente aumento de refugiados em solo brasileiro a partir da década passada, o Brasil formou uma diversificada população de indivíduos vivendo nestas condições. Visando chamar atenção da sociedade para a causa do refúgio e ainda fortalecer suas comunidades migrantes, esses sujeitos se inspiraram na Copa do Mundo de futebol masculino da Fifa de 2014 para criar a “sua versão da Copa do Mundo”. Nasceu então a Copa dos Refugiados e Imigrantes, um torneio de futebol amador que foi ganhando novos adeptos ano a ano e se estabelecendo dentro da comunidade migrante e refugiada no país.

Buscando compreender como essa atividade esportiva tornou-se um espaço de confraternização e integração social destes indivíduos na sociedade brasileira, transformando inclusive suas identidades, este trabalho analisará alguns efeitos do esporte na comunidade refugiada utilizando-se de entrevistas com jogadores participantes e pessoas envolvidas na organização do evento, realizadas entre fevereiro e junho de 2023 na cidade de São Paulo. Foi elaborado um roteiro de questões através de entrevistas semiestruturadas e utilizou-se a metodologia do Discurso do Sujeito Coletivo de Lefevre e Lefevre (2005, 2012) para melhor compreender este coletivo.

Optou-se também por utilizar o termo migrante e não imigrante, como frequentemente é utilizado. A escolha por este termo segue uma recomendação do Guia para Comunicadores: Migrações, Refúgio e Apatridia, que aponta o fato “de migrante ser um termo abrangente, não simplista e aconselhado por especialistas para uso quando se fala de migrações entre países” (Imdh, Ficas & MigraMundo, 2019).

Este trabalho é um recorte da tese de doutorado de Guilherme Silva Pires de Freitas intitulada “Análise das ondas migratórias ao estado de São Paulo no século XXI através de práticas esportivas e de lazer: a Copa dos Refugiados e Imigrantes”, que está em desenvolvimento na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH/USP), sob a orientação do Prof. Dr. Marco Antonio Bettine de Almeida.



Esporte e migração

Um dos maiores fenômenos do mundo moderno, o esporte é considerado por muitos estudiosos como uma poderosa manifestação social, política, cultural e de costumes capaz de englobar diversas práticas humanas através de regulamentos e instituições, estar presente em todas as classes sociais e ser um elemento essencial para a cultura de massas. (Bueno & Marchi Júnior, 2020). Após seu processo de desenvolvimento ao longo do século XIX e da formatação de regras universais de suas diversas modalidades no início do século XX, este fenômeno social tornou-se muito mais do que uma atividade esportiva, lúdica e de lazer, incorporando-se ao cotidiano da sociedade contemporânea e possibilitando análises macrossociológicas.

Com o tempo o esporte passou a ser visto pelos pesquisadores como uma oportunidade para compreensão de diversas questões, como sociais, políticas, culturais, de comportamento, entre outras, chegando inclusive a pautar sérias discussões sociais como a questão do racismo, da igualdade de gênero, da saúde mental, da participação de atletas LGBTQIA+ nas modalidades, entre outros assuntos (Freitas, 2022b). Ao longo da história esse fenômeno se espalhou pelo mundo e suas modalidades se adaptaram as características sociais e territoriais de cada região.

Referente a questão da migração a situação não é diferente. Existem ligações entre o campo de estudos migratórios com os estudos do esporte. Inclusive, as modalidades esportivas que foram surgindo no século XIX na Europa acompanharam os movimentos migratórios do período, viajando além-mar junto de famílias e trabalhadores europeus que buscavam a sorte em outros continentes. Talvez o futebol seja o maior exemplo. A modalidade teve uma rápida expansão global e conseguiu se assimilar as mais diferentes sociedades, conquistando milhões de praticantes logo em seus primórdios.

Outro exemplo dessa relação entre esporte e migração são os megaventos esportivos, que neste século XXI tornaram-se ferramentas de promoção política e econômica, bem como, para reforçar as agendas domésticas, a legitimidade política e a coesão nacional dos Estados (Bettine, 2022). De acordo com Uebel (2018) o fluxo migratório de estrangeiros ao Brasil na década passada, especialmente de países africanos, cresceu durante o período de realização de megaeventos no país entre os anos de 2013 e 2016. Políticas adotas pelo governo da então presidente Dilma Rousseff, que emitiu vistos especiais ou retirou a exigência para profissionais envolvidos e turistas, fez com que muitos migrantes aproveitassem o período dos torneios para vir ao Brasil (Uebel, 2018). Sem as tradicionais exigências para entrada no país, muitos migrantes aproveitaram o período dos torneios para viajar com a intenção de se estabelecer no Brasil. Muitos deles chegaram ao país sem ingressos e nem os adquiriram durante as competições, aproveitando a situação para solicitar refúgio ou buscar obter alguma ocupação no país para facilitar sua permanência em território brasileiro após o fim dos 90 dias que estes “vistos desportivos” concediam (Uebel, 2018).

No âmbito do futebol profissional a questão de jogadores refugiados ou oriundo de famílias refugiadas ganhou destaque durante a disputa da Copa do Mundo da Fifa de 2022, sediada no Catar. Um dos destaques foi o canadense Alphonso Davies, autor do primeiro gol do país em Mundiais. Filho de pais refugiados liberianos, ele nasceu em um campo de refugiados em Buduburam, em Gana, migrando para o Canadá ainda bebê com sua família ainda bebê (Unhcr, 2021). Ciente do impacto de sua história, o jogador tornou-se em 2021 embaixador do Acnur.

O movimento olímpico é outro espaço que vem sendo receptivo a causa do refúgio nos últimos anos. Em 2022 o Acnur e o Comitê Olímpico Internacional (COI) firmaram uma parceria estratégica para aprofundar o trabalho conjunto das duas entidades oferecendo a refugiados e pessoas em situação de deslocamento forçado acesso para a prática de esportes e inclusão desses sujeitos através do esporte (Unhcr, 2022). Esta não foi a primeira parceria entre o Acnur e COI, já que desde os Jogos Olímpicos do Rio-2016, uma equipe formada por atletas refugiados participa da competição sob a bandeira do Comitê Olímpico. A iniciativa do COI mostra como o esporte pode ser um espaço importante para difusão de pautas atuais, caso da situação migratória, além de aproximar o centenário movimento olímpico das questões da sociedade moderna (Freitas, 2022a).

Como já citado na introdução, a Copa do Mundo Fifa 2014 foi a grande inspiração para a criação da Copa dos Refugiados e Imigrantes. Um grupo de deslocados internacionais se reuniu numa quadra de futebol localizada próximo a Igreja Matriz Paroquial Nossa Senhora da Paz, onde atua a Missão Paz no bairro do Glicério, no centro de São Paulo, e traçou os primeiros planos para colocar a ideia do torneio em prática. Com o apoio da Cáritas Brasileira e do Acnur, realizaram a primeira edição em 2014, com 16 equipes participantes (Delfim, 2014). Com o tempo a Copa dos Refugiados e Imigrantes ganhou espaço e força dentro da comunidade migrante e refugiada, recebendo apoio da iniciativa pública e privada.

Formada por migrantes e refugiados, a ONG Pacto pelo Direito de Migrar é a entidade responsável pela organização da competição, colocando os deslocados forçados como os protagonistas. Desde 2014 a Copa dos Refugiados e Imigrantes já foi disputada em algumas capitais brasileira e teve partidas realizadas em estádios históricos como Pacaembu e Maracanã. Utilizando o futebol como elemento de integração (De Souza, 2022), a Copa dos Refugiados e Imigrantes ajudou a aproximar as diferentes comunidades migrantes e refugiadas que vivem no Brasil, reforçando vínculos e criando novas conexões entre seus membros. Mas o evento não se concentra apenas em ações dentro de campo. Atividades culturais como feiras e sociais como no auxílio a documentação de refugiados recém-chegados ao país ocorrem em paralelo enquanto a bola rola no gramado, visando uma maior integração social dessa comunidade no Brasil.

E em meio a tantos espaços onde se faz presente, o esporte também pode ser visto como uma ótima prática para a integração social de populações marginalizadas, como é o caso dos refugiados. Eventos com a Copa dos Refugiados e Imigrantes, demonstram que práticas de esporte e lazer também podem ser válvulas de escape utilizadas para a integração dessas comunidades na sociedade, mesmo enfrentando alguns desafios como xenofobia, racismo e diferenças culturais que se colocam no caminho da vida de qualquer migrante ao longo de sua jornada.



Procedimentos metodológicos

Referente as entrevistas semiestruturadas, os jogadores foram abordados em questões sobre o processo de solicitação de refúgio, impactos da nova realidade em suas identidades e importância que o evento teve em suas adaptações ao Brasil. Optou-se por esta técnica pelo fato dela ter:

[...] como vantagem a sua elasticidade quanto à duração, permitindo uma cobertura mais profunda sobre determinados assuntos. Além disso, a interação entre o entrevistador e o entrevistado favorece as respostas espontâneas. Elas também são possibilitadoras de uma abertura e proximidade maior entre entrevistador e entrevistado, o que permite ao entrevistador tocar em assuntos mais complexos e delicados, ou seja, quanto menos estruturada a entrevista, maior será o favorecimento de uma troca mais afetiva entre as duas partes. (Boni & Quaresma, 2005).

No campo dos estudos migratórias o método de entrevista vem sendo cada vez mais utilizado em pesquisas recentes, afinal, trata-se de uma área interdisciplinar e com amplo campo para novas pesquisas (Magalhães, 2019). Porém, estamos lidando com pessoas em situação de deslocamento forçado e entende-se que esta comunidade é de difícil acesso devido a situação de improviso na qual estão vivendo (Bauman, 2007). Tendo em vista que estamos analisando uma comunidade fechada e que tem receios, compreensíveis, para se expor, entendeu-se que seguir um roteiro pré-determinado e aberto com perguntas seria o melhor caminho para poder extrair os depoimentos-chaves dos entrevistados que interessavam ao pesquisador.

Para se chegar até estes sujeitos utilizou-se a metodologia snowball, ou bola de neve, que segundo Vinuto (2014) é ideal para investigar populações difíceis de serem acessadas, estudadas, que não há precisão sobre sua quantidade e que contêm poucos membros espalhados por uma grande área. A metodologia bola de neve consiste em ter auxílio de pessoas que tenham influência dentro de uma comunidade. Estas “sementes” vão indicando novos contatos com as características desejadas pelo pesquisador, ampliando assim o escopo de possíveis entrevistados tal qual uma bola de neve descendo uma ladeira. Vinuto (2014) aponta que essas sementes têm papel inicial no processo:

[...] para o pontapé inicial, lança-se mão de documentos e/ou informantes-chaves, nomeados como sementes, a fim de localizar algumas pessoas com o perfil necessário para a pesquisa, dentro da população geral. Isso acontece porque uma amostra probabilística inicial é impossível ou impraticável, e assim as sementes ajudam o pesquisador a iniciar seus contatos e a tatear o grupo a ser pesquisado. (Vinuto, 2014)

Após uma conversa inicial com as sementes e as indicações dos primeiros contatos, estes sujeitos ouvidos pelo pesquisador indicam outros potenciais participantes ampliando o leque de contato para o andamento da pesquisa (Vinuto, 2014).

Outra razão pela escolha desta metodologia se deu pelo fato dela ser uma forma de amostra não probabilística. A bola de neve também utiliza redes de referência e indicações, sendo uma técnica útil para se estudar questões delicadas, de âmbito privado ou que necessitem conhecimento de pessoas pertencentes aos grupos onde serão localizados estes informantes (Bockorni & Gomes, 2021).

Procurou-se obter uma maior diversidade entre os sujeitos entrevistados, já que segundo o Conare ao fim do ano de 2022, mais de 60 nacionalidades haviam solicitado refúgio no Brasil (Junger da Silva et al, 2023). Para tal foram entrevistados dez indivíduos de nove países: Angola, Cabo Verde, Camarões, Colômbia, Guiné Conacri, Guiné-Bissau, Mali, República Democrática do Congo e Síria, todos fluentes em português e que vivem no Brasil há mais de cinco anos. Nove são homens e uma é mulher. Cinco são refugiados e os outros cinco são migrantes. Todos participaram ou ajudaram na organização da Copa dos Refugiados e Imigrantes, preencheram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e não tiveram suas identidades reveladas por serem um grupo de população vulnerável no Brasil.

Referente ao método de análise das entrevistas, optou-se pelo Discurso do Sujeito Coletivo, técnica que “visa resgatar representações sociais e preservar as dimensões individuais e coletivas de forma articulada, além de descrever e expressar uma determinada opinião ou posicionamento sobre um tema presente numa dada formação sociocultural” (Lefevre & Lefevre, 2005). A escolha por esta metodologia se deu pelo fato de muitas das respostas colhidas terem sido semelhantes em alguns pontos podendo ser analisados através de um coletivo.

O Discurso do Sujeito Coletivo permite ainda que se conheça os pensamentos, representações e valores de uma coletividade sobre um determinado tema, utilizando-se de métodos científicos para atingir estes resultados. No caso deste estudo, ouvindo refugiados e migrantes que estejam envolvidos com a Copa dos Refugiados e Imigrantes, os discursos mostram as convergências e divergências destes indivíduos referente as dificuldades encontradas em suas migrações e no processo de inclusão e integração social através do esporte.

Como bem aponta Lefevre e Lefevre (2012), o Discurso do Sujeito Coletivo tem como proposta fazer o pensamento coletivo falar diretamente através da primeira pessoa do singular. Essa metodologia busca instituir um sujeito capaz de incorporar nele o discurso do pensamento coletivo e estender esta fala direta, fazendo a coletividade se expressar na primeira pessoa do singular ilustrando o funcionamento das representações sociais (Figueiredo, Chiari & Goulart, 2013).

A escolha por esta metodologia de pesquisa se deu devido ao fato da comunidade de refugiados e solicitantes de refúgio ser paradoxal, tendo semelhanças na questão jurídica e humanitária, e diferente nos aspectos culturais, raciais, religiosas e sociais. Pessoas em situação de refúgio acabam se vendo como semelhantes em meio a dificuldades, chegando a criar vínculos entre si e formar uma espécie de comunidade imaginada, semelhante a teoria de Anderson (2008).

Os sujeitos foram questionados sobre: (i) quais foram os motivos que o fizeram pedir refúgio ou migrar ao Brasil; (ii) se encontrou muitas dificuldades de adaptação no Brasil; (iii) sua percepção sobre como vê a sociedade brasileira avalia a questão do acolhimento a refugiados; (iv) se a Copa dos Refugiados e Imigrantes foi importante para o aproximar das comunidades e de outros refugiados em situação semelhante e se ela foi importante no processo de adaptação; (v) se acredita que atividades de esporte e lazer para refugiados podem ajudar na integração social da população refugiada no Brasil.

Todas as questões aplicadas no questionário respeitaram o direito de fala dos indivíduos ouvidos, que ficaram à vontade para responder ou não aos questionamentos seguindo um ponto fundamental que Creswell (2014) afirma como essencial para um bom processo da pesquisa: a questão de ética. Segundo o pesquisador, “em uma entrevista para pesquisa é preciso ser sensível a situação de pessoas em situação de vulnerabilidade e é necessário estar sempre atento as circunstâncias que possam colocar estes cidadãos em risco” (Creswell, 2014).



Análise das entrevistas

As entrevistas realizadas com estes refugiados e migrantes trouxeram algumas convergências e divergências em relação aos temas questionados. As maiores similaridades ocorreram sobre as opiniões destes indivíduos em relação ao que significa a Copa dos Refugiados e Imigrantes para suas vidas, em como ações que envolvam práticas de esporte e lazer podem ser importantes no processo de adaptação e integração destes sujeitos e na visão que estes indivíduos têm sobre os brasileiros. Já as maiores diferenças encontradas ao longo das entrevistas se deram na trajetória de vinda ao Brasil, motivadas por uma fuga para salvar suas vidas devido a guerras e perseguições políticas, caso dos refugiados, ou para buscar melhores oportunidades de trabalho e estudo, caso dos migrantes.

Para ilustrar um pouco mais os depoimentos colhidos nas entrevistas, será apresentado aqui algumas frases que concebem uma totalidade das representações sociais dos refugiados e migrantes, a partir das questões e objetivos que moveram a pesquisa. O contexto geral destas falas já foi discutido anteriormente, desta forma, as frases estão em consonância com o contexto apresentado.



Tabela 1. Frases que representam os coletivos de refugiados e migrantes

Utilizando a metodologia da Análise do Sujeito Coletivo, o coletivo de refugiados e migrantes tem aproximadamente de 33 anos de idade; vive no Brasil há quase dez anos; conhecia pouco sobre o país quando solicitou refúgio ou migrou; afirma que o processo de solicitação de refúgio ou documentação regular foi demorado; define o cidadão brasileiro como um sujeito acolhedor; está adaptado ao estilo de vida brasileiro; no momento está trabalhando e participou ou esteve envolvido na organização da Copa dos Refugiados e Imigrantes.

Quando questionado sobre os motivos que o fizeram pedir refúgio ou migrar para o Brasil, o coletivo relata que conhecia pouco sobre o país, mas acreditava que sua situação no novo local seria melhor do que em seu local de origem, o que pode ser interpretado como uma construção no imaginário desses sujeitos devido a representação que o Brasil tem no exterior, principalmente graças a sua cultura e tradições populares (Rizental, 2017).

Sobre as dificuldades de adaptação, o coletivo relata ter passado por alguns momentos de adversidade, principalmente no início de suas jornadas em território brasileiro, principalmente devido as diferenças culturas e linguísticas. Muitos descreveram essa sensação como um choque cultural, que gerou mudanças profundas não apenas em seus estilos de vida, mas também em suas identidades (Padoan-Moura, Barañano & Artzamendi, 2020).

Sobre a relação com os nativos do Brasil, o coletivo define o brasileiro como um sujeito acolhedor e receptivo, mas com limitações sobre a causa do refúgio e da migração, inclusive replicando comportamentos preconceituosos e reforçando alguns estereótipos, indo de encontro ao que Rizental (2017) define como discursos pré-construídos ligados a nacionalidade do estrangeiro, estabelecendo uma relação simbólica entre uma ilusão do real a partir de uma memória sobre outro. Porém, esse coletivo crê que com mais informações o brasileiro poderá mudar seu comportamento.

Referente a questão esportiva, defende práticas de esporte e lazer como ações importantes e classifica de forma positiva a Copa dos Refugiados e Imigrantes, relatando a importância dela para o processo de integração do coletivo no país, o aproximando de demais membros da comunidade migrante, fortalecer as identidades migrantes e proporcionando a oportunidade de conhecer e acolher semelhantes, gerando um sentimento de unidade entre os membros semelhante a comunidade imaginada de Anderson (2008), além de ver o esporte como um importante elemento para a promoção dessa integração social de refugiados e migrantes na sociedade (Freitas, 2021).



Considerações finais

Através das entrevistas semiestruturadas com deslocados internacionais e analisadas pela metodologia do Discurso do Sujeito Coletivo, buscou trazer o ponto de vista destes indivíduos sobre como a Copa dos Refugiados e Imigrantes foi relevante para ajudar na adaptação destas pessoas no Brasil. Indo de encontro com o que aponta Moreira (2014) sobre a importância de se ouvir estes sujeitos visando compreender da melhor forma este fenômeno.

Devido a esta prática de esporte e lazer, o coletivo conseguiu formar fortes vínculos com pessoas vivendo em situação semelhante no país, fortalecer sua ‘identidade migrante’, promover uma aproximação com a população brasileira através do futebol e admitir que o evento foi importante para o processo de integração de refugidos e migrantes no Brasil. Observou-se ainda a relevância de como práticas de esporte e lazer podem gerar discussões de âmbito social. A Copa dos Refugiados e Imigrantes ganhou grande proporção nacional e se tornou uma grande vitrine para esses sujeitos no Brasil, mostrando como ações de cunho esportivo podem ser eficientes para chamar a atenção tanto da sociedade civil, quanto dos poderes públicos e privados, para a causa do refúgio no país.

Por fim, este trabalho demonstra como o esporte por ser um elemento essencial da sociedade contemporânea e uma excelente área para entendermos as complexidades do nosso tempo. Parafraseando Hall (2014), que define a identidade como transitória, o esporte apresenta comportamento semelhante, se adaptando as novas realidades e pautando pontos chaves da contemporaneidade, tornando-se um elemento essencial para investigações de novas pesquisas acadêmicas. Desta forma, aproximar a área de estudos do esporte de outras esferas interdisciplinares, como os estudos migratórios, por exemplo, é apenas uma demonstração de como temos um vasto campo para futuras e inovadoras pesquisas referentes as relações do esporte com a sociedade.



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